Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Havaizinho é uma praia que o povo do Poço da Draga é o dono natural. Uma favela ou comunidade rebentada na marra e que foi ficando, apesar da voracidade da especulação imobiliária e grilagem da beira mar de Fortaleza.
Tenho muito prazer em acreditar que nenhum português, estrangeiro algum ou brasileiro afeito a privatizar a praia, irá construir ali um hotel de luxo, um super prédio ou cercar o Atlântico.
Na última segunda-feira, ainda não eram cinco da manhã quando cheguei por lá. Somente fomos embora às 19 horas e a praia ainda estava arrochada de gente, principalmente rapazes e moças desenhadas em roupas de água e sal.
Uma sensualidade berrando dos corpos pra lá e pra cá entre as duas pontes velhas
Garotas em biquínis mínimos e todos, mulheres e homens, à beira de um beijo, de um esfrega, de uma lambida entre virilhas indizível. Uma sensualidade berrando dos corpos pra lá e pra cá entre as duas pontes velhas que ainda não ruíram de vez. Vão cair.
Fomos filmar parte de uma história acontecida em 1881, quando negros, pardos e indígenas libertos empacaram o embarque de pretas e pretos escravizados por quase quatro séculos no Ceará. No Ceará sempre teve negro sim.
Pode até ser ser que os carapinhas de hoje, do Poço da Draga, nem sejam parentes dos insurretos da praia daquele tempo, afinal já são 143 anos da "Rebelião dos Jangadeiros". Mas acho que ainda há descendentes dos revoltos José Napoleão e Tia Simoa na favela. Por que não?
Todo dia é domingo naquele pedaço do Atlântico que os abonados não conseguiram tungar tudo
A última segunda-feira na praia do Havaizinho, no Poço da Draga, era um domingo. Não estou poetizando. Todo dia é domingo naquele pedaço do Atlântico que os abonados, espécie privilegiados pela Prefeitura e Governo do Estado, não conseguiram tungar tudo.
Vi, estava lá filmando a "Rebelião dos Jangadeiros"! Era um domingo em plena segunda-feira. Ou o domingo ainda não tinha se dado conta de terminar e não percebeu que as agruras de uma segunda-feira "normal" já estavam postas.
Ali, no desenho da areia entre as duas pontes cascabulhas, moças e rapazes estavam à beira de uma libido, de uns pegas rochedos! Focinhavam-se, bebericavam-se, bolinavam-se a céu aberto. Algo de dopamina na maresia e nos corpos ao sal do mar.
Nas pedras do espigão, a maconha é a coisa mais besta de se rezar
Queria achar palavras que dessem o saibo e o palato aperreante do pra lá e pra cá de quem foi lotando o Havaizinho até depois do sol se pôr. A ponte quase caída na ferrugem e eles saltando, fuxicando, roçando-se aos pulos e tornando dos mergulos.
Nas pedras do espigão, a maconha é a coisa mais besta de se rezar. Havia beijos, havia pegações, há a alheação entre corpos e é bom demais. Uma lascívia farnesínica. E não é porque é julho e o capitalismo inventou as férias, não. Tem um borogodó descartesiano naquele sol quente e a ventania na peia.
Custa tanto assim o Havaizinho não ser espólio dos ricos do Ceará e de estrangeiros?
Bem perto dali o projeto da nova Beira-Mar tem limpeza e os canteiros de obras não são tão a imagem de uma bomba covarde recém detonada em Gaza. É a pobreza institucional de Prefeitura e Estado, ainda no racismo luso-cristão-europeu, de se fazer diferença no tratamento do que não é narciso.
Custa tanto assim o Havaizinho não ser espólio dos ricos do Ceará e de estrangeiros? Seria ainda ranço contra o que sobrou da negrada e de indígenas insubmissos 388 anos depois? Ainda uma vingança contra pardos e caboclas domésticas? Só pode!
Estaria no sangue dos lordaços que perpetuam, até hoje, os privilégios de uma "civilização" escrota fundada nas invasões, no catecismo e na escravização.
Mas há excitação, há beijos, lambidas e desobediência na praia do Havaizinho...
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