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Quando se vende o celular para comprar comida
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Quando se vende o celular para comprar comida

Tipo Crônica
1005demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1005demitri

Pelo zap, recebi a seguinte mensagem de uma cunhada: "Um aluno de uma colega disse, no whatsapp, que aquela seria a última postagem dele no grupo. Porque ia vender o celular pra comprar comida pra casa".

Fui atrás para saber se tinha fundamento. Sim, é verdade. O garoto, um "pré-universitário", tinha chegado na lona com a família e o último recurso foi, objetivamente, se desfazer do telefone para comer um ou dois dias.

E depois, isolado e sem comunicação com o território online, iria tentar se virar. Atrás de alguma coisa. O que fosse para ajudar em casa e, quem sabe, até conseguir comprar outro aparelho.

Parece mentira. Algo tão irreal para alguém que vive numa realidade paralela onde o celular é parte do corpo. Tão apartado da condição de existência do outro que você até sabe que ele está ali, num lugar distante chamado "periferia", "subúrbio", "favela", "comunidade", "quebrada", "território das facções"... mas, de vera, ele não existe dado o descolamento social.

Esse mesmo rapaz, fiquei remoendo, não tem nem o que comer todo dia e, agora, entra no deserto dos apartados digitais. O que dirá ter chance de concorrer pau a pau (tão violenta essa expressão) num Enem.

Há um vídeo circulando na web feito por "vestibulandos" portadores de computadores, celulares e internet, se contrapondo à peça publicitária do Ministério da Educação. Para o MEC, qualquer um "pode!", "estude nos livros, no computador", "você vai vencer", "não pare"... e outras besteiras de coach.

Até entendo o prejuízo financeiro para a União, mas não dá para ignorar a desigualdade de condição, também entre os estudantes, acentuada na pandemia. Pra uns faltam comida e celular, para outros sobram wi-fi e delivery na porta de casa.

Weintraub, por conta da Covid-19 e do isolamento social, criou o tal "trabalho remoto", para justificar o Enem de casa. Até quiseram colocar no mesmo balaio o exame remoto com a bem encaminhada Educação a Distância de outros governos. Não cola.

A EAD pressupõe laboratórios de informática na escola e tutor, como acontece no IFCE, para os 30% (ou mais) de estudantes que têm de vender o celular para comer. Ou nunca tiveram um bicho desse que se troca, a cada lançamento da Apple, na casa dos bacanas.

Andei pensando em dar mais um cavalo de pau na vida, fazer o Enem para Medicina... Contribuir com o mundo de outra maneira. Talvez um devaneio por conta do vírus que mexeu no meu juízo. Desisti da inscrição. Nesse Enem, não. Deveria, mesmo, ser adiado. 

É desigual com quem tem de vender o celular para comer. Por enquanto, mesmo na pandemia, ainda tenho comida, wi-fi e tutoriais para o Enem. Passar o império do coronavírus, quando a desigualdade voltar ao normal, retomo na ilusão da Pátria Amada de que "todo mundo tem as mesmas chances" na vida e nas horas que antecedem a morte.

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