Professor de História na rede pública Estadual de Ensino do Ceará. Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Patrimônio e Memória (GEPPM-UFC) e vice-líder e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa História, Gênero e América Latina (GEHGAL-UVA)
Em apenas mil dias, o atual governo consolidou na capital cearense o pior patamar econômico de alimentos e rendas em quase trinta anos. A bandeira do liberalismo radical na política econômica, vestida como um manto sagrado pelo ministro da pasta, até agora só desonera o poder de compra, afugenta as empresas, aumenta o desemprego e dispara a inflação
Conta-se numa coletânea de histórias árabes que o sultão Xariar foi um homem obcecado pelo tema da traição. Ensandecido após descobrir a infidelidade de sua primeira esposa, ele decidiu matar a mulher e o amante jurando vingança dali em diante. Paranoico e misógino, resolveu se casar cada dia com uma mulher para, então, mandar matá-la no dia seguinte, após a noite de núpcias. Xerazade foi uma dessas moças encaminhadas ao sacrifício, mas Xariar não contava com o estratagema que a jovem tinha para escapar do triste fim.
Toda as noites, após deitar-se com o sultão, ela contava histórias sobre os mais variados temas, que iam do heroico ao erótico. Pouco antes do amanhecer o relato era interrompido e Xerazade prometia continuar na noite seguinte. Xariar, curioso, não ordenava sua execução para poder saber o final da história. E assim foi durante mil e uma noites até que Xerazade, com sua imaginação bem abastecida, tivesse convencido o sultão de poupá-la da morte.
As mil e uma noites de Xerazade são elaborações metafóricas sobre o transcurso do tempo, não sendo necessariamente correspondentes à ordem numérica das noites que ela passou ao lado do rei Xariar. Portanto, não foram os números que salvaram a jovem narradora, foram os contos que garantiram a sua existência.
Aqui no Brasil, sobrevivemos contando os dias. Já são mil de (in)existência do atual governo. Desde antes de assumir o cargo, o presidente dava mostras de que é chegado a contar miragens e maravilhas, mas sem o talento de Xerazade não consegue emplacar a narrativa de que está tudo bem, pois os números são retumbantes: 600 mil mortes em dois anos de pandemia; 14 milhões de desempregados e outros 6 milhões que só não aparecem como desempregados na classificação do IBGE porque desistiram de procurar emprego; cerca de 19 milhões passando fome; e quase 15 milhões na extrema pobreza.
O descontrole inflacionário arruinou o poder de compra do consumidor brasileiro, especialmente os mais pobres; o preço da cesta básica já compromete 50% ou mais do salário mínimo, sem esquecer de mencionar a disputa de narrativa sobre o peso do ICMS no preço da gasolina, cujo litro já bateu os R$ 7, segundo levantamento e cruzamento de dados realizados pela reportagem seriada especial de O POVO.
Em apenas mil dias, o atual governo consolidou na capital cearense o pior patamar econômico de alimentos e rendas em quase trinta anos. A bandeira do liberalismo radical na política econômica, vestida como um manto sagrado pelo ministro da pasta, até agora só desonera o poder de compra, afugenta as empresas, aumenta o desemprego e dispara a inflação. Tais indicadores, no contexto de desmonte de políticas públicas de redistribuição de renda, aceleram a desigualdade social e aprofunda o poço que divide o Brasil em dois há séculos.
Enquanto isso, o Xariar do Planalto divulga um “milagre econômico” que distorce intencionalmente a taxa de crescimento do PIB. Ledo engano pensar que isso significa falta de noções básicas de matemática ou ignorância em temas econômicos. Na verdade trata-se de um discurso direcionado a destacar os “avanços extraordinários” do governo na condução da política econômica, mesmo que os dados contradigam dia após dia. Parece uma daquelas histórias belíssimas e mirabolantes de Xerazade para sobreviver a mais uma noite junto ao sultão, mas sem o mesmo nível de eloquência e perspicácia da jovem ameaçada está difícil para o governo ganhar a guerra pelas palavras.
No presente tem sido muito custoso vivenciar todo esse cenário caótico, no futuro será muito trabalhoso para os autores dos livros de história contar como uma democracia resiste a episódios repetitivos de ódio de raça, classe e gênero; de coação às liberdades individuais e de imprensa; de atentados e ameaças à própria democracia, com arroubos golpistas e reacionários; de xingamentos e desrespeito à dignidade humana; de agressões do Executivo ao Judiciário.
Fato é que não serão os contos fantasiosos que irão redimir o governo federal, e pelo visto nem os números. Se aprendemos com Xerazade que quem conta um conto aumenta um ponto, atestamos com o atual governo que algumas contas nunca fecham.
Resta-nos, agora, contar os dias para sairmos vivos da escuridão dessa grande noite.
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