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David Lee, Matulão e Fio: Por uma moda com significado
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jornalista, com pós-graduação em Propaganda e Marketing (Uni7) e em Moda e Comunicação (Universidade de Fortaleza). Já atuou como assessora de comunicação, repórter do Núcleo de Revistas do O POVO, jornalista na área de branding e design, e produtora de conteúdo no Penteadeira Amarela, um dos primeiros blogs de comportamento do Ceará. A ligação com a moda surgiu ainda na faculdade, quando teve contato com os bastidores da moda, passando a vê-la como forma de expressão individual, de manifestação cultural e de reflexão social. Atualmente, é editora-adjunta de projetos do O POVO.

Larissa Viegas arte e cultura

David Lee, Matulão e Fio: Por uma moda com significado

Nas páginas do O POVO, a moda sempre teve espaço como manifestação cultural e reflexão social. A partir desta terça-feira, 7, semanalmente, o Vida&Arte publica a coluna Moda, assinada pela jornalista Larissa Viegas, e com foco na linguagem como forma de expressão
Tipo Análise
A designer Suyenne Lemos produz joias e compartilha seus conhecimentos com artesãos cearenses  (Foto: Brenda Freitas/Divulgação)
Foto: Brenda Freitas/Divulgação A designer Suyenne Lemos produz joias e compartilha seus conhecimentos com artesãos cearenses

Essa não é mais uma coluna semanal de moda. Quer dizer… É. Mas não do jeito que a moda foi vista por muito tempo - e que até hoje é reproduzido por alguns. Moda não é uma regra, um conceito e muito menos uma verdade absoluta.

Em uma entrevista das Páginas Azuis com Silvania de Deus, veiculada no O POVO em março de 2025, a estilista relacionou inclusão e autoestima à moda. Para ela, a moda e o ato de vestir-se não são meramente estéticos ou comerciais, mas intrinsecamente políticos e libertadores, capazes de nutrir uma conversa profunda e bonita consigo mesmo.

Acredito que o ato de se vestir ocupa ainda um patamar acima da moda. É uma demanda social, uma ferramenta de comunicação de quem somos e o que queremos ser, rompendo comportamentos e desbravando caminhos. É ir muito além de seguir ou não as tais tendências.

 

E assim como as demais expressões artísticas, vejo a moda com um reflexo. De um tempo, de um momento, de um contexto. Roupa e moda podem ter caminhos cruzados, mas não precisam seguir a mesma trajetória. Cada vez mais efêmeras, as tendências de moda efervescem e caem no esquecimento com tanta facilidade como o surgimento e o desaparecimento de bolhas de sabão. E, muitas vezes, não deixam nem lembranças.

Por outro lado, aposto que a peça favorita do seu guarda-roupa tem uma história. Foi adquirida em uma viagem, foi dada por alguém especial, foi comprada para uma ocasião única. E são essas histórias por trás e que envolvem a moda que eu quero contar por aqui. É uma moda que vai além do vestuário.

Está na música, no cinema, no teatro, na fotografia, em uma exposição de arte. Também ganha interpretações em um carro, em um objeto de decoração, na capa de um livro. É aquela que você tem gosto em ouvir. Porque muito mais que um objeto inanimado, é uma representação.

Quem está do outro lado, o produtor de roupas, calçados e acessórios que seguem um caminho dessa moda planejada, repleta de signos e significados, costuma beber em diferentes fontes para suas criações, a exemplo do resgate e da preservação de memórias e de diferentes artesanias.

No nosso Estado, o artesanato é reconhecido tanto pela produção industrial e em massa quanto pelo luxuoso universo da alta costura. "Como as tendências vão e voltam, hoje temos uma valorização muito grande do artesanato", destaca Ricardo Bessa, mestre em moda, cultura e arte. "O que podemos fazer para evoluir é trabalharmos mais nossa moda autoral, criativa, pois sabemos que existe muita cópia", completa.

Para dar início a essa nova temporada, ouvi três designers-artistas-estilistas-artesãos que atuam na moda cearense.

Quase dez anos após o lançamento de sua primeira peça, Leonardo Moreira e Ellen Cajareico, da Matulão, mantêm vivo o hábito de mesclar matérias-primas. Couro, madeira e palha fazem parte das bolsas da marca. E a escolha não é aleatória: os materiais remetem à infância e à paixão por desenhar móveis de Leonardo.

Assim, as primeiras peças, feitas à mão pelo "Leo Matulão" nasceram a partir de elementos que usaria em cadeiras e bancos projetados por ele. O mote sempre foi fazer algo "fora da caixa". E foi essa fuga do comum que deu visibilidade à marca. "Se fosse para fazer mais o mesmo, a gente não teria o impacto que vem tendo nos últimos anos", frisa.

Na bagagem, o publicitário e designer não carrega referências da moda, mas de escolas de estética como Bauhaus. A atemporalidade também transforma alguns modelos de bolsas em clássicos.

Por indicação de amigos, participou de uma feira no Mambembe, antigo bar localizado na Praia de Iracema. O evento foi um divisor de águas, onde Leonardo e a Matulão reconheceram seu público e entenderam o poder da economia criativa.

Os primeiros dois anos foram de muito trabalho e de contas atrasadas, mas também de abertura de canais. Hoje, a marca pode ser vista tanto em feiras criativas em Fortaleza quanto em eventos no mesmo formato em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

Dentre as empresas autorais cearenses que dividem a atenção do público com a Matulão está a Fio, da arquiteta Suyenne Lemos. Na faculdade, Suyenne se encantou pelo design, principalmente combinado ao artesanato. O resultado foi um ofício que executa até hoje: o desenvolvimento de coleções para grupos de artesãos que atuam no Interior do Estado, com diferentes tipologias.

Em 2015, período em que atuava como arquiteta, percebeu que o hobby de produzir joias em prata para si era um prelúdio de uma paixão que iria durar por muito tempo. Assim, montou sua bancada em casa para não depender de oficina e seguiu com os estudos, em Fortaleza e São Paulo, e se inspirando, adquirindo joias e trocando experiências com artesãos no Brasil e no mundo.

No ano seguinte, a sequência de questões pessoais e profissionais levou Suyenne a se juntar a duas amigas e criar um coletivo, cada uma com sua própria marca. E nasceu a Fio, com joias em prata desenvolvidas a partir de aspectos culturais, conforme realiza com os artesãos com quem trabalha.

"As minhas peças (...) são mais marcadas, menos brilhosas, mais rústicas. Eu não quero reproduzir perfeitamente a mesma peça várias vezes. Eu prefiro que cada peça tenha essa cara de peça única, de peça que foi feita à mão. Eu acho que essa coisa perfeita tem cara de industrial. Não que o artesanato não seja bem feito, mas ele é interessante porque é visivelmente feito à mão", explica.

Aversa ao termo "exclusivo", prefere classificar suas peças como únicas, que mesmo sendo reproduzidas, possui, cada uma, características próprias.

Desde 2025, Suyenne é convidada pela Central de Artesanato do Ceará (Ceart) para trabalhar juntamente à artesãos cearenses.

"São aprendizados que você acaba tendo, contato com trabalhos incríveis. Você vai para compartilhar seus conhecimentos, mas também tem muito aprendizado, principalmente com as mulheres. É uma coisa de resistência, de ter um ganho próprio, uma fonte de renda".

Para a arquiteta, o artesanato, a moda e o design cearense estão em alta, com muitos olhares "de fora" para o que é produzido no Estado, atraindo, assim, também consumidores locais para pontos que antes eram vistos como exclusivamente turísticos, a exemplo da Ceart. "Às vezes, a gente está tão envolvido, é tão natural, é tão fácil (ter acesso) que a gente não se encanta tanto mas é importante que a gente chame atenção e que tenha essa consciência do valor imenso do feito à mão", completa.

Esperançosa, acredita que em algum momento, principalmente nesse cenário de automatizações e inteligência artificial, que o artesanato será visto como algo maior, porque é extraordinário o fazer a mão. "Hoje eu digo que sou arquiteta por formação, designer por atuação, mas me orgulho em dizer que sou artesã. A gente precisa fazer essa inversão de olhar, eu não sou menor por ser artesã, é ao contrário. Ser artesã é o meu diferencial".

Provando que o fazer à mão pode ser moderno, urbano, atemporal e sem gênero, David Lee é outro nome da moda cearense que carrega Fortaleza em suas roupas. Neto de costureira e autodidata, desenha desde os seis anos, mas nunca imaginou trabalhar com moda, até prestar vestibular. Mesmo sem a aprovação, se interessou pela área pela possibilidade de trabalhar com ilustrações.

"Ia para palestras, para frente da TV, criei um dicionário meu (de moda), com o que era saia evasê, comprimento midi… Fui fazendo cursos gratuitos, palestras, tudo que eu pudesse ter de conhecimento, eu fui adquirindo até chegar ao ponto de participar dos concursos e tentar bolsas para universidades, porque eu nunca pude pagar", conta David.

A entrada neste universo não o fez deixar para trás as suas origens, a comunidade Saporé, no bairro Mucuripe. Por um ano, ia diariamente aprender técnicas de costura com costureiras de bairros adjacentes, a Fátima e a Elizete. "Elas faziam acertos e concertos, faziam roupas sob medida. Então com elas eu aprendi tudo o que eu sei de costura".

Foi aproveitando as oportunidades que David conquistou reconhecimentos como uma colaboração com a marca Reserva e participar de eventos de moda autoral.

Outro ponto é a ruptura de códigos construídos dentro de uma singularidade de gênero. "Um babado pode estar em qualquer lugar, não só na roupa feminina, mas também na masculina. Eu até falo do meu pioneirismo em introduzir o crochê na moda masculina no Brasil, que sempre foi associado à feminina, tinha uma linguagem de fragilidade. E a minha ideia era trazer para um contraponto. O homem pode sim ser também frágil, vulnerável", explica.

Ao mesmo tempo, é levar para sua moda urbana uma assinatura tipicamente cearense, traduzindo para uma linguagem global características locais, tendo a alfaiataria como base, mesclada às artesanias como crochê, renda filet. Além das cores "solares", conforme define o próprio estilista.

Para David, a moda cearense, que será tão debatida neste espaço, possui elementos que a tornam um diferencial: "A nossa cor, o artesanato. Somos solares".

 

Foto do Larissa Viegas

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