Antes mesmo de termos como sustentabilidade, autoestima, resiliência e transformação social estarem em alta, Silvania de Deus, 54 anos, já os colocava em prática, muitas vezes de forma intuitiva e natural. A filha temporã de uma costureira, que em fevereiro deste ano completou um século de vida, e de um mestre de obras, teve uma criação diferente dos irmãos.
A infância, entre linhas, tecidos e aviamentos, dividia espaço com o interesse pela leitura e a observação do comportamento das pessoas, principalmente das mulheres, como aquelas que entoavam Núbia Lafayette enquanto lavavam roupa.
Sil, como é chamada, se define como algo além de uma estilista. Sil é artista. Nas suas criações, algo que para muitos pode ser futilidade, para ela, foi a salvação. É de suas roupas e acessórios que, desde a adolescência, a mulher nascida no bairro Carlito Pamplona sobrevive.
Segundo ela, mulheres pretas e periféricas não têm tempo de romantizar o empreendedorismo. "Mesmo sem saber nem o que está fazendo, mas ela precisa viver, né? Não é um luxo, é uma necessidade", diz.
Ao mesmo tempo, foi a moda, o ato de vestir, que a fez perceber as individualidades de cada pessoa e que é possível valorizar, através das roupas, características que, às vezes, nos passam despercebidas quando estamos diante do espelho, encarando o próprio reflexo.
Sil também é feita de sol e sal. Foi na Praia de Iracema que viveu um grande amor pessoal e é no boêmio bairro que está o seu ateliê, um dos mais antigos (mas nada tradicionais) do Ceará. A casa virou espaço de encontros e trocas, palco de militância, de cultura e de arte. De cadeiras na calçada e do Fuá da Sil, que há mais de dez anos movimenta não só a moda, mas o design, a música e tantas outras expressões.
Em entrevista ao O POVO, Silvania fala sobre sua trajetória profissional de fazer roupas. A conversa traz ainda as superações e os caminhos que se orgulha de ter aberto, além de suas entregas sinceras traduzidas em vestidos, macacões e camisas, nem sempre compreendidas pelo mercado consumidor, mas que carregam em sua essência uma originalidade que beira a teimosia.
OP - Costurar é um ato político?
Silvania de Deus - Fui salva por uma máquina de costura. Acho que a máquina de costura salvou muitas famílias neste País. Talvez fora (também), mas vamos falar do nosso contexto, né? É uma ferramenta como uma agulha de mão.
Às vezes, as pessoas dizem: "Você diz que a sua roupa é feita à mão". Falo: "Máquina de costura é uma ferramenta tanto quanto uma agulha de mão". A diferença é o processo. Se eu corto uma roupa à mão ou costuro uma — é uma roupa feita a mão, não é um processo industrial.
E acho que vestir é tão importante quanto se alimentar. Podemos até sair com fome, mas não saímos nus. A roupa é um item de primeira necessidade, porque ela protege. Além de cobrir com a questão moral, ela também protege, literalmente.
E nesse lugar, assim como o alimento, o vestir-se é um ato político, porque tem uma relação forte com tudo. Com cores — elas representam muitas coisas; com personalidade, e também tem uma relação muito forte com política. Tudo é político.
Vestir-se é, inclusive, uma conversa bonita consigo. Um encontro com a gente. Às vezes fazemos isso com pressa, no "maior agoneio". O sistema nos oprime muito e estamos sempre sem prestar atenção. Mas quando paramos para fazer isso verdadeiramente, é outra relação consigo. E costurar é isso.
Acho que quando conseguimos fazer algo com as nossas roupas, é um ato bem libertador, estamos quebrando algo dentro do sistema que está o tempo inteiro nos convidando para outras coisas mais "adoecedoras".
OP - Não seguir tendências em suas coleções é algo que te acompanha desde o início da carreira?
Sil - Sim, por "n" motivos. Primeiro porque nunca conseguia nenhuma tendência, quando chegava, ela já estava acabando. Acho que sou lenta. Tenho uma relação de lealdade com a vida, com as pessoas, com os hábitos e os atos. E a tendência é breve. Ela tem uma velocidade que não condiz com a lealdade.
Gosto de uma roupa que conte uma história, se envolva comigo, que tenha uma relação; que viva ela o tempo que quiser viver. Era antagônico e complexo.
A moda é muito bonita, fala de um contexto social no momento — mais do que se vestir, mais do que uma roupa. Mas, ao mesmo tempo, essa imposição de uma velocidade, não combina com a moda, ela enquanto essa relação com o social, o coletivo; com a efervescência do que está acontecendo no presente.
OP - Isso é algo que sempre percebeu ou teve algum momento de epifania? Um momento que você virou a chave e falou: "Não preciso seguir tendência, posso fazer no meu ritmo. Posso trabalhar do jeito que eu quero"...
Sil - É uma ótima pergunta. Acho que fiz isso porque sou rebelde e teimosa. Não aceito algumas coisas que são impostas. Comecei como um pequeno ato de rebeldia: "Bom, então vamos pensar em outro caminho dentro desse lugar, já que estão me dizendo que é assim, visto que talvez tenham outras pessoas como eu."
Acho que tudo foi para me encontrar um pouco com os meus. Onde é que está o meu povo? Esse que, talvez, veja, fale e se vista como eu. Cadê meu povo para conversar? Que fala essa língua dentro desta Torre de Babel.
Foi por aí que fui, tentando abrir brechas ou só conversar — não era uma rebeldia assim por ser, mas de como posso fazer para conversar de outra forma nesse lugar que desejo atuar, visto que não escolhi de verdade, fui escolhida.
Nasci dentro de um atelier de costura. Minha mãe costurava, era a costureira do bairro que vestia todo mundo, da fantasia de Carnaval ao uniforme de trabalho. Do pano de café que rasgou da vizinha e ela não tinha dinheiro para comprar outro. Essa é a vida mesmo real do povo.
Iam lá: "Dona Mandica, pode passar uma costurinha aqui, por favor? Para fazer o meu cafezinho". E ela estava sempre disponível. Era uma casa que não tinha tranca na porta, estava a todo tempo entrando e saindo gente.
OP - Você herdou isso dela?
Sil - Acho que herdei esse lugar de ajudar, tem um pouco de diferença. Tinha um olhar de tentar dar para aquela pessoa o que ela não estava vendo nela. Nasci em um bairro, Carlito Pamplona, que é ferroviário. Bairro das pessoas que trabalhavam na ferrovia, minha família é assim.
Meu pai era mestre de obras, mas minha família tem muitos ferroviários. E tinha uma coisa muito bonita no bairro do subúrbio — não sei se hoje é menos, por questão de violência — mas tinha muita irmandade, de um cuidar do outro; dos vizinhos serem famílias. Aquilo que faltava, todo mundo se juntava para ajudar.
Cresci nesse sistema de comunidade. Os filhos de todos tinham que obedecer todas as mulheres, não era só a mãe. Porque ela que ia trabalhar e as outras cuidavam, estavam ali, atentas. Cresci com isso de servir (e vendo) essas mulheres lavarem roupas cantando. Ficava ouvindo de manhã nos dias que não ia à escola, ou na volta dela, ou à tarde.
OP - Lembra de alguma música?
Sil - Núbia Lafayette. Sei tudo porque aprendi ouvindo elas e adoro o tom, que é um lamento. As mulheres que não estudaram música cantam no tom de um lamento — que acredito ter relação com a vida. E queria muito arrumá-las, deixá-las bonitas; dar para elas algo que não viam mais em si.
Então, ficava muito naquele lugar (de ajudar). Elas chegavam para (pedir algo) para minha mãe e eu dizia: "Faz esse vestido para ela. Mãe, faça esse aqui, ela vai ficar mais bonita".
OP - E você tinha quantos anos?
Sil - Na primeira roupa tinha 12 anos, e nunca mais parei. Não queria mais vestir o que a minha mãe fazia — acredito que (devido) a puberdade, já tinha outros desejos.
Não tínhamos dinheiro para comprar outras roupas e minha mãe falou: "Só tem três opções: ou veste o que faço, ou vai fazer a sua própria roupa do jeito que você quer, ou vai andar nua". Optei por fazer a própria roupa.
Fui fazendo também para as amigas e as vizinhas. Ficava nesse lugar de (sentir) um prazer imenso por levantar a autoestima — nem sabia que era esse o nome. Só queria deixá-las felizes.
OP - E como é a relação entre a autoestima da mulher e a moda? Como você enxerga?
Sil - Sabe aquele casamento, o match certo? Se a moda olhar para isso, ela consegue ter uma conversa muito bonita com a autoestima. Só precisa desse carinho. Acredito que por isso milito por uma moda sem ser datada, atemporal, com uma relação com o tempo.
OP - Você tem uma questão muito forte com a sustentabilidade. É algo orgânico ou em sua produção você percebeu que precisava ter um cuidado maior com o tipo de tecido que olhava, questão de aproveitamento maior daquele material? É uma coisa consciente?
Sil - É bastante consciente, mas vem também do lugar de onde venho e da relação de cuidado. Porque, com todo respeito, o pobre é bem mais sustentável, em todos os sentidos. Não tinha recursos para comprar matéria-prima no meu início, então desmontava roupas usadas e refazia com os retalhos que sobravam das roupas que a mamãe fazia. Era o meu exercício.
Aprendi muito a reutilizar e recombinar nesse exercício, que é um experimento extremamente criativo no fim das contas. Quanto mais você experimenta, mais se abrem as anteninhas da criatividade. Isso foi se dando a partir de um respeito, quase como se não pudesse trair esse lugar.
Então, ele é bem consciente. Qual é a minha relação com o pano? Por que tenho que cuidar um pouquinho, fazer a minha parte? Gosto da continuidade. Gostaria de estar viva (para ver) o meu filho continuar, os meus netos; de ver meus amigos bem, de ter uma relação bonita com esse lugar.
Não faz sentido ter sozinha e para isso preciso cuidar verdadeiramente da árvore, da planta. Do todo. No meu ofício, impregno isso mesmo. E tento impregnar verdadeiramente aqui: "A gente não pode reutilizar esse paninho para alguma coisa? Na minha terra isso aqui ia fazer falta".
Antes disso ser moda, era hábito. Por exemplo, a minha embalagem de entregar a roupa sempre foi uma sobra do tecido que vira uma embalagem. Sobra de aviamento vira uma alça. Lá atrás sofri até bullying das pessoas: "Mas essa embalagem não condiz com o seu trabalho". Mas condiz sim e briguei (por isso). E hoje estou na moda com a embalagem.
É isso. É de um cuidado, sabe? Tem várias sobras de malha que viram calcinhas. Tento não ter lixo, é muito raro. Os retalhos menores dou para uma artesã incrível que troco há bastante tempo, ela desenvolve bonecas.
OP - E quais são os custos de fazer uma moda como você faz?
Sil - O mercado é muito perverso. Ele não tem muito espaço para isso, para o tempo das coisas. Me vi sendo do tamanho que posso ser, do que dou conta de ser. Para isso tem esse lugar, não tem muito espaço para crescer. E aí, o que fiz? Fui batalhar para construir uma cena cultural. Se não sabiam ler o que eu fazia, comecei a falar de roupa única, porque era o possível a se fazer com os recursos (que tinha).
Vi a potência da criação e relação forte com o cuidado do planeta, e entendi que se não construísse esse lugar de compreensão, esse consumidor que soubesse ler o que eu fazia, não ia ter como (crescer). Não sabia fazer de outro jeito, porque também teve isso: fui empreender porque não tinha emprego.
Não davam emprego para aquela menina por vários motivos: carrega uma pele escura, é suburbana, estava propondo uma quebra de outros olhares. Mesmo dizendo: "Posso fazer outras coisas. Posso me render e fazer aquilo que você quer".
É de uma complexidade muito grande, (para o) mercado não é bem assim que a banda toca. Para a mulher preta, muitas vezes, o que resta é empreender, mesmo sem saber o que está fazendo. Mas ela precisa viver, ela se vira.
É a necessidade. Muitas vezes é a única forma de levar alguma comida para casa. Às vezes o que sobra é isso. Tem muita gente que cozinha lá no bairro de mamãe, ela mora na mesma casa até hoje. Se você fizesse essa pergunta: "Você tem lucro?", ela não saberia o que é lucro. Ela diria: "Eu como. Eu e meus filhos, a gente come". É muito nesse lugar.
Tem gente que se incomoda: "Mas você não quer ser grande?". Eu falo: "Eu tô ótima, consigo dar conta". Tem uma entrega bonita, consigo compartilhar com os outros, tenho colaboradores. Obviamente tem os desafios, tudo tem, mas é possível também achar uns formatos.
É muito doido, porque você vai ver lá fora e todo mundo é grande, e nem precisa ser. Aqui parece ter um incômodo.
Parece que o sucesso é só nesse lugar. Parece que só faz sucesso quando é bem grande. E o que faço? Milito, crio uma cena cultural. "Olha, vamos entender que tem outros grandes". É muito legal ter essa conversa com quem faz a comunicação, porque enquanto não olharmos para outros caminhos, eles não vão existir. E é bonito inspirar. Que venham outros. Que seja possível.
OP - E esse lugar seu tem muitos anos já?
Sil - Muitos. Porque tive que abrir muitos caminhos. As clareiras não estavam abertas. Fiz parte desse movimento da moda brasileira que é muito bonito. Tal hora estamos vendo que não é só uma latência local, é de um coletivo pensante e desejante de mudanças.
Essa onda cresce em outros lugares do mundo e vai se vendo que tem um tanto de gente também nesse lugar, independente da sua história de vida, mas que preza por ele. Tipo: "Ei, pera aí. Por que tenho que estar o tempo inteiro na velocidade? Por que não posso (ir devagar)?"
E aí nasce o movimento slow. Até por uma questão de saúde, espiritual ou emocional. De todas as formas.
OP - Quem se aproximou de quem? Você da moda ou a moda de você?
Sil - As duas coisas. Acho que foi um movimento, me encontrei com ela e ela comigo.
OP - Como é essa relação? É linear ou ela tem altos e baixos?
Sil - Altos e baixos. Tem uma frase de uma atriz daqui, que há muito tempo ela mora no Rio de Janeiro, que em uma entrevista ouvi ela dizendo: "Todo dia eu desisto de desistir".
Adoto um tanto isso, porque tem desafios muito severos que faz com que pensamos nesse lugar da desistência. Mas ao mesmo tempo, recomeço: "Não, não tem como voltar. Só posso ir". Já passei do ponto de voltar, terei que ir. Quando imagino que tenho que repensar todo um caminho com outra profissão, acho que tenho preguiça. Gosto tanto disso aqui.
Mas foram muitos avanços. Acho que hoje em dia, por exemplo, a pauta sustentabilidade tem outro olhar completamente (diferente) do que era antes. Era motivo de riso você falar disso. "Menina, 'tá doida?". E hoje não, temos uns avanços bonitos e concretos. É bem legal.
Ao mesmo tempo que digo que demorou, vejo também muitas concretudes — um alicerce bacana e bem feito. Acho que a coisa da demora fortalece esse lugar do "fiz bem feito aqui, então posso ir pro próximo degrau dessa casa que estou construindo". Dessa encruzilhada, não deixa de ser uma.
Não é que pessoas inquietas como eu estejam querendo mudar o mundo. Não, está tudo certo aqui, só queremos que tenha também um outro caminho. Por que não (existir) outra forma de fazer, de ser, de vestir? A inquietude que quero dizer é saudável, está olhando para um outro lugar do mundo. Me identifico mais nela do que naquele outro lugar que vou adoecer antes do tempo.
OP - Em 30 anos, sua marca sempre seguiu o caminho que você desejou, seja pessoal ou profissional, ou enfrentou desafios que fizeram uma mudança de rota, que levaram para outros rumos? Pode falar sobre eles?
Sil - Acho que não teria como não falar. Para responder, tenho que falar. Tiveram acontecimentos na minha vida que aceleraram um desejo que achei que ia demorar mais. Você está ali construindo um monte de estratégias para alcançar um ponto — de subir lá, botar minha bandeira naquele ponto mais alto da montanha — esse percurso sei que não faço em um dia, tenho que me preparar e leva tempo.
Desejava primeiro, quando comecei, só arrumar as pessoas. É isso que gosto, sigo fazendo. Como é que eu levo beleza para a Larissa? Como é que eu levo beleza para a vida? Estou olhando aqui para a Larissa (jornalista do O POVO) e vendo coisas nelas que sei que ela não está vendo.
Posso propor, a partir das minhas técnicas de estudo, alguns caminhos que sei que vão deixar ela feliz quando se vê assim. Só nesse lugar de: "Amiga, deixa passar aqui um lápis no teu olho só para você se ver diferente". E dele vai para um lugar de sustento, empreendendo ali.
Aí tem muitos desafios: gerir uma empresa, gerir pessoas e entender burocracia. A Receita Federal vai ser sua sócia íntima — não dorme contigo, mas você tem que sustentar a vida inteira. Impostos, contador, toda essa burocracia. É bem desafiador e complexo, e quem não tem recurso vai aprendendo perdendo, quebrando a cara e criando marra.
Isso, por exemplo, cria bastante rotas de desvio para cada vez que você tem que se refazer. Desenvolvi uma resiliência muito grande, porque ao longo desse tempo foram muitas rotas refeitas. O externo me trouxe surpresas.
Fui surpreendida por situações que tive que pensar rápido para não deixar de pegar o trem, para ele não passar e ficar (para trás), mas que me levaram de alguma forma. Acho que tem uma coisa muito bonita: nunca me perdi verdadeiramente da minha essência. Sou assim. Por mais que venha, estou ali firme, tem um propósito e eu confio.
Tem algo espiritual envolvido no viver, que quando confiamos, surgem uns anjos no meio do caminho. Tem sempre alguém que dá a mão. Acredito que somos anjos de uns e outros são da gente. É muito bonito esse encontro da beleza do humano, quando conseguimos nos encontrar com esse lugar de "olhar o próximo como a ti mesmo". É lindo não se perder desse exercício, porque é um sistema que está o tempo inteiro nos convidando a desumanizar, a individualizar,
Esse propósito maior de tentar me firmar, construir uma história e deixar o caminho aberto para quem vem depois propondo algo diferente — foi possível e está sendo. Talvez demorou, mas está chegando, está aqui. Já é possível contar uma história. Consegui o feito maior: permanecer.
OP - Você transformou a Praia de Iracema em um verbo ao chamar seu ateliê de Iracemar. Qual a importância de mantê-lo vivo? O que a Praia de Iracema representa para você, seu ateliê e suas peças?
Sil - Tenho uma profunda dívida de gratidão. Se não tivesse sido aqui, não teria conseguido ficar e nem continuar. O mar me salva bastante. É uma lifestyle estar em um bairro como esse. Nós precisamos adotar esse lifestyle de povos do mar. Somos seres do mar, mas esquecemos disso. Comungar isso é importante.
Aqui foi a primeira Z1, primeira colônia de pescadores, nosso primeiro porto. Tem muita história que é nossa — nossa ancestralidade — só que tiraram, a impregnando de outras coisas: de perigo, de violência, de "aquele lugar é muito misturado".
É louco escutar isso: misturado. Tem uma relação de racialidade, de classe; precisamos olhar para esses textos que vamos reproduzindo às vezes sem questionar. Aqui é um dos últimos redutos de charme que temos, se perdermos estamos ferradas.
A Cidade tá feia, hein? Na minha opinião, a cidade está horrorosa, com cara de banheiro. Nossos prédios eram lindos e charmosos. (E agora) está com cara de banheiro cafona. Quanto mais caro o prédio, mais feio ele é.
Éramos uma cidade de cadeiras na calçada para esperar o vento Aracati chegar toda tarde. Aqui (Praia de Iracema) ainda conserva isso, um lugar que se anda a pé. Foi impregnado que não era mais para andar a pé, porque é perigoso. Perigoso é uma rua vazia, não cheia.
Alessandra tinha uma frase muito bonita, quando ela olhava para algo: "Do tempo em que Fortaleza era vanguarda". Já fomos vanguarda nessa beleza e poesia. Então, como podemos conversar com o mundo e o progresso chegar, mas mantermos ali nossa poesia, beleza e singularidades de forma bacana — que converse com o novo de uma forma bonita?
Não somos contra o novo, só quero que a minha casinha baixinha fique. Minha árvore permaneça. Não precisa tirar minha árvore para estacionar seu carro, bota embaixo dela, vai até fazer uma sombra. É só sobre isso: como é que podemos ajustar?
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OP - Como você veio parar aqui na Praia de Iracema?
Sil - Foi o universo. É uma relação muito íntima, desde criança. Como sou esse ser que demorou muito a vir — quando vim já estava uma família bem dispersa, meus irmãos no mundo deles, minha mãe me trazia para a casa de uma amiga dela aqui, que me olhava para ela ir trabalhar.
Então cresci na "PI", ia para a piscininha todo dia. E todo dia dizia isso: "Vou morar nesse bairro. Vou morar nesse bairro". Minha mamãe dizia: "Tu não tem dinheiro para morar aqui". Falei: "Mas vou morar nesse bairro".
E vim morar quando estava mais adulta, já trabalhando. Vim morar na avenida Barão de Studart de esquina com a avenida Abolição. Tem um prédiozinho ali e morei lá dividindo com uma amiga, na casa da mãe dela.
Quando me casei já vim para essa casa direto. Morei em um apartamentinho enquanto ela estava em reforma. Foi isso. Quando fomos comprar a casa, tínhamos uma premissa, eu e Max, o meu marido: tinha que estar perto do mar, porque não sei viver sem o cheiro de maresia. Fico meio meio mal, sou viciada em maresia. Tinha que estar perto do mar.
Existia um olhar muito forte para a Beira-Mar, sempre teve e aqui era muito esquecido, muito barato, porque tinha esse estigma. Foi onde o dinheiro deu para comprar perto do mar. E aí era esse bairro muito bucólico, simples e bonito de vizinho ajudar o outro, que tinha uma relação bem bonita com o que eu já tinha. Aqui ficamos.
Antes já estava aqui perto e vinha vender pão — fazia pão integral e vinha vender todo dia no Cais Bar. Tinha uma relação bem íntima com o bairro, porque cresci vindo para cá. Conversava muito com os artistas.
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Hélio Rola é pai de uma grande amiga, amiga de infância, a Silvia, que é mais velha que eu um pouco. Então já conversava muito com essa velha guarda consciente, militante de uma cidade bacana para estar com arte, com esse outro olhar. E adorava uma coisa muito importante que os artistas da década de 1980 conseguiram, que foi a proteção de altura. Não temos os paredões (de prédio) aqui por isso.
OP - E a sua entrada pro Movimento Negro Unificado (MNU), como foi?
Sil - Não entrei, mas entrei. Quando era novinha, aos 18 anos, comecei a ir para as reuniões. Não consegui entender nada. Ficava meio confusa, sem saber direito como agir. Em alguns momentos não me senti acolhida. Era uma menina ali, nem sabia o que estava acontecendo, aí me afastei, fiquei bem longe. Não porque quis, mas, enfim, tinha uma idade também que tem muita coisa que se quer descobrir.
Já bem mais na frente, dei aula, queria ser professora. Trabalhei na Vila e lá tinha uma amiga do meu bairro, uma mulher negra que me dava muita consciência racial — conversava muito comigo sobre. Nesse processo fui lendo mais, ela me dava livros e me apresentava alguns caminhos.
Sou filha de uma pós-ditadura, tem muita coisa que não podia ser falada, era muito sutil as formas de entendimento e compreensão para mim que era novinha, e de como as coisas poderiam ser passadas.
OP - Em casa não tinha esse letramento?
Sil - Na minha casa até tinha, meu irmão foi um preso político. Minha mãe, por exemplo, me trazia menina (para): "Vamos eleger a primeira prefeita de Fortaleza". A mamãe me levava criança para os comícios de Maria Luísa; me levava para fazer abraço no Cambeba.
De certa forma, tinha uma consciência política muito bacana e forte que me fazia malhar. Aprendi a ler sozinha com quatro anos, era bem prodígio, e lia muito. Então ia para todo lugar que pudesse ter acesso a qualquer coisa que pudesse ler e me informar.
Em algum momento, que não sei direito quando foi, estava super amiga de militâncias negras importantes locais. Nessa troca, mesmo que não me filiasse exatamente, estava dentro do movimento negro. Foi e é muito importante. É interessante pensar enquanto coletivo.
OP - O que que esse coletivo reflete nas suas peças? Consegue fazer alguma relação?
Sil - Acredito que sim. Minhas estampas, por exemplo, conversam bastante com as cores e os traços do continente africano, de uma negritude. Tem aí umas pitadas. Gosto de uma coisa que parece, mas não parece, deixar ali uma uma pequena dúvida. Porque me entendo muito Exu, em um de: "Tenho capacidade de conversar com a casa grande".
Eu me pus nesse lugar. Fiz micropolítica a vida inteira. Quantas vezes, morta de cansada, ficava lendo os classificados para ver os eventos que estavam rolando, e dizia: "Vou me arrumar e vou, porque sei que só terá eu na plateia que não estará servindo o café, ou limpando e lavando o banheiro." Isso é uma forma de militância. O próprio jeito de se vestir, se impor, de ser (também).
Precisam olhar também para mim, para esse lugar que trago. Nessa outra conversa aqui nesse lugar respeitável, potente e que pode ser uma boa soma. Fui entendendo os códigos da casa grande e conversava muito com Adelaide Gonçalves, professora de História.
Ela tem um estudo em que usa uma frase extremamente racista ao contrário, que diz: "O negro que não conhece seu lugar é o negro que ousa adentrar na casa grande e dizer: 'Isso aqui também é meu'". Ela faz uma uma brincadeira ao contrário e diz: "Você é uma dessas. Ouse entrar. Adentre. Use os lugares, deite na cama deles. Com a comida deles, sente na mesa deles, tome banho na piscina deles. Faça isso".
OP - Você nunca se sentiu intimidada?
Sil - Muitas vezes.
OP - Mas não dava o braço a torcer.
Sil - Nunca, jamais, em tempo algum. Tenho uma personalidade forte que sustenta o campo. E fica às vezes numa teimosia: "Vamos ver quem sustenta". Como sou das permanências e hoje em dia tenho mais força, digo: "Olha, acho que consigo. Vamos negociar aqui, porque sou das que ficam".
Há muito tempo, quando nem se falava agênero, já tinha roupa aqui agênero. Nem sabia o nome, mas já dizia que pode vestir qualquer corpo. Sempre chamei de vestíveis, não vestidos. Vestíveis.
Pode vestir qualquer coisa: uma casa, um corpo, um carro, uma cadeira, uma parede. Fica a partir disso, de modelagens democráticas. Sei que vai vestir a Larissa, mas pode vestir o Samuel (repórter fotográfico do O POVO). Por quê não? Entre outros caminhos.
Fuá da Sil
Iniciado em 2020, o Fuá da Sil já faz parte da agenda cultural da cidade. Um dos desejos da estilista para o evento é que ele se torne um festival potente, cruzando as fronteiras da capital cearense, circulando por outros lugares e tocando outras pessoas.
Família
A família de Silvania de Deus está além da infância. Casou e teve um filho, Junan. Após a morte do marido, cuidou do filho de forma solo e adotou em seu coração a filha que a vida lhe deu, amiga de Junan. A missão era passar os melhores valores a eles.
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