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A vida compreendida por infâncias educadas em territórios violentos
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Jornalista, Professora, Empreendedora social, Mestre em Educação (UFC). Nesta coluna Cidade Educadora, escreve sobre os potenciais educativos das cidades, dentro e fora das escolas

A vida compreendida por infâncias educadas em territórios violentos

A gente nunca se acostuma com violência. Depende. Você fala de qual lugar?
A pedido dos familiares, os corpos de mortos durante operação policial no Rio de Janeiro foram expostos para registro da imprensa, e depois foram cobertos com lençóis (Foto: FABIO PORCIUNCULA / AFP)
Foto: FABIO PORCIUNCULA / AFP A pedido dos familiares, os corpos de mortos durante operação policial no Rio de Janeiro foram expostos para registro da imprensa, e depois foram cobertos com lençóis

Na minha trajetória como repórter, no âmbito da editoria de Cidades, uma das coberturas que mais me impactaram foi o ato infracional cometido por uma criança (11 anos) e duas adolescentes (13 e 14 anos) contra uma mulher na Praia do Futuro, em Fortaleza. A vítima, uma médica, havia sido esfaqueada duas vezes, nas costas, por uma das garotas, durante assalto.

Enquanto eram apreendidas e levadas à Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), a menina mais nova, em um relance de revolta, olhou pra mim e falou: “Pra que tanta confusão? Todo dia acontece isso na Luxou [favela localizada no entorno da Praia do Futuro] e nunca vejo vocês lá?”. Eu senti aquelas palavras profundamente, sem conseguir desviar meu olhar do dela, por alguns instantes.

Sim, mesmo diante da ação intempestiva e imatura do erro, ela entendeu tudo. Estávamos ali pela repercussão de a vítima ser uma mulher branca, de profissão com status social. A imprensa não estava ali por elas, pela comunidade delas, nem pela situação injusta em que elas foram criadas e que a conduziram à versão mais cruel de compreensão de sobrevivência nas favelas.

Anos depois, como professora de uma escola de ensino fundamental de tempo integral, no bairro Serviluz, em um contexto de correção de atividades, perguntei a um menino de 12 anos: “sua mãe ajudou você?”. Ouvi de uma voz perturbadoramente calma: “Não, tia, minha mãe já morreu. Mataram ela dentro de casa. Eu vi tudo”. Fiquei parada por um tempo com os olhos cheios de lágrimas e só consegui abraçá-lo.

Depois, pedi uns minutinhos para ir ao banheiro. Ele percebeu o que causou em mim. É devastador. Meu tempo nessa escola foi traumático. Eu chegava com mente e coração dilacerados, em casa, quase sempre. Mas eu precisava seguir acreditando no futuro de cada um deles, enquanto, no fundo, eu sabia que as memórias de violências diversas que eles sofriam ou vivenciam, em casa e nas ruas do bairro, alcançavam bem pouco daquilo tudo que eu lia para eles nos livros.

Em outro momento, como monitora de atividades de radioescola, em instituições de ensino fundamental e médio, no bairro Panamericano, adolescentes, vez ou outra, me perguntavam se ser professora valia a pena. Eu sempre dizia que sim, citando vantagens de esperança. Alguns deles ouviam com ares de deboche aquele discurso todo.

Costurando relatos de amigos como exemplos, eles tentavam me convencer de que o destemor e a ostentação nas trajetórias arriscadas e curtas do tráfico valiam muito mais. Uma frase dita por um deles nunca saiu de mim. “A gente pode até viver pouco, tia, mas vive passando bem, pode ajudar a família, experimenta o que é bom. A vida é mais o quê, além disso?”.

Por esses dias, uma amiga querida me enviou um vídeo que denunciava atos de violência cometidos por pessoas em situação de rua, na Beira Mar, contra praticantes de atividades físicas que madrugam na orla. Esportista também, ela estava preocupada com a nossa integridade.

Na mesma hora, fiz "palestrinha", dizendo que o ato deles estava errado sim, mas acrescentei que a bolha privilegiada só se incomodava com os invisíveis quando estes ousam tirar a paz, o conforto e a segurança aparente daqueles. Depois, arrependi-me até por ter falado assim.

O problema, de fato, é muito maior. Acontecimentos contados por si, separadamente, não dão conta do contexto de anos de injustiça e de realidades tão diversas em que todos nós estamos inseridos. Todos nós.

Nesta semana, no dia mais violento da história moderna do Brasil, que sacudiu o Rio de Janeiro, eu só conseguia pensar nas crianças e nos adolescentes dos territórios do Alemão e da Penha.

Inquietava-me imaginar tudo que elas sentiram, viveram e presenciaram; tudo, de dor, de terror e de medo, que elas terão que entender, esquecer, explicar, ignorar e sofrer. A situação me trouxe de volta essas e tantas outras histórias de injustiça social que as ruas e os chãos da escola me trouxeram.

Em todos os lugares, a cidade educa também para querer ser do mal e não se importar com o outro. A cidade também educa para a apatia, o egoísmo, a individualidade e a vingança social, quando dela só recebeu, ao longo da vida, as consequências disso, presenciando também a omissão do Estado no dever dele de garantir proteção e respeito, além do acesso a serviços públicos de qualidade.

Não quero terminar este texto tão fatalista, até porque as profissões que eu escolhi seguir na vida só sobrevivem em mim, todos os dias, porque eu insisto nesse olhar de encantamento e de esperança às rotinas.

Mas eu preciso dizer que, em paralelo à esperança, corre também, a indignação diante das desigualdades sociais sofridas, diante de tanto abandono e omissão do Estado.

Não temos controle sobre o que cada criança e cada adolescente vai fazer com as lembranças das tragédias sociais que elas experimentam.

Muitas delas, sim, irão ressignificar e reverter essas memórias para grandes feitos do bem. Mas algumas não vão conseguir, não terão a estrutura emocional necessária para isso e vão sucumbir.

E a derrota de cada um deles que não consegue ressignificar tanta dor vai voltar contra toda a sociedade. Porque não existe "eles", existe somente "nós". A conta da exclusão e da segregação social é paga no momento em que as bolhas de privilégios são incomodadas, confrontadas, feitas reféns, e estouradas.

Fundador da ONG Rio de Paz repudia megaoperação da polícia e critica governo estadual

Foto do Sara Rebeca Aguiar

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