Se a máxima da seleção natural propõe que os mais adaptados sobrevivem, na selva urbana de Fortaleza, os primatas de pequeno porte conhecidos como soins ou saguis (Callithrix jacchus) conseguiram resistir e se ambientar.
No campus do Pici, da Universidade Federal do Ceará (UFC), e no semáforo do cruzamento da avenida Desembargador Moreira com a rua Tomás Acioli, no bairro Dionísio Torres, o deslocamento desses animais entre os fios e postes elétricos vira atração para transeuntes mais atentos. O POVO também fez registro dos animais nos postes da Praça Joaquim Távora.
Para o frentista Henrique Soares, 27, que trabalha em um posto de gasolina em frente ao cruzamento, foi possível perceber um aumento no número de avistamentos desses animais, especialmente aos finais de semana, após podas de árvores na região.
Ao O POVO, a Autarquia de Urbanismo e Paisagismo de Fortaleza (UrbFor) informou que, de janeiro a junho deste ano, realizou 10.123 serviços de poda na cidade, realizadas de forma preventiva e por demanda, por meio do telefone 156 ou nas Centrais de Acolhimento das Secretarias Regionais, durante todo o ano, em todos os bairros de Fortaleza.
Nos meses de junho em julho, ocorreram 13 podas de árvore na avenida Desembargador Moreira, das quais oito não eram espécies frutíferas.
Segundo a pasta, os serviços de poda não configuram um fator determinante para o aumento da presença de saguis em áreas urbanas e que a ocorrência desses animais na cidade envolve múltiplos fatores ambientais e comportamentais, como o desmatamento, a oferta de alimento por moradores e a fragmentação do habitat natural.
Doutor em Biologia Animal e professor da Universidade Federal do Piauí (UPFI), o biólogo Robério Freire Filho explica que essas aparições, apesar de frequentes, refletem a perda de habitat desses bichos e não devem ser encaradas como naturais.
“A partir do momento que as áreas verdes são degradadas, destruídas, esses animais vão procurar algum lugar para se abrigar, e esses lugares passam, muitas vezes, por jardins, ruas que têm árvores. Eles vão literalmente tentar sobreviver, é a única condição”, detalha.
A expansão urbana na Capital faz com que esses animais utilizem os fios para se deslocar de um lugar a outro. Estrutura que “não tem função nenhuma, pelo contrário, é um grande indício de uma problemática de ausência de ambiente para esses animais”, ressalta o primatólogo.
“Como o animal não tem uma árvore para se pendurar, ele vai se pendurar no fio, em meio ao ambiente urbano. É como se a gente substituísse o fio por uma árvore, só que para esse animal, a árvore dá alimento; serve de local para descanso; serve de local para interação. No caso do poste ou do fio, funciona apenas como local de transição”, destaca.
O biólogo alerta que, em Fortaleza, “não existe, praticamente, fragmentos de mata. O que tem é um aglomerado de árvores em alguns locais. Nem fragmento não existe mais”.
Na pesquisa Tão verde quanto possível, publicada em novembro do ano passado, pesquisadores da UFC e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) identificaram que Fortaleza perdeu 83,7% da cobertura vegetal nativa.
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De acordo com um levantamento da Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis), foram lavrados 30 registros de autos de infração relacionados a desmatamento no primeiro semestre de 2025.
Sobre as áreas degradadas, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) afirmou que segue o que determina o Código Florestal, por meio da Lei n.º 12.651/2012, que trata do Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (PRAD).
"Quando há um processo relacionado a áreas de preservação ambiental ou locais mais sensíveis, o caso é analisado e, se necessário, solicitado ao responsável que apresente o PRAD, como determina a lei. A Seuma acompanha essas áreas com base nas informações que chegam por meio dos processos", diz um trecho.
Segundo o biólogo, “essa destruição faz com que esses animais saiam do ambiente deles e tentem sobreviver em algum lugar, em um ambiente urbano”, afirma o pesquisador, ressaltando que essa não é a condição natural desses animais.
Freire avalia que o desmatamento, independente da razão, proporciona desequilíbrios ambientais e afetam os serviços ecossistêmicos prestados pela fauna e flora local. “Eles têm uma função ecológica, seja de controle de pragas; seja de purificação do ar; uma série de coisas que os ambientes com árvores, com plantas, beneficiam os seres humanos”, afirma.
O primatólogo reforça que os animais não devem ser encarados como um problema. “O problema é que o ser humano e a população que convive com os soins degradam o ambiente deles, se aproxima deles, traz eles para a sua casa e aí você tem uma interação que não existiria se a gente tivesse mata, florestas, e se a gente soubesse coexistir com esses animais de uma forma mais equilibrada”.
Para o biólogo, faz-se necessário o fomento de estudos para entender a dinâmica desses animais em ambientes urbanos e, a partir daí, criar e ampliar políticas públicas capazes de garantir a proteção das áreas verdes restantes na cidade.
"Se está aparecendo mais primatas, possivelmente é uma percepção das pessoas, não tem um valor matemático ou científico. A gente teria que entender se esse valor aumentou ou diminuiu, mas esse monitoramento não é feito", pondera o pesquisador.
Questionada sobre os planos de manejo de fauna silvestre, a Seuma informou que, quando há formalização de processos relacionados a pedidos de afugentamento de fauna para fins de construção, funcionamento de empreendimentos ou licenciamento ambiental, em geral, a pasta aplica a Instrução Normativa n.º 06/2020, que trata da autorização para supressão, transplante vegetal e manejo de fauna silvestre no município de Fortaleza.
"O que está previsto na legislação e exige monitoramento por parte da Seuma é analisado dentro dos processos formais, ficando sob a competência da Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) atuar em casos de denúncias e ações de fiscalização", acrescenta.
Em fevereiro deste ano, uma mulher de 58 anos foi diagnosticada com raiva humana no município de Jucás, distante 421,32 km de Fortaleza, e relatou ter sido mordida por um soim.
A vítima buscou atendimento hospitalar após apresentar sintomas como náuseas, dificuldade de engolir e de falar e aversão à água (condição chamada de hidrofobia), sinais que são indicadores da raiva humana.
Em nota enviada ao O POVO, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) afirmou que há 23 anos não há registro de casos de raiva humana na Capital.
O primatólogo destaca que, além dos prejuízos humanos causados pela interação com animais silvestres, também é preciso considerar os danos causados aos bichos, como a transmissão do vírus da herpes, muitas vezes propagado na alimentação deliberada desses animais.
“O vírus da herpes, para a gente, é totalmente tratável. A gente pode comprar o medicamento, se vacinar; mas os animais não têm esses conhecimentos. O vírus da herpes é muito letal para os soins. Existem vários eventos de surtos de soins morrendo no Parque do Cocó, por exemplo”, alerta.