Sombra e Escuridão caminham silenciosos pelo alojamento arenoso. Com um olhar profundo e a pelagem acastanhada, os dois irmãos de onça-parda (Puma concolor) ainda não concebem a imensidão do mundo que deveriam habitar.
Eles chegaram ao Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ceará (Cetas-CE) no dia 14 de março de 2023, apreendidos de um zoológico do Interior. Eles tinham cerca de quatro meses de idade quando cruzaram o portão do Cetas-CE, no bairro Guajeru, em Fortaleza.
Hoje adultos em reabilitação, Sombra e Escuridão são dois entre os impressionantes 7.108 animais silvestres recebidos pelo Cetas-CE, de 2018 a 2024, aguardando para um dia somarem aos 5.313 animais já destinados no período.
Os dados são do Sistema de Gestão dos Centros de Triagem de Animais Silvestres (sisCetas) do Ceará, obtidos pelo O POVO+ por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Com 1.012
Fluxo de entradas e saídas de animais silvestres no Cetas-CE (2018 - 2024)
A maioria dos recebimentos do Cetas-CE (3.597) são por apreensões, ou seja, por ações de órgãos fiscalizadores que resultaram em infrações ambientais. Geralmente, são casos oriundos do tráfico nacional e internacional, acumulando histórias inacreditáveis para os desacostumados.
Em 2023, por exemplo, o Ibama apreendeu no Ceará um gecko-leopardo (Eublepharis macularius), espécie de réptil que ocorre no Paquistão, no Afeganistão, no Irã e na Índia.
Em outra ocasião, no mesmo ano, foi a vez de um axolote (Ambustoma mexicanum) ser apreendido. O axolote é uma espécie de salamandra endêmica do México, restrita aos lagos próximos da Cidade do México, e classificada como em perigo crítico de extinção pela Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN).
Quase extinto no habitat natural por diversos fatores, ele é paradoxalmente um dos anfíbios mais espalhados pelo mundo, especialmente em lojas de animais.
No entanto, ambos os animais têm a comercialização proibida no Brasil. Mesmo assim, é fácil encontrar na internet axolotes vendidos por R$ 300 a R$ 500, além de geckos-leopardos entre R$ 1 mil e R$ 3 mil.
Há, ainda, nove pítons, de cinco espécies diferentes, já recebidas pelo Cetas-CE: cobras exóticas costumeiramente vendidas ilegalmente. Delas, três foram apreendidas e uma foi resgatada. A jiboia (Boa constrictor), silvestre do Brasil, também é frequentemente resgatada pelos órgãos ambientais.
“Os animais são enviados pelo Correio, por aviões… Nós tivemos uma apreensão há mais ou menos um mês (em 2025) de quatro geckos-leopardos no aeroporto, eles vieram do Afeganistão para cá”, comenta Alberto Klefasz, biólogo e analista ambiental do Cetas-CE.
“Isso é tráfico internacional”, resume Klefasz. “Tanto é que, quando se faz a apreensão desse animal, a multa é tanto por você ter um animal sem autorização, porque é um animal silvestre, quanto por introdução de espécie exótica, já que é um animal que não tem ocorrência no Brasil.”
Por outro lado, é o tráfico nacional que realmente lota as dependências do centro de triagem. Passeando pelos recintos, nossos ouvidos são tomados por uma miscelânea de cantos de aves, o grupo mais afetado pelo tráfico: elas correspondem a 93,7% dos animais apreendidos no Ceará.
Entre 2018 e 2024, o Cetas-CE recebeu 5.933 aves, a maioria (3.372) por apreensão. Outras 1.314 por entrega voluntária, 1.063 por resgate/recolhimento e três como devolução de depósito de guarda.
Entenda os tipos de recebimento
O periquito-da-caatinga (Eupsittula cactorum) é uma das espécies mais afetadas no Ceará, sempre presente no top 5 de espécies de aves apreendidas, resgatadas, ou entregues voluntariamente.
“É sazonal. Tem a época que você fala: ‘Agora vai vir a carrada de periquitos’”, comenta Alberto. “É a época da reprodução, e é o típico animal de tráfico. Você vai na feira e tem aquelas caixas de papelão cheio de filhotinho que não tá emplumado ainda”, descreve o biólogo.
Ao mesmo tempo em que dão pistas das espécies mais afetadas pelo tráfico de animais no Ceará, os dados também contam finais felizes do combate ao crime contra a fauna silvestre brasileira.
Entre 2018 e 2024, mais de 5 mil animais foram destinados pelo Ibama, maioria para soltura (3.832), fechando para muitos o ciclo da reabilitação. Os 2.049 animais sem destinação seguem sob os cuidados do Cetas-CE, ainda reaprendendo a serem bichos ou constituindo novas famílias.
Destinações dos animais recebidos pelo Cetas-CE (2018 a 2024)
Há dois motivos principais para a “demora” na destinação de um animal: 1. quando o bicho é muito acostumado aos seres humanos ou muito antropomorfizado, dependendo de um período de reabilitação mais longo; ou 2. a espera pela formação de um grupo.
Os macacos-prego (Sapajus sp.), por exemplo, só podem ser soltos quando formam grupos familiares novos. Como qualquer ser vivo, há casos em que as personalidades dos indivíduos simplesmente não batem, exigindo dos conservacionistas a procura por novas combinações.
Os pintassilgos-do-nordeste (Spinus yarrellii) dependem da formação de casais para voltarem à natureza. Por ser uma espécie ameaçada de extinção, entrou como alvo do Plano de Ação Nacional para a Conservação das Aves da Caatinga (PAN Aves da Caatinga).
Uma das estratégias é manter uma população destes animais em uma área protegida, a princípio a Reserva Particular do Patrimônio Natural do Ceará (RPPN) Serra das Almas.
“Porém, pra gente poder manter uma população estável lá, precisamos ter uma quantidade de indivíduos que possam ser soltos. E aí não adianta você soltar só os machos, tem que ser, de preferência, em casais. E é difícil encontrar as fêmeas, porque o que são mais encontrados no tráfico são os machos”, descreve Klefasz.
“Inclusive porque eles (os traficantes) utilizam o macho do pintassilgo para reproduzir com a fêmea do canário-belga e criar o pintagol”, aponta.
Nos dados do Cetas-CE, constam o recebimento de dois pintagols em ocasiões diferentes. A produção e a venda desses híbridos não são autorizadas no Brasil.
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É por esses detalhes que a informação do sexo dos animais é crucial nos dados de recebimento e soltura do órgão.
Em geral, a maioria chega ao Cetas-CE com sexo indefinido, seja porque são muito jovens, seja porque a identificação do sexo depende de análises genéticas, como é o caso de algumas aves sem
Sexo dos três grupos mais recebidos no Cetas-CE
Fato é que destinar milhares de animais é trabalhoso e requer tempo. Se os traficantes sequestram centenas de animais em poucas horas, os conservacionistas lutam por meses e até anos para devolver algumas dezenas de indivíduos.
Mesmo assim, o esforço vale a pena. Desde 2018, o Cetas-CE conseguiu soltar 3.832 animais. A taxa de 54% de soltura em relação aos animais recebidos representa o verdadeiro contraste entre o lucro do tráfico e a peleja pela natureza.
“(Reabilitar e soltar animais) é um custo que não é baixo, né? Mas o retorno é importantíssimo: o animal voltar para um ambiente de onde ele não deveria ter saído. O Cetas não dá lucro, só custo. O lucro é puramente ambiental”, menciona o analista ambiental.
Entenda os tipos de destinação
Por outro lado, ao fazê-lo, os ambientalistas garantem ao mundo uma segunda chance. Os animais silvestres, em seus direitos constitucionais, recobram a vida livre.
Consequentemente, os ecossistemas têm a oportunidade de recobrar o equilíbrio. E nós, seres humanos ilhados em cidades, usufruímos de todos os frutos alimentares, ambientais e climáticos.
Infelizmente, nem toda destinação consegue terminar em retorno para a natureza.
Alguns bichos nunca conseguem ser reabilitados para voltar a sobreviver na natureza, ou por dificuldades físicas (como mutilações causadas por humanos), ou por comportamentos adquiridos na convivência com humanos que arriscariam a segurança do animal em vida livre.
Desde 2018, 211 animais foram destinados para cativeiros — empreendimentos licenciados para seguirem com os animais, como criadores científicos, criadores comerciais, criadores conservacionistas, mantenedouros e zoológicos.
É considerada a "última opção" quando a soltura não é viável, e os animais só são encaminhados após autorização das Comissões de Avaliação de Animais Silvestres (CAS). Não à toa, o cativeiro corresponde a apenas 3,97% das destinações no período histórico.
Dos grupos, os répteis são os com maior taxa de destinação para cativeiro (7,27%), com 60 indivíduos encaminhados para empreendimentos privados entre os 825 destinados.
Com o passar dos anos, os dados do Cetas-CE foram ganhando complexidade. A partir de 2024, uma nova destinação passou a ser categorizada no Sistema de Gestão dos Centros de Triagem de Animais Silvestres (sisCetas): a devolução judicial.
Em 2024, houve dois casos em que juízes ordenaram a devolução dos animais apreendidos aos infratores. Um deles é o macaco-prego (Sapajus libidinosus) apreendido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em Viçosa do Ceará, encontrado preso com corda em uma oficina.
“Os infratores entraram na justiça e o juiz simplesmente ignorou tudo que estava no processo (sobre maus-tratos) — porque o Ibama foi instado a se manifestar com relação a isso. E o juiz simplesmente ignorou, nem leu”, critica Alberto. “E o macaco segue com eles. Cabe recurso, o processo está em andamento.”
Além do macaco, um papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva) foi obrigado a ser devolvido judicialmente.
Por trás dos números, está a dedicação de profissionais que tentam, a cada dia, conscientizar a população sobre os direitos dos animais silvestres.
"Acho que é sempre importante a gente conscientizar as pessoas, para que elas saibam que ao entregar o animal para o órgão, esse animal vai ser bem cuidado, vai ser bem tratado", destaca Alberto Klefasz. "O centro de triagem tem profissionais especialistas, com experiência, e o animal vai retornar para a natureza na melhor condição possível."
"É muito difícil você ver quem trabalha com fauna nos órgãos ambientais sem gostar, sem se dedicar e sem ter a a humildade, saber que não sabe tudo e que sempre tem um outro que pode colaborar", reflete Roberto Cavalcante, biólogo e fiscal ambiental da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace).
Ele relembra quando se envolveu em um acidente de carro, saindo do Crato a caminho de Fortaleza. "Em Iguatu, a nossa viatura capotou. Eu tive um traumatismo craniano com sangramento. Mas eu liguei pro Alberto: 'Alberto, acabei de sofrer um acidente, meu carro capotou, tô com traumatismo craniano, mas eu tenho dois papagaios aqui na viatura que sobreviveram, dois papagaios dentro da viatura'", conta.
"Os passeriformes que estavam na traseira voaram, fugiram, não deu para ver. Tava uma bagunça só, tava chovendo. Mas os dois papagaios que a gente trouxe dentro do veículo, a gaiolinha amassou, mas eles sobreviveram. 'Eu vou deixar aí. Tu espera?' E lá estava o Alberto e a doutora Fernanda, veterinária daqui, dez horas da noite. É esse tipo de trabalho que a gente faz."
"A pessoa para trabalhar com fauna tem que gostar. Tem que gostar muito e tem que ser humilde. Porque a Biologia é um mundo, a fauna é um mundo."
Esses relatos ocorrem dentro de um cenário de baixo investimento em estrutura, algo perceptível na tendência dos dados. Em 2018, o Cetas fechou e entrou em restrição técnica de recebimento de animais, o que resultou em uma queda de recebimentos.
Naquele ano, registrou-se apenas um caso de apreensão de três periquitos-da-caatinga. Até então, o Cetas era, na prática, um depósito de bens apreendidos. “Aqui você andava e eram pilhas de lenha, de carvão, de rede de pesca… Você não via nada”, descreve Alberto.
Com o fechamento do Cetas em 2018, construiu-se um muro em volta do local, um corredor de voo para as aves e uma área administrativa. “A reforma não foi para ambientes de alocação de animais, foi a parte administrativa. Porque a gente ficava ali, junto com os bichos praticamente. Você ficava escutando arara berrando no seu ouvido”, relembra o biólogo.
“E elas são tão quietinhas, né?”, ri, ironizando. “A gente tem um colega lá do Rio Grande do Norte que até ficou com problema auditivo e paralisia facial de tanto barulho.”
Tipo de recebimento por ano (2018 a 2024)
O fechamento para reformas e a própria pandemia decorreram numa queda na apreensão e recebimento de animais. Foi somente a partir de 2023 que o Cetas-CE voltou a funcionar com mais firmeza — no entanto, ainda com instalações defasadas, na própria avaliação de Alberto Klefasz.
O que ainda precisa melhorar no Cetas-CE
“É a partir de 2023 que a gente tá começando a ter um cenário mais realista de apreensão e recebimento em geral de animais silvestres aqui no Cetas”, resume. Por consequência, é também uma janela para compreender a dinâmica do tráfico no Ceará.
“Daí a importância não só das ações de repressão, mas de combate ao tráfico de aparelhamento dos órgãos, no sentido de dar uma estrutura adequada para o recebimento dos animais”, defende o servidor. “Porque uma coisa atrela à outra. Se você melhorar as ações de fiscalização e de resgate, mas não tiver um local adequado para ir recebendo os animais, o fluxo não fecha.”
Apesar das diversas histórias contadas pelos dados do sisCetas, o sistem ainda tem muito a melhorar. Alberto Klefasz e Roberto Cavalcante descrevem que ele precisa de um controle mais apurado de entrada e saída de animais.
Por enquanto, não é possível identificar o histórico individual dos animais, com registros de idas e vindas a clínicas para procedimentos ou exames. Por isso, toda vez que um animal sai do Cetas-CE, ele obrigatoriamente entra na categoria de destinação “Outros” e, ao retornar, é contabilizado como um “novo” indivíduo.
Também seria necessário um banco de dados que permita o lançamento de fotos e informações visuais dos animais. Isso seria útil para a identificação de filhotes muito pequenos para microchipagem, assim como para monitorar a localização dos animais dentro do próprio Cetas (por exemplo, saber se eles estão na quarentena, em reabilitação, ou em outros recintos).
Do ponto de vista dos servidores, os dados do sisCetas são cruciais para pesquisadores conservacionistas. Infelizmente, o desfalque no quadro de funcionários do Ibama impede a apuração mais detalhada das estatísticas do sistema, mas Alberto ainda acredita que deveria existir mais demanda a partir da academia.
“Eu lamento que os pesquisadores (do Ceará) não procurem esses dados. A gente já teve casos de pesquisadores de outros estados que vieram consultar, porque não é todo estado que trabalha com soltura de macaco; nós somos um dos poucos que faz isso com macaco-prego”, exemplifica Klefasz.
Conheça as espécies dos 516 mamíferos que passaram pelo Cetas-CE
Entre histórias de chegadas e retornos, defasagens e vitórias, o Cetas-CE resiste como um portal para o futuro da fauna cearense.
O sisCetas é uma fresta para observar o esforço cotidiano de combate ao tráfico de animais, focado no resgate, na reabilitação e na devolução de animais silvestres para uma vida saudável e feliz na natureza, de onde nunca deveriam ter saído.
Os dados foram obtidos pelo O POVO+ por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), solicitados ao Ibama em dezembro de 2024. Eles correspondem aos recebimentos e às destinações de animais silvestres pelo Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ceará (Cetas-CE) entre os anos de 2018 a 2024, extraídos do Sistema de Gestão dos Centros de Triagem de Animais Silvestres (sisCetas).
Foram disponibilizados pelo órgão sete documentos, de 264 páginas no total, em formato .pdf. Os documentos originais podem ser acessados neste link. Essas informações foram sistematizadas, manualmente, no Google Planilhas pela reportagem, gerando um arquivo .csv. Os dados foram analisados usando a tabela dinâmica do Google Planilhas.
Para reforçar o compromisso com a transparência e a reprodutibilidade, O POVO+ disponibiliza os dados e códigos publicamente em seu perfil no GitHub, que pode ser acessado clicando aqui.
Série de reportagens aborda o universo do tráfico de animais silvestres e como instituições se mobilizam para combater as organizações criminosas