Em Icapuí, o mar manso é governado por uma maré que recua quilômetros pela manhã e, a partir das 13h, volta a encher. A imagem de uma orla tranquila, com barcos e jangadas encalhados à espera do retorno da água não consegue enganar os mais atentos. Porque basta olhar para trás e reparar na longa e elevada muralha de pedras, um paredão construído em meados de 2022, na tentativa de evitar o avanço do mar.
Há anos a comunidade de Barrinhas, assim como outras de Icapuí, tem visto a distância entre mar completamente cheio e área urbanizada reduzir. Mesmo no começo deste ano, uma faixa inteira da estrada à beira da orla foi totalmente destruída com a força natural e constante da água. Mas o mais dramático persiste no atual invisível: a quadra de esportes, a creche e as casas completamente engolidas pelo avanço do mar, antes localizadas onde agora descansam as jangadas na manhã que visitamos a região.
Quando chegamos na cidade, tudo ainda parecia normal aos nossos olhos. O paredão chega a ser bonito, com uma calçadinha projetada ao longo da barreira, servindo de apoio para admirar a areia molhada exposta, com jangadas e barcos um pouco maiores aguardando a maré subir para zarparem. Foi nesse cenário que passeamos com Aldeneide Silva, catadora de alga e marisqueira, acompanhada de longe da filha pequena, Ana Lavínia. “A natureza ninguém pode prender”, reflete.
“O paredão não vai resolver, mas vai amenizar. Só que só vieram construir depois… Na comunidade não tem creche pras nossas crianças”, lamenta. A preocupação é tanta que, apesar de ter crescido catando alga no mar icapuiense, de ter passado uma infância com o pé na água e de também depender financeiramente do mar, Aldeneide não deseja que a filha more na comunidade. Prefere que Lavínia, quando adulta, arranje uma casa perto da serra, bem longe da areia brilhante, do som das ondas e da destruição que com certeza virá.
O avanço do mar é uma das principais ameaças desencadeadas pelo aquecimento global enfrentadas no litoral nordestino; no Ceará, toda a beira do estado está sujeita à erosão costeira, que favorece o avanço do mar. Além de Icapuí, outros municípios do litoral enfrentam o mesmo problema, como Acaraú, Itarema e Trairi. No mapa abaixo, todas as regiões cearenses afetadas pela erosão costeira.
Majoritariamente, é possível relacionar esse avanço com o aumento do nível global do mar, por sua vez provocado pelo derretimento das geleiras no Ártico.
Clique nos ícones para ler sobre o estado das regiões afetadas pela erosão costeira
Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o nível do mar aumentou 3,2 mm/ano entre 2006 e 2015. Mesmo que a variação da maré e até do nível do mar sejam uma característica do ambiente, a professora Maria do Céu, geógrafa da Universidade Federal do Ceará (UFC), destaca que a velocidade com a qual ela tem ocorrido atualmente é fora do normal.
“É importante considerar que o aumento não é igual no planeta inteiro”, comenta Paulo Sousa, professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar/UFC). Afinal, algumas regiões são mais altas que outras: o nordeste brasileiro é mais plano, enquanto no sudeste a presença das serras reduz a vulnerabilidade dos estados.
Em dezembro de 2005, já começava-se a mencionar o termo “refugiados ambientais”, pensando na insegurança que os habitantes do arquipélago Tuvalu, um país da Polinésia, viviam pelo avanço do Oceano. Lá, as ilhas quase não passam de sete metros de altura, a mesma medida que o nível do mar pode aumentar se toda a camada de gelo da Groenlândia derreter.
Já existem muitas projeções de quão vulneráveis os países estão. Uma projeção da Climate Central, grupo independente de cientistas e comunicadores que pesquisam os efeitos das mudanças climáticas, mostra o avanço do mar nas próximas décadas.
Os mapas abaixo, desenvolvidos pela Climate Central, ilustram o avanço do mar (em vermelho) em 2030 e 2100. Você pode explorar o mapa arrastando com o mouse ou com o dedo:
São apenas oito anos para diversas ruas da Vila Velha serem afetadas pela água, ou para os espigões da Praia de Iracema começarem a sumir. Até 2100, a Praia do Futuro já terá avançado pelos estacionamentos projetados. Nesse tempo, São Luís (MA) começará a encolher, assim como a Ilha de Marajó (PA).
Em Icapuí, sumirão mais casas, arenas, creches e estradas.
Diferente da desertificação, o avanço do mar é um problema um pouco mais complexo de se resolver. De fato, apenas o freio no aquecimento global pode impedir a tragédia anunciada. “A ciência conhece os impactos, sabe o que vai acontecer. O que não sabemos é a extensão desses impactos, porque não temos dados de monitoramento de longo prazo”, comenta o professor Paulo Sousa.
De acordo com o professor, o Brasil carece de programas nacionais focados na coleta de dados; existem apenas algumas iniciativas, mais relacionadas ao funcionamento de portos ou para empresas privadas.
Em 2018, foi criado o Programa Nacional de Conservação da Linha de Costa (Procosta), pelo no objetivo de “solucionar a falta de dados confiáveis em escala nacional sobre a dinâmica costeira”.
No entanto, é difícil encontrar informações sobre a execução do programa, ou sites oficiais do Procosta que estejam funcionando. Por isso, entramos em contato com o Ministério do Meio Ambiente (MMA) nos dias 13 e 22 de setembro, por e-mail, questionando se o projeto está ativo e onde é possível acessar os dados de monitoramento costeiro. A pasta não nos respondeu.
Além de dados, os governos também precisam implementar definitivamente os planos de gerenciamento costeiro. No Ceará, essa prioridade é representada pela Política Estadual de Gerenciamento Costeiro e do Plano Estadual de Gerenciamento Costeiro. Os dispositivos legais foram instituídos pela Lei n° 13.796/2006, e estão sendo desenvolvidos pela Célula de Gestão Territorial da Coordenadoria de Desenvolvimento Sustentável da Secretaria do Meio Ambiente (Sema).
Um dos objetivos do plano é a definição de “padrões e medidas de uso e ocupação do solo da zona costeira, buscando evitar a degradação, a poluição e a descaracterização dos ecossistemas costeiros”. Ou seja, além de impedir mais ações humanas degradantes na costa cearense, será necessário repensar a ocupação dessas faixas. Significa, muitas vezes, impedir a instalação de mais casas e comunidades perto da praia, e tentar resguardar as que já existem.
Veja o avanço do mar em Icapuí no começo de 2022, antes da construção do paredão:
Sem dados e sem a implementação de uma gestão costeira, sobram as ações emergenciais. “A verdade é que agora se lida da forma que dá, e isso significa obra”, explica Paulo Sousa. Os paredões, os aterros e os espigões são medidas emergenciais contra o avanço do mar.
Em Icapuí, o começo do ano é o momento em que o mar está mais agitado. Foi quando começou a leva de devastação mais recente, com a destruição da estrada (da imagem comparativa acima) e de casas em reforma. Os moradores da comunidade tomaram a iniciativa desesperada de construir uma parede com sacos, operação cessada apenas com a construção do paredão no meio do ano.
Todas as manhãs, uma retroescavadeira ia para a praia juntar areia para criar um reforço. O mar levava tudo à tarde. E de manhã a retroescavadeira voltava. Quem conta é Maurício da Costa, presidente da Associação de Moradores de Barrinhas, enquanto mostrava as fotos enviadas por WhatsApp entre os moradores.
Foi necessário uma passeata com cartazes e gritos para que a prefeitura mandasse construir o paredão, na metade deste ano. Deu para a comunidade encontrar um pouco de paz, admite Maurício, mas ele também se preocupa com o impacto que outras localidades de Icapuí devem estar sofrendo sem a proteção.
Enquanto em Icapuí os efeitos das mudanças climáticas são gritantes, na serra do Baturité eles forçam o silêncio. No próximo episódio, a ser publicado dia 12 de outubro, viajamos até Guaramiranga para entender a extinção de espécies.
Pesquisadores consultados na produção do material: Maria do Céu Lima (UFC), Alexandre Costa (Uece), Paulo Sousa (UFC) e Jeovah Meireles (UFC).
MEIRELES, A. J. A. et al. Enfrentar as mudanças climáticas: plano participativo de Icapuí. Fortaleza: Ed. Fundação Brasil Cidadão, 2020. Disponível em: https://www.deolhonaagua.org.br/wp-content/uploads/livro-mudancas-climaticas.pdf
OPPENHEIMER, M., B.C. Glavovic , J. Hinkel, R. van de Wal, A.K. Magnan, A. Abd-Elgawad, R. Cai, M. Cifuentes-Jara, R.M.DeConto, T. Ghosh, J. Hay, F. Isla, B. Marzeion, B. Meyssignac, and Z. Sebesvari, 2019: Sea Level Rise and Implications for Low-Lying Islands, Coasts and Communities. In: IPCC Special Report on the Ocean and Cryosphere in a Changing Climate [H.-O. Pörtner, D.C. Roberts, V. Masson-Delmotte, P. Zhai, M. Tignor, E. Poloczanska, K. Mintenbeck, A. Alegría, M. Nicolai, A. Okem, J. Petzold, B. Rama, N.M. Weyer (eds.)]. Cambridge University Press, Cambridge, UK and New York, NY, USA, pp. 321–445. https://doi.org/10.1017/9781009157964.006.
PBMC, 2016. Impacto, vulnerabilidade e adaptação das cidades costeiras brasileiras às mudanças climáticas: Relatório Especial do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas [Marengo, J.A., Scarano, F.R. (Eds.)]. PBMC, COPPE - UFRJ. Rio de Janeiro, Brasil. 184 p. Disponível em: http://www.pbmc.coppe.ufrj.br/index.php/pt/publicacoes/relatorios-especiais-pbmc/item/relatorio-de-zonas-costeiras?category_id=19
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