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Barroquinha a Icapuí: por que o avanço do mar deve ligar alerta no litoral do Ceará
Reportagem Especial

Barroquinha a Icapuí: por que o avanço do mar deve ligar alerta no litoral do Ceará

Pesquisadores advertem que os municípios precisam se mobilizar com urgência para evitar mais impactos ao litoral do Estado. No início do mês, ondas assustaram moradores de Icapuí, no Litoral Leste, e ameaçaram casas e até um poste de energia elétrica

Barroquinha a Icapuí: por que o avanço do mar deve ligar alerta no litoral do Ceará

Pesquisadores advertem que os municípios precisam se mobilizar com urgência para evitar mais impactos ao litoral do Estado. No início do mês, ondas assustaram moradores de Icapuí, no Litoral Leste, e ameaçaram casas e até um poste de energia elétrica
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Até quem não acompanha de perto a dinâmica das marés do Ceará deve ter se assustado com as imagens que circularam nas redes sociais no início de março, mostrando a força da ressaca do mar na Praia da Peroba, localizada município de Icapuí, a 205,3 quilômetros de Fortaleza, no limite do litoral leste cearese. Casas e um poste de energia chegaram a ser ameaçados por impressionantes ondas do mar na localidade.

Cenas como essa, contudo, não são novidade no Estado. Em 2015, por exemplo, um dos pontos mais procurados pelos turistas que visitam Canoa Quebrada, em Aracati — a falésia com o desenho de uma lua com uma estrela — acabou sendo destruída pela ressaca do mar. O município é vizinho e já até foi sede de Icapuí, mas o problema nem de longe se restringe ao litoral leste.

 

"É preciso que os municípios monitorem seu litoral, definam as áreas que podem ser ocupadas. Há uma urgência para a elaboração desses planos" Eduardo Lacerda Barros, coordenador científico do Planejamento Costeiro e Marinho do Ceará

 

Entre as praias da Capital, parte do espigão da avenida João Cordeiro foi danificado em 2018. A força do mar causou, na mesma época, outros transtornos, como a queda dos tapumes da obra do Acquario Ceará, na rua dos Tabajaras, e a perda temporária da obra La Femme Bateau, de Sérvulo Esmeraldo.

Esses acontecimentos são justificados por uma soma de fatores, desde a tendência de uma praia a ter problemas erosivos até a forma como é pensado o planejamento urbano, conforme explica o pesquisador Eduardo Lacerda Barros, coordenador científico do Planejamento Costeiro e Marinho do Ceará. “O Estado tem 600 quilômetros de praia divididos em 20 municípios e quase metade deles tem problemas ou tendência a ter impactos com a ação das águas do mar”, aponta, de acordo com dados de 2018 do estudo Panorama da Erosão Costeira no Brasil.

 

No caso de Icapuí, Eduardo pondera que praticamente todo o trecho oeste do município apresenta tendência erosiva — que favorece o avanço do mar — de forma acelerada desde o início dos anos 2000. Além disso, a Praia de Peroba é a parte da cidade onde há maior ocupação humana mais próxima da faixa de praia, com atuação das ondas e marés. “Nessa situação do início de março ainda tivemos alguns agravantes, como a maré com a maior amplitude do mês e as chamadas ondas de ressaca, que ocorrem de forma corriqueira nos três primeiros meses do ano”, enfatiza o pesquisador.

O especialista explica que, diante de eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, os municípios com litoral precisam pensar em planos de adaptação às mudanças e na mitigação dos problemas enfrentados. “É preciso que os municípios monitorem seu litoral, definam as áreas que podem ser ocupadas. Há uma urgência para a elaboração desses planos”, alerta Eduardo. “Cenários como esse da Praia da Peroba vão ser cada vez mais frequentes se os municípios não trabalharem nessas medidas preventivas”, lamenta.

Raimundo Isael dos Santos, presidente da Associação de Moradores de Peroba, lembra que nunca tinha visto a maré de forma tão agressiva na praia, mas comemora que, desde o susto no início do mês, a situação segue mais tranquila. Ele explica que a administração municipal tem trabalhado em parceria com os próprios moradores para fazer intervenções emergenciais na praia, que contenham a força da maré, além de pensar em uma solução de contenção mais eficaz e ecologicamente responsável a longo prazo. A reivindicação da Associação é que a obra não prejudique as belezas naturais da praia e a vida em comunidade dos habitantes da região.

“A maré sempre muda por aqui, mas, dessa vez, houve um avanço muito maior, com altura de três ou quatro metros. É uma coisa preocupante, estamos estudando a melhor forma de fazer a contenção, que seja interessante para a comunidade, sem perder a característica do lugar”, enfatiza Isael. Em 2018, a gestão municipal tentou construir um paredão de pedras no local, mas a associação não aceitou e entrou com uma ação judicial, alegando que a estrutura causaria impactos negativos na localidade.

O prefeito de Icapuí, Raimundo Lacerda Filho (sem partido), disse que apresentou um novo projeto de contenção para a Praia de Peroba ao Governo do Estado, por meio da Superintendência de Obras Públicas (SOP). Ele explicou que a nova estrutura é feita de madeira e se baseia no que já foi construído por empresários locais da região. “É um projeto que combina muito mais com a paisagem da praia, estamos tentando fazer a contenção desta forma alternativa”, afirma o mandatário, que estimou cerca de oito meses para o início das obras.

A luta contra o avanço da maré é enfrentada pelo poder público municipal desde o ano de 2015, conforme aponta Lacerda Filho. Nesse intervalo, Icapuí já precisou lidar com a queda da estrutura de escolas e a destruição de habitações de pescadores, em virtude da força da maré. No total, foram investidos R$ 28 milhões em estruturas como os paredões de pedras para garantir a segurança dos moradores, relata. Conforme a Prefeitura, nos locais com as intervenções não houve mais problemas relacionados à maré. “O projeto é perfeito, não temos problemas de manutenção”, garante o chefe do Executivo.

O processo erosivo nas praias de Caucaia são um reflexo da falta de planejamento integrado entre os municípios, conforme especialista(Foto: (Thais Mesquita/OPOVO))
Foto: (Thais Mesquita/OPOVO) O processo erosivo nas praias de Caucaia são um reflexo da falta de planejamento integrado entre os municípios, conforme especialista

 

 

Planejamento do litoral deve ser realizada de forma integrada entre municípios, aponta pesquisador

Um erro comum entre gestores e outros setores da sociedade é considerar que os problemas com o avanço da maré são resolvidos com intervenções pontuais em algumas praias. A realidade, no entanto, passa longe dessa lógica, conforme explica Fábio de Oliveira Matos, professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ainda que seja necessário observar as particularidades de cada região, o especialista enfatiza a necessidade de planejar ações de forma conjunta.

“A zona costeira não encontra limites, divisas e fronteiras. Precisamos de um esforço nacional para monitoramento dos espaços costeiros, com uma política sustentável e com protagonismo para isso”, defende Fábio. Ele cita como exemplo a relação entre a Capital e Caucaia, município vizinho na Região Metropolitana de Fortaleza. “A ocupação que ocorreu em Fortaleza, sobretudo com a instalação do Porto do Mucuripe, resulta em um processo erosivo e na consequente instalação dos espigões da Capital, o que também gera impactos no litoral de Caucaia”, lista o pesquisador.

A gestão municipal de Caucaia, diante da problemática, está pretendendo instalar 11 espigões e um aterro hidráulico em um trecho de 8 quilômetros do seu litoral, entre as praias do Pacheco e da Tabuba. Em nota, a Prefeitura Municipal disse que o estudo realizado para a construção dos espigões foi feito pelo Instituto Nacional de Pesquisa Hidroviária (INPH), o qual considerou como o maior órgão de capacidade técnica do Brasil, em parceria com universidades do Estado. Além da instalação das faixas de pedra, a gestão explica ainda que o principal objetivo da obra é recuperar a faixa de praia, com previsão de uma “engorda” de pelo menos 40 metros de areia.

No entanto, os possíveis futuros impactos das intervenções em praias mais a oeste do Estado, como aquelas localizadas em São Gonçalo do Amarante (Colônia, Taíba e Pecém), preocupam o professor Fábio. “Há possibilidade de que os espigões ajudem a conter o processo erosivo de Caucaia, mas não surge uma possibilidade de o problema se expandir?”, questiona. Ele enfatiza que situações como essa necessitam de uma intermediação do Estado, para que as dinâmicas das marés de municípios próximos sejam analisadas de forma conjunta e as consequências sejam mais bem compreendidas. O POVO questionou a administração municipal sobre o cálculo de possíveis impactos em outros municípios, mas não foi respondido.

Fábio sustenta, porém, que a atual administração estadual está na vanguarda brasileira em relação à preocupação com o avanço das marés. Um exemplo, conforme o pesquisador, foi realizado na quarta-feira, 16 de março, quando o Ceará lançou o Observatório Marinho e Costeiro do Ceará (OCMCeará). A iniciativa é pioneira no Nordeste brasileiro e reunirá uma rede de profissionais e pesquisadores atuantes no campo da conservação e manutenção do ambiente costeiro e marinho estadual. Segundo Fábio, a rede criada para o monitoramento das manchas de óleo em 2019 também foi um importante ponto de partida para que os municípios passassem a trabalhar de forma integrada.

 

 

Mesmo diante dos avanços, Eduardo Lacerda Barros, coordenador científico do Planejamento Costeiro e Marinho do Ceará, reconhece que a gestão dos municípios ainda tem muito a melhorar. Ele aponta que a falta de continuidade entre os mandatos eletivos é prejudicial para a criação de uma política pública efetiva. “Dependendo da situação, não é algo que pode ser resolvido em quatro ou oito anos”, argumenta. “É preciso avançar muito nos municípios, contratar pessoas que entendam da dinâmica (do litoral), como geólogos, geógrafos, cientistas ambientais, oceanógrafos. São profissionais que têm a capacidade de interpretar esses fenômenos”, enfatiza.

Em plano federal, Oliveira Matos criticou a paralisação de políticas públicas de gerenciamento costeiro em nível federal nos últimos três anos, desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). Em fevereiro deste ano, o Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha (GT-Mar), do qual o pesquisador é integrante, se posicionou contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 39/2011, que pretende retirar propriedade exclusiva da União sobre os terrenos de marinha.

A medida, conforme o grupo de pesquisa, não vem para resolver problemas, mas sim para “intensificá-los e diversificá-los em função da privatização de lucros imediatistas e repartição de prejuízos com toda a sociedade”. O grupo argumenta que a mudança pode comprometer a questão ambiental, levando à perda da proteção costeira contra eventos extremos, promovida pelas praias, dunas, restingas, lagoas costeiras e manguezais. Ainda, há preocupação com a supressão do turismo diante da supressão das praias. A PEC foi aprovada na Câmara dos Deputados no dia 23 de fevereiro e segue para o Senado Federal.

Preocupado com proposições de medidas como essa e a insuficiência de monitoramento, Fábio alerta que a erosão das praias pode continuar acontecendo nos próximos anos. “Esse problema já está em uma constante no noticiário e pode se tornar cada vez mais presente nas manchetes. Daqui a um ano, eu posso estar falando sobre uma outra praia cearense que está sofrendo do mesmo problema de Icapuí ou do Icaraí, devido a esse conjunto de ações que seguem acontecendo contra os fluxos ambientais”, lamenta o pesquisador.

 

 

Década do Oceano

A partir de 2021, o mundo vive a Década do Oceano. Com ela, vem a percepção de que o Ceará e o mundo estão interconectados ― assim como todos nós. A Década da Ciência Oceânica (2021—2030) objetiva incentivar a pesquisa científica e desenvolvimento de tecnologias para agir em prol do Oceano. Ela foi instituída pelas Nações Unidas e preza pela colaboração internacional. Entre os objetivos do período estão construir um oceano limpo, saudável, resiliente, seguro e previsível.

 

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