Sob a luz amarela do poste, alumiando a noite vazia, por detrás da Catedral Metropolitana de Fortaleza, Thina subiu sobre saltos. No rosto, a maquiagem desenhava as sobrancelhas e encarnava os lábios volumosos. No corpo magro, recobrindo a pele negra, Thina travestiu-se. Junto a quatro amigas, a missão era sair de casa, serpentear o Centro até chegar a boate na avenida Duque de Caxias. Vencer os dois quilômetros era tarefa hercúlea quando, na década de 1980, um corpo reconhecido como de homem trajava um vestido. Esperta, Thina mapeou as vielas antes, soube em que ruas as duplas de policiais guardavam posto. Costurou cada via, mais que dobrou o caminho, espreitou o perigo pela recompensa.
"Era uma aposta. A gente queria ver quem tinha nascido para ser travesti. Duas foram presas, a outra tirou a roupa de mulher no meio do caminho. Não sei se foi destino, mas só eu e a Luba nos tornamos travestis", relembra quando Fortaleza foi para ela reviravolta.
Dos 57 anos que carrega Thina Rodrigues, hoje presidente da Associação de Travestis do Ceará (Atrac) e representante na Coordenadoria Especial da Diversidade, 40 deles têm Fortaleza como personagem. Nascida em Brejo Santo, os trejeitos muito femininos da Thina adolescente eram úteis à mãe na lida de casa, no cuidado muito atento que tinha de despender aos irmãos, mas também causavam vergonha. Quando o dissabor da homossexualidade descoberta foi maior que o amor, Thina viu-se sem chão. Ali, Fortaleza era sina.
Comum em muitas brenhas do Interior, Brejo Santo também tinha uma mulher que os infortúnios da vida transformou em louca. Motivo de chacota da meninada, a mulher pediu água na porta de Thina. Assustada, a menina lhe matou a sede, e a mulher profetizou. "Ela me disse: 'Você vai embora dessa terra e vai se encontrar'. Eu tinha 12 anos, e só me veio a cabeça Fortaleza, eu fui pelo anos procurando o caminho pra chegar aqui". Apartada da família, sem dinheiro, com a educação interrompida, Thina viveu, então, uma Fortaleza árida, até se reinventar.
A vida boêmia do Edifício Jalcy Avenida, os territórios separados por turmas na Praça do Ferreira, as boates e os cines-pornôs do Centro. A miscelânea de uma vida que Thina jamais ousou saber que existia, mas que seu íntimo sempre desejou. O corpo que vibrava ao subir aos palcos passou por muitas transformações. Foi ganhando volume nas ancas, os traços do rosto se redesenharam. Fortaleza foi liberdade e metamorfose.
Quando a democracia ainda engatinhava depois da ditadura militar, Thina foi presa por ser travesti. A Fortaleza amarga, longe de calá-la, mudou Thina mais uma vez. "Foi ali que comecei minha militância pelo direito das travestis". Primeiro, o direito de ser quem se é, depois a luta pelo nome social, em meio a isso, o cuidado com a vulnerabilidade das travestis que, assim como ela, tiveram a vida entrecortada pela prostituição. "Agora, a gente quer dar possibilidades as meninas. A travesti ainda não ocupa comumente espaços como o das universidades". Thina visita as travestis e tenta encontrar com elas outros caminhos. "Eu já ficava feliz quando elas conseguiam ser chamadas pelo nome que escolheram, imagina quando elas conseguem uma oportunidade", fala da Fortaleza de recomeços.
Na Fortaleza que é luta, Thina encontra também acolhimento. "Fortaleza é meu porto seguro, meu lugar de ter sonhos. O Centro, então, é tudo pra mim. Eu sou a cara de Fortaleza e ela é a minha cara também. Mas a minha Fortaleza é humilde, sofreu e lutou muito, mas cresceu e é livre".
Quando me reconecto com a Fortaleza
É programa do fim de semana: ela senta nos bancos da Praça do Ferreira e lê ou puxa prosa com algum conhecido com quem topou. Menina do Interior do Ceará, acha bonito o alvoroço do comércio daquele lugar da Cidade. Foi Thina que me contou isso, mas é também narrativa muito minha. Filha de Limoeiro do Norte e moradora de outras quatro cidade todas do Interior - dessas em que o senhor da esquina é parente meu ou de um amigo, a vizinha é pessoa de dentro de casa, e a vida segue mais arrastada - Fortaleza é pra mim, por vezes, tirana. Mas aí, calço chinelos confortáveis e vou tomar café no Centro. É instantâneo: cruzo a Duque de Caxias, passo ao lado do Parque das Crianças, e me reconecto com a Cidade com que vez por outra me aparto. Sinto o cheiro de batata frita da Barão do Rio Branco, bebo a água geladinha daqueles isopores em formato de coco, espalho "nãos" sorridentes para todos os vendedores de óculos da Pedro Pereira, me vejo num futuro que é já já quando me deparo com senhorinhas atracadas em pasteis na Leão do Sul, me encho de sacolas das coisas mais úteis e inusitadas, observo o ajuntamento de gentes muito diferentes e devo ter cruzado com a Thina uma porção de vezes. Ali, minha Fortaleza é encantamento.