"Ontem, os códigos; hoje, as constituições." A frase, de Paulo Bonavides, sumariza o projeto do professor de Direito e cientista político: sai o positivismo beletrista, entra o princípio democrático como esteio da aplicação e da interpretação do texto constitucional.
Humanista na acepção mais ampla do termo, vário no seu campo de interesses e obstinado nos ideais que perseguia, Bonavides, ou apenas "o professor", como tantos devem continuar a chamá-lo por muito tempo ainda, faleceu ontem, aos 95 anos.
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Natural de Patos, na Paraíba, era cearense de adoção. Lecionou por mais de três décadas na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ali, "formou gerações", como diz Arsênia Breckenfeld, presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE).
"Paulo Bonavides semeou o constitucionalismo brasileiro com dedicação e brilhantismo, contribuindo com conceitos essenciais através de suas obras, os quais ainda hoje protegem o texto constitucional de arbítrios hermenêuticos", avalia a advogada.
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LEGADO de Paulo Bonavides estará presente por gerações no Direito, na sociedade e na democracia
E não foram poucas as investidas contra a carta magna na história recente do Brasil, tampouco somente de natureza hermenêutica. Seja "na longa noite da ditadura" ou nos anos que se seguiram à Constituinte de 1988, Bonavides pelejou não só contra a exceção e o império da força, mas também a favor de que o Estado brasileiro se democratizasse, ampliando seus espaços de participação.
"A produção do professor não era sobre um Direito Constitucional qualquer, era sobre uma visão do Direito Constitucional democrático", enfatiza Cynara Mariano, professora de Direito da UFC. "Temos grandes constitucionalistas no país inteiro, autores de obras paradigmáticas, mas que não tinham essa visão do estado democrático na centralidade do Direito e não tinham essa visão humanista."
Para ela, em seu trabalho, Bonavides conferiu materialidade a um "Direito Constitucional democrático" quando essas expressões não estavam em voga e eram vistas de revés no campo jurídico. Foi, por essa razão, um pioneiro, incorporando "nas suas obras a atualização do pensamento constitucional norte-americano e europeu".
"A grande importância do professor é que, até a II Guerra Mundial, o Direito Constitucional não era um ramo tão valorizado no meio jurídico", analisa Fernando Castelo Branco, professor de Direito Constitucional da Universidade Regional do Cariri.
Nessa época, continua o docente, "os códigos eram mais valorizados, Código de Processo Penal, Código Civil, e nossa tradição era mais legalista". Apenas com "Bonavides e os estudos constitucionais do pós-guerra é que vamos ter uma discussão sobre democracia e a aplicação dos princípios constitucionais para a democracia".
Castelo Branco acrescenta: "Era também um jurista com uma bagagem cultural incomparavelmente mais ampla que a maioria dos juristas, uma cultura universal, e isso se traduz nas suas obras e na leitura que faz da realidade".
Erinaldo Dantas, presidente da OAB-CE, concorda: "Ele foi um intelectual, defensor da democracia e visionário no âmbito do Direito, consagrando-se como um dos maiores constitucionalistas da história do nosso país. O professor fará muita falta não apenas aos cearenses, mas aos que estudam Direito no mundo inteiro".
Advogado e conselheiro federal da OAB, André Costa sublinha um aspecto nas reflexões do professor: a atualidade. "O seu protagonismo e o seu exercício profissional sempre na afirmação do Direito Constitucional e do Estado Democrático de Direito é um exemplo para quem pretende fazer valer os direitos fundamentais, o regime democrático, o respeito às instituições e a consolidação dos valores republicanos".
Direitos, democracia, valores: um trinômio-chave para que o empenho de Bonavides, a que o ministro Luís Roberto Barroso se refere como "a chama acesa do constitucionalismo", não se dissipe ante quaisquer ações tramadas contra Constituição - ontem e hoje.