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Há 10 anos, motim de policiais derrotou governo e reinventou oposição no Ceará
Politica

Há 10 anos, motim de policiais derrotou governo e reinventou oposição no Ceará

Na virada de 2011 para 2012, o Ceará parou com medo da violência, enquanto policiais militares paralisaram as atividades. Aquele movimento afetou os indicadores da segurança pública, projetou políticos, afetou governos e até hoje ecoa no Ceará
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AGENTES das forças de segurança do Ceará se amotinaram há uma década (Foto: Deivyson Teixeira, em 04/01/2012)
Foto: Deivyson Teixeira, em 04/01/2012 AGENTES das forças de segurança do Ceará se amotinaram há uma década

 

 

No último dia 6 de dezembro, o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, foi entrevistado na rádio O POVO CBN e o assunto mais quente foi o motim de policiais militares ocorrido no Ceará em fevereiro de 2020. Moro visitou o Estado na época e, na entrevista este mês, considerou que o governador Camilo Santana (PT) destruiu as pontes que poderia haver com os manifestantes. O governador reagiu: "Compactuar com atos criminosos, jamais!"

Na eleição para prefeito, em 2020, motim policial já foi tema central em Fortaleza. O embate entre Moro e Camilo indicou que também nas eleições de 2022 o tema estará presente. Até porque é pré-candidato a governador o deputado federal Capitão Wagner (Pros). O motim de 2020 tem suas raízes bem antes. Ele começa no sucesso obtido em outra paralisação de policiais militares, ocorrida há dez anos, na virada de 2011 para 2012.

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Foi aquele motim que projetou Capitão Wagner como um dos protagonistas na política estadual. Ele mudou a segurança pública no Estado, com impacto direto nos indicadores. Mudou a relação, até hoje tumultuada, entre governos e polícias no Ceará. Marcou a trajetória de poder do grupo Ferreira Gomes. Construiu um novo campo de oposição, que pretende em 2022 chegar ao comando do Estado.

Aquele movimento teve uma diferença crucial em relação aos outros dois que ocorreram no Ceará, o de 1998 e o de 2020. O de 2011 para 2012 foi o único em que os amotinados saíram vitoriosos.

 

 

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Conseguiram incorporação de gratificação aos vencimentos, redução de carga horária de 44 horas semanais para 40 horas semanais e anistia aos participantes do motim. Outras pautas ficaram para ser negociadas depois, relacionadas a promoções, hora extra a quem trabalha no Interior e auxílio-alimentação.

Anistia total foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela presidente Dilma Rousseff (PT) em 2013, e beneficiou policiais amotinados de 17 estados e Distrito Federal. No Ceará, ao menos 350 policiais processados pelo Ministério Público foram favorecidos. A lista dos que respondiam a inquérito, com ou sem indiciamento, chega a 1,2 mil militares.

Chama atenção que tenha havido anistia em paralisações em 18 unidades da federação. O sucesso dos movimentos fazia com que a forma da manifestação ilegal se propagasse. E foi assim que os resultados obtidos em 2012 — e ainda mais a vitória política — estimularam os policiais a parar em 2020.

Muitos dos que participaram deste último nem eram policiais ainda em 2012. Mas, conheciam a história, admiravam o levante de dez anos atrás. Nutriam a ideia de que, se quisessem, poderiam obrigar o governo a atender qualquer reivindicação que tivessem. Intimamente, muitos queriam participar de um movimento como o que se deu há uma década.

Em 2020, o tratamento foi outro. Mais de 300 policiais foram denunciados e já houve expulsões, outras punições e investigações prosseguem.

O motim de 2011/2012 teve grande repercussão política. Principal líder, Capitão Wagner era suplente de deputado estadual. Naquele ano, se tornou o vereador mais votado da história de Fortaleza. Em 2014, foi o deputado estadual mais votado da história do Ceará. Em 2016 e 2020, disputou o segundo turno das eleições da a prefeito da Capital. Desde 2019, é deputado federal, mandato para o qual foi o mais votado do Estado.

 

 

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Outro que se projetou foi Cabo Sabino, também um dos líderes do movimento. Em 2014, foi eleito deputado federal. Mas, não se reelegeu em 2018. Em 2020, voltou a liderar o motim. Porém, com o fracasso do movimento, não houve os mesmos benefícios políticos. Candidato vereador na eleição daquele ano, Sabino teve 2.589 mil votos e não se elegeu. Em 2021, foi expulso da Polícia.

Outros líderes do movimento pelo Estado também se deram mal. Sargento Ailton (MDB) teve 1,4 mil votos para vereador em Sobral e não foi reeleito. Um soldado que chegou a ser preso após publicar ofensas contra Camilo Santana (PT) e oficiais do alto escalão da Polícia Militar teve votação ainda menor em Fortaleza, com 400 votos.

O que se repetiu entre os movimentos tanto de  2011/2012 quanto de 2020 foi o impacto nos indicadores de segurança pública.

Em 2012, os homicídios no Estado tiveram aumento de 32,9%. Só em 2019 os indicadores retornaram a patamar igual ou menor que o que tinha em 2011. E aí, em 2020, houve o novo motim. Naquele ano, o aumento dos homicídios foi de 78,9%, o maior já registrado na história.

 

Crimes violentos letais intencionais no Ceará

 

Em 2020, entre os dias 19 de fevereiro e 1º de março, período no qual durou o motim iniciado no fim da tarde de 18 de fevereiro, foram assassinadas 312 pessoas no Ceará. Naquele mês de fevereiro, houve 456 homicídios, crescimento de 178% em relação ao mesmo mês de 2019.

Uma década após a paralisação de trabalhadores de maior impacto político na história do Ceará, os jornalistas do O POVO Cláudio Ribeiro, Demitri Túlio e Henrique Araújo, que participaram da cobertura dos dois motins, analisam os impactos que perduram até hoje na política e na sociedade.

LEIA AS ANÁLISES |

Cláudio Ribeiro: Sobre 2012 - e também 1997, 2020 e 2022

Henrique Araújo: Motim de 2012 — repercussões políticas

Demitri Túlio: Novos políticos tradicionais

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Manifestantes em motim, alguns com rostos cobertos
Manifestantes em motim, alguns com rostos cobertos

Sobre 2012 - e também 1997, 2020 e 2022

Estamos falando de um motim policial de dez anos atrás no Ceará. Absurdo sob qualquer hipótese, seja pela ilegalidade ou como os fatos se deram para a vida do cidadão. Já faz algum tempo, mas o tema-problema só se agravou desde então — como vimos em 2020, alguns dias antes da pandemia desabar em nosso cotidiano. E tudo que se sucedeu com esse caso lá de 2012, como bem disse à época o promotor de Justiça Militar estadual, Joathan de Castro, abriu precedentes para situações piores.

"Foi violento. Foi muito mais um motim do que uma greve e envolveu práticas criminosas", analisou o promotor já em 2013 — um ano depois —, quando comentava a proposta de anistia aos amotinados articulada via projeto de lei pelos parlamentares da ocasião. Ali costuravam um acerto para perdoar a quem não cumpriu o serviço essencial de garantir segurança pública. Joathan de Castro alertou: "Isso abre um precedente gravíssimo".

Até lembro de um momento mais tenso ainda, no motim anterior, de julho de 1997, quando o então comandante da PMCE, coronel Mauro Benevides, foi baleado em frente ao Palácio da Abolição - ao que consta, a bala teria partido da arma de um dos grevistas. Sua vida teve a sorte de a bala seguir para o ombro e não para o coração ou outro órgão vital.

E o que houve então em 2020, seguindo a previsão dada pelo promotor? Os insurretos, só para usar uma palavra mais rebuscada e não menos grave, agiram à margem da lei. Aqui nem é uma opinião, mas a descrição fiel dos acontecimentos: tiraram as fardas e seguiram com as pistolas na cintura, cobriram o rosto com balaclavas, subiram em viaturas (no capô ou nas portas) e esvaziaram seus pneus, mandaram que os comerciantes fechassem seus estabelecimentos, usaram quartel como acampamento para familiares e como um QG do motim, para o movimento discutir percentuais de ganhos salariais e seus futuros perdões pelos atos. Não pareceu ser somente indisciplina.

No caso das culpas, essas vêm sendo cobradas com algumas expulsões e uma CPI está mexendo no baú que patrocinou o motim mais recente. Estão usando uma regra básica de investigação - "siga o dinheiro" - para saber quem bancou a história toda.

Dos bastidores de 2012, consta que restaram pouquíssimos oficiais de alta patente que não se abraçaram ao levante naqueles dias. Disse uma fonte que viveu aquele ambiente de perto: "dava para contar nos dedos de uma mão" os que seguiram fiéis ao então governador Cid Gomes. Até gente da Casa Militar teria abandonado o barco e recuado em seguida. Fora um réveillon sem ter de fato a que brindar. Hoje se sabe que aquela anistia custou muito caro.

Deixo até a questão política, do que virá neste ano eleitoral de 2022 com a afinidade entre polícias e o atual Governo Federal, para que outros colegas comentem. Não dá para negar que aqueles momentos foram uma gênese do que está posto.

Capitão Wagner discursa, em 3 de janeiro de 2012, dia chave do motim de policiais
Capitão Wagner discursa, em 3 de janeiro de 2012, dia chave do motim de policiais

Motim de 2012 — repercussões políticas

Dez anos atrás, a paralisação da PM cearense consolidou uma plataforma política e projetou nomes que, hoje, se constituem nos principais opositores do projeto hegemônico no estado, a saber: a aliança PT/PDT, representada por Cid Gomes, Camilo Santana, Ciro Gomes e Roberto Cláudio.

Deputado federal com maior número de votos em 2018, Capitão Wagner (Pros) é o mais expressivo, mas não o único. Daquela onda despontaram outras lideranças, como Cabo Sabino, que se elegeria depois para a Câmara dos Deputados — não reeleito, acabaria se envolvendo com o motim de 2020 e sendo expulso da PM.

Sargento Reginauro (Pros) e Soldado Noelio (Pros) são outros dois expoentes desse espraiamento da agenda corporativo-militar que colheu seus melhores frutos entre 2014 e 2018, quando um candidato a presidente sintonizado com essas pautas chegou à Presidência da República.

De algum modo, o sucesso de Jair Bolsonaro naquele ano e a progressiva organização política de policiais militares estão conectados, sendo a candidatura do ex-capitão um índice forte dessa tendência. Ainda que constitucionalmente militares não possam se articular politicamente em torno de entidades ou associações, foi exatamente o que aconteceu na última década.

O resultado está aí: uma representação mais ampla e presença de variadas patentes nas casas legislativas. Seja nas Assembleias, seja no Congresso, os capitães e demais hierarquias se beneficiaram dessa convergência de energias, alcançando força inédita e pressionando o governo, de modo a obter vantagens no orçamento - vide reforma da Previdência.

Qual o cenário hoje? Há dois aspectos a se observar. Localmente, o movimento de PMs e seus núcleos organizacionais sofreram dura derrota em 2020, não apenas em relação aos parcos ganhos da paralisação, que tentava reeditar o sucesso do motim de 2011/2012. Mas porque, e principalmente, suas lideranças foram punidas - legalmente, sofreram sanções cuja rigidez variou, chegando à perda de vínculo com a PM.

Houve punição também nas urnas. Basta que se diga que nenhum dos líderes do motim de um ano atrás logrou êxito eleitoral e aquele a cuja imagem o movimento se ligou mais fortemente, Capitão Wagner, ainda sofre desgaste por causa do desfecho desfavorável daquela empreitada.

O segundo aspecto diz respeito ao prejuízo que o estreitamento entre militares e bolsonarismo acabou por causar aos fardados, sejam os das forças armadas, arrastados para a arenas política, sejam as forças policiais estaduais.

Em resumo: se, do ponto de vista político, o motim do início dos anos de 2010 foi determinante para impulsionar uma oposição vigorosa fora dos âmbitos tradicionais e das zonas de atuação dos atores políticos, impondo dificuldade aos governantes - primeiro Cid, derrotado na queda de braço com os militares, e depois Camilo, que endureceu contra os policiais -, o fato é que o movimento de 2020, com seus erros em sequência, findou por fragilizar ou mesmo desmantelar a organização desses grupos e causar danos à imagem dos PMs-políticos ou políticos-PMs.

Se Wagner continua hoje detendo grande força eleitoral e capital político próprio, isso se dá a despeito do motim e se justifica com base na trajetória do parlamentar, cujo raio de influência não se limita aos quartéis, mas capitaliza e direciona também insatisfações com a máquina governista, que já deu mostras mais do que evidentes de cansaço nas eleições do ano passado.

Policiais do Raio aderiram ao motim
Policiais do Raio aderiram ao motim

Novos políticos tradicionais

A Polícia Militar salva muita gente todos os dias. Fui policial durante cinco anos e conheci muitos PMs - de soldado a coronel - que pautavam o ofício com essa incumbência. Não é fácil estar dentro de uma farda e, cotidianamente, ir às ruas para manter os outros seguros e ainda voltar vivo para casa.

Porém, a polícia ainda mata muito. Exclusivamente na periferia. Não vou me apegar a números nem a estatísticas. O assassinato de um único inocente é uma repercussão imensurável de dor e de perda material para a família vitimada e uma ferida na nossa noção de civilidade. Principalmente quando ferida é provocada por um PM.

Falo de inocentes, mas a morte de quem é considerado "bandido" também não pode ser encarada com normalidade nem incluída no universo de seres vivos "matáveis" por causa de uma política social discriminatória. Aquele que, por algum motivo, burla o padrão de convivência não é um "matável". Tem de ser investigado, preso e julgado segundo os acordos civilizatórios.

E o que teria isso a ver com o motim da PM de 2012, que está completando dez anos? Tem uma relação próxima. Ou pelo menos teria de ser uma das facetas políticas encaradas pelo grupo que liderou o movimento e, depois, aproveitou para chegar à Câmara Municipal, à Assembleia Legislativa e à Câmara Federal.

Passados dez anos do motim, o que teriam a população e a segurança pública do Ceará ganhado com o movimento de 2012? O que os líderes, depois políticos eleitos, contribuíram de concreto para a busca da paz coletiva?

E não vale se esconder na desculpa que, por serem de partidos de oposição, não tiveram espaços. Jair Bolsonaro, eleito em 2018, é guia de todos que encabeçaram o motim e, nem assim, houve contribuição real nos últimos três anos no Ceará. A começar pela transformação de uma polícia que pare de matar pobres e negros na periferia.

O problema, talvez, tenha sido o surgimento de lideranças pouco afeitas ao coletivo e voltadas, prioritariamente, com projetos individuais de vida. Repetindo o modelo viciado de políticos tradicionais - de oligarquias rurais, empresariais e de líderes por acaso. Gente que se deslumbra com o poder político individualizante e tomados por um oportunismo corporativista cego.

É uma pena, mesmo sendo um motim armado e tendo colocado a população em risco de morte em 2012, achei que poderia sair dali algum líder com autocrítica sobre o ocorrido perigoso e se voltado para os temas coletivos. Principalmente na área da segurança pública.

Aquele motim pariu outro, também desastroso. Com uma intransigência para o diálogo que beirou o fascismo. Com omissão perigosa, inclusive, de um ministro da Justiça - na época Sergio Moro. Além do próprio presidente da República e seus puxa-sacos.

Infelizmente, o motim fez surgir "novos" políticos "velhos". Tradicionais. Quase nada de diferente em comparação aos que se perpetuam há décadas na política em Fortaleza e no Ceará. Muda somente a sigla partidária e o discurso próximo a cada eleição.

Não há problema em serem eleitos políticos oriundos das polícias. É legítimo. O lamentável é o uso dessa liderança enraizada na velha política e em um projeto individual de poder.

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