Logo O POVO+
Autuações de crimes ambientais caem pela metade no Ceará
Reportagem

Autuações de crimes ambientais caem pela metade no Ceará

Autuações envolvendo crimes ambientais antes corriqueiros caíram para zero nos nove primeiros meses deste ano
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
MULTAS POR TRÂNSITO irregular em Jericoacoara correspondem a 90% das autuações do ICMBio em 2019 no Ceará (Foto: MATEUS DANTAS, em 6/6/2017)
Foto: MATEUS DANTAS, em 6/6/2017 MULTAS POR TRÂNSITO irregular em Jericoacoara correspondem a 90% das autuações do ICMBio em 2019 no Ceará

Órgão máximo da fiscalização de unidades de conservação federais do Brasil, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) tem funcionado neste ano no Ceará mais como órgão de trânsito de Jijoca de Jericoacoara. Entre as 36 autuações lavradas pelo órgão de janeiro a setembro, 32 envolvem infrações de trânsito nas dunas da praia paradisíaca.

Ou seja, mesmo com o amplo rol de ações alvo da fiscalização do ICMBio - desde desmatamento até obras ilegais em áreas verdes, por exemplo -, quase 90% de todas as multas feitas em 2019 pelo órgão no Ceará foram por trânsito irregular em Jericoacoara. Quase todas foram registradas em julho, quando ocorreram 24 dessas autuações.

Na comparação com anos anteriores, o que se percebe é uma mudança expressiva tanto na quantidade quanto no teor das multas. No mesmo período do ano passado, por exemplo, o ICMBio lavrou 71 autos de infração, dez deles embargando obras de expressivo potencial poluidor, além de 15 grandes ações de desmatamento ilegal. Em 2017, lote ilegal descoberto na Área de Proteção da Serra da Meruoca foi embargado e gerou multa de R$ 75 mil.

Velhos conhecidos das equipes de fiscalização, os viveiros ilegais de carcinicultura - criação em grande escala de camarão - eram flagrados e destruídos todos os anos no Estado, gerando 20 embargos e multas de expressivo valor entre 2011 e 2018. Nos oito primeiros meses deste ano, no entanto, o número de ações de combate a todas essas práticas foi a zero.

Além das multas de trânsito em Jericoacoara, foram coibidos pelo órgão neste ano uma "lesão a árvore" no Parque Nacional de Ubajara e uma criação de gado irregular na praia do Batoque, em Aquiraz. Completam a lista de multas do ICMBio em 2019 a apreensão de uma espingarda de caça e a autuação de uma pessoa por uso de fogos de artifício sem autorização em Jericoacoara. Todas as multas aplicadas foram de baixo valor, em torno de R$ 1 mil.

Projeto Mirante .Na foto: Parque Nacional de Ubajara .Foto: Fco Fontenele em 23.01.06
Projeto Mirante .Na foto: Parque Nacional de Ubajara .Foto: Fco Fontenele em 23.01.06

Especialistas denunciam esvaziamento da fiscalização ambiental em unidades de conservação

"Parou totalmente o desmatamento? Zerou a contaminação da água pela carcinicultura ilegal? Zerou a degradação de áreas pela mineração? É óbvio que não. O que está acontecendo é um desmonte estrutural de órgãos de fiscalização ambiental, como o ICMBio", denuncia o geógrafo Jeovah Meireles, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Para o pesquisador, a mudança de postura tem relação com a mentalidade da gestão Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente, mais leniente com o avanço de atividades econômicas sobre áreas protegidas. "É uma lógica orientada para ampliar e aprofundar a degradação dos sistemas ambientais, de olho no avanço das madeireiras, do agronegócio, da especulação imobiliária".

Para a bióloga Francisca Soares de Araújo, professora da UFC e coordenadora de um projeto no Parque Nacional de Ubajara, é visível o processo de "sucateamento" da fiscalização ambiental no Estado. "Não é culpa dos profissionais, que são muito qualificados, mas há déficit de pessoal, de infraestrutura, de equipamentos. Os funcionários estão se aposentando e não são repostos, os carros quebrando, os terceirizados que ajudavam estão sendo dispensados", diz.

"Você há de convir que a humanidade, o povo cearense, não criou consciência de uma hora para outra e não está fazendo nada mais de errado. O que não está existindo mais é fiscalização", corrobora o biólogo Álamo Saraiva, coordenador do laboratório de paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Urca). "O que eu já vi neste ano de mineração em leito de rio, em encosta, em área de inclinação irregular.. e isso está entregue a ninguém", denuncia.

Vista da Chapada do Araripe. Especial Rotas do Semiárido - Chapada do Araripe. (Foto: Tatiana Fortes/O POVO)
Vista da Chapada do Araripe. Especial Rotas do Semiárido - Chapada do Araripe. (Foto: Tatiana Fortes/O POVO)

Em 9 meses, nenhuma autuação por crime ambiental foi registrada no Cariri e Meruoca

O esvaziamento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) no Ceará fica mais claro quando se analisa onde o órgão registrou infrações ambientais em 2019. Todas áreas com diversas autuações em anos anteriores, unidades de conservação em Ubajara, Meruoca e no Cariri tiveram queda expressiva de multas neste ano. Nas duas últimas, chegou a zero. Ao todo, 34 das 36 autuações deste ano ocorreram em Jericoacoara.

Na área do Parque Nacional de Ubajara, por exemplo, foram registrados entre janeiro e setembro de 2018 oito episódios de desmatamento ilegal grave, além do embargo de dois lotes ilegais que estavam sendo construídos na região. No mesmo período deste ano, o ICMBio flagrou na região apenas uma infração, por "lesão de árvore" leve. Para especialistas que convivem com a região, no entanto, a queda não significa que os crimes ambientais deixaram de ocorrer.

"Está uma situação totalmente caótica, falta pessoal e muitos dos terceirizados que ajudavam foram demitidos", relata a bióloga Francisca Soares de Araújo, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e que desenvolve um projeto na região. Ela destaca que, sem fiscalização, as mais de 400 espécies botânicas da região podem estar em risco.

Outra área que era constantemente alvo da ação de criminosos era a Área de Proteção Ambiental (APA) da Chapada do Araripe, no Cariri. Em 2017, o ICMBio flagrou na região três episódios de desmatamento e mais de quinze obras ilegais na região, incluindo até mesmo a construção de um posto de combustíveis na área protegida. A região continuou "visada" em 2018, quando foram paradas pelo órgão mais uma leva de obras ilegais.

Em 2019, no entanto, não foi registrada nenhuma ação de fiscalização na região. "O Cariri simplesmente está abandonado. Fecharam postos de fiscalização e estamos entregues ao Deus-dará", diz o pesquisador Álamo Saraiva, coordenador do laboratório de paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Urca). "Não há mais ninguém em campo", afirma.

O pesquisador destaca que a área é lar para uma série de espécies endêmicas, que só existem no Cariri. "Temos o Soldadinho-do-araripe (pássaro), o Aspidora menezesi, que é um tipo de peixe que só tem aqui e que hoje quase já não se encontra mais. Por quê? Porque as pessoas estão minerando em região de mata ciliar e desviando água", afirma. "Vai levar centenas de milhões de anos para a natureza se recuperar dessa destruição. Em alguns casos, espécies nativas podem ser perdidas para sempre. É uma tragédia".

Historicamente uma das áreas mais cobiçadas pela especulação imobiliária da região de Sobral, a Serra da Meruoca é outra Área de Proteção Ambiental (APA) que aparece esvaziada em 2019. Em 2017, três loteamentos de grandes proporções foram embargados na região. Neste ano, no entanto, também não foi lavrado nenhum auto de infração lá. (Carlos Mazza)

Dados

Lei de acesso

O levantamento tem base em pedido de informação feito pelo O POVO ao Ministério do Meio Ambiente, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). Entre março e maio deste ano, também foi registrado um total de zero infração, fenômeno que não é observado em nenhum outro período de todos os dados da fiscalização ambiental do Estado, desde 2009 até hoje.

 

O que você achou desse conteúdo?