Uma das pautas governistas a ganhar fôlego no Congresso Nacional, sobretudo após a eleição da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, é o chamado "voto auditável". Neste mês, parlamentares instalaram uma comissão especial para analisar o projeto que quer tornar o voto impresso obrigatório no Brasil. Uma das bandeiras de Jair Bolsonaro (sem partido) desde antes mesmo da eleição que o fez presidente em 2018.
De autoria da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), a proposta será apreciada em comissão com maioria governista. Pelo menos 18 deputados são de partidos próximos ao presidente, como PSL, PP, PSD, PL, Republicanos, PTB e PSC. O grupo conta ainda com representantes da linha de frente do Planalto, como o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho de Jair. A Comissão teve o aval do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL).
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) não estabelece que o voto seja feito em cédulas de papel, como em parte dos países vizinhos da América Latina. O texto propõe que uma cédula seja impressa após a votação na urna eletrônica, para que o eleitor possa conferir o voto. Essa impressão seria depositada, de forma automática e sem contato físico, em um recipiente trancado para eventuais auditorias dos registros voto a voto.
Na justificativa da PEC, a autora afirma ter por objetivo “garantir a confiabilidade do processo”. No entanto, Kicis não aponta problemas registrados no atual sistema eleitoral de votos eletrônicos, que, em quase 25 anos de aplicação, jamais teve comprovação de qualquer fraude ou prejuízo à lisura do processo. As urnas enviadas aos tribunais regionais eleitorais atualmente possuem cerca de 30 camadas de segurança e não tem componentes ligados à Internet, inviabilizando ações de hackers.
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Fernandes Neto, presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Ceará (OAB-CE), aponta que a mudança não se mostra fundamental de modo prático. “Esse discurso é completamente diferente da prática do Direito Eleitoral. Do ponto de vista jurídico, não vimos nenhuma comprovação de fraude eleitoral com urnas eletrônicas. Pelo contrário, as fraudes ocorriam no tempo do uso do papel”, lembra.
O advogado aponta ainda para os gastos extras com equipamento, papel e logística que a impressão de votos podem acarretar - da ordem de R$ 2 bilhões, segundo o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso -.
“Não temos dois bilhões para o censo demográfico, que serve para projetar o País, e vamos gastar com impressão de votos? Eu não acho que o sistema de imprimir registros de voto seja problemático, mas não vejo a necessidade dele. Não se trata de posição ideológica, mas prática”, defende.
O movimento bolsonarista ganhou força, dentre outras coisas, a partir do questionamento ao modelo político vigente. Com discurso antissistema, o presidente elegeu-se e ajudou a eleger deputados e senadores com postura similar. Mesmo tendo recebido mais de 58 milhões de votos, contabilizados em urnas eletrônicas, a proximidade de um novo pleito faz com que o grupo adote a estratégia de tensionar a relação com as instituições.
Cleyton Monte, cientista político vinculado ao Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC) analisa que a viabilidade da discussão na Câmara ocorre a partir do resultado favorável ao grupo do presidente nas eleições do Congresso. “A conjuntura na Câmara, com o centrão apoiando o governo, deu uma maior possibilidade de haver essa discussão. Por isso o Arthur Lira abriu a comissão especial”, explica.
Monte aponta ainda que o tema é também uma estratégia. “O bolsonarismo foi um dos grupos de direita (no mundo) que chegaram ao poder com um discurso ‘outsider’, ou seja, aquelas figuras que apesar de serem parte do meio politico, se colocam como antissistema. Eles manterão essa bandeira (do voto impresso), porque de qualquer forma vai tensionar”.
Fato é que a PEC está andando. A comissão especial aprovou um plano de trabalho na semana passada que envolve oitivas com autoridades eleitorais, especialistas em segurança cibernética, auditores e representantes de partidos políticos. A depender do relator, Filipe Barros (PSL-RJ), a comissão terá um parecer até o fim de julho. O trâmite exige ainda a aprovação de três quintos da Câmara e posterior apreciação no Senado.
Mesmo que não tenha efeito prático para mudar o sistema de votação no pleito que se avizinha, já que restam cerca de quatro meses para aprovar alterações na legislação referentes à eleição de 2022, a discussão alimenta a chama do "nós contra eles". Desta vez com o peso do governismo, Bolsonaro se move com seus aliados para um desafio diferente do de 2018, quando se lançou como opção à chamada velha política.
Paula Vieira: A dúvida do voto
Logo após o período de redemocratização de 1988, inúmeras agendas no Parlamento foram construídas em torno de um “aperfeiçoamento democrático”. As propostas envolviam reformas que perpassavam pelo sistema político, composto pelas definições de sistema eleitoral e sistema partidário. Ao longo dos anos, as alterações foram cada vez mais voltadas para as regras eleitorais, espaço em que os cidadãos expressam suas preferências em torno dos projetos políticos em disputa.
A escolha pelo representante, dentro de um cenário democrático, é um processo competitivo e busca-se um ponto ideal para que seja feita com o máximo de transparência. Essa rápida e simplória explicação é para indicar que, como espaço de competição para a representação política, a discussão sobre o voto é histórica nos espaços institucionais e na ciência política. O que se coloca em questão é que o eleitor não esteja submetido a influências fiscalizatórias que impactem seu direito ao trabalho e direitos de acesso à políticas públicas. Por isso, a importância do voto secreto. O uso de urnas eletrônicas tem, assim, o intuito de retirar o caráter pessoal do voto para que o eleitor seja preservado de possíveis retaliações e, ainda, evitar possíveis cenários de compras de voto.
Nos últimos anos, o funcionamento das instituições políticas no Brasil foi colocado em xeque quanto à legitimidade e qualidade de seus representantes. Mas não apenas. Como parte de um novo aperfeiçoamento, joga-se para as regras democráticas, sem indícios de qualquer fraude, a responsabilidade pelo funcionamento. A responsabilidade é jogada para a tecnologia e não para as práticas dos agentes políticos (representantes institucionais). Interessante que a grande dificuldade de reformas políticas até 2015 era que os parlamentares, eleitos sob aquelas regras, não queriam alterá-las por já conhecê-las e, assim, construir suas estratégias para o jogo. Hoje temos representantes políticos que questionam as regras pelas quais foram eleitos.
O projeto em tramitação sobre a necessidade de que os votos sejam impressos, para que o pleito seja passível de auditoria, traz à disputa eleitoral uma maior burocratização e atribui maior legitimidade ao caráter técnico em detrimento de uma competição eleitoral em torno de projetos políticos. Amplia a possibilidade de que as decisões não sejam em torno da disputa de ideias, mas de mobilizações judiciais. Busca-se a transparência burocrática e as ideias políticas são colocadas em segundo plano.
Paula Vieira é doutora em Sociologia e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia da Universidade Federal do Ceará (Lepem-UFC).