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Energia eólica: O impacto da poluição sonora nas comunidades
Reportagem

Energia eólica: O impacto da poluição sonora nas comunidades

| Relatório | Pesquisadores analisaram que aquisição de terras no Nordeste envolve reivindicações irregulares e apropriação de terras públicas e comuns
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Comunidade do Caraço. A foto foi feita à época do parecer técnico-científico. (Foto: Arquivo Pessoal/Jeovah Meireles)
Foto: Arquivo Pessoal/Jeovah Meireles Comunidade do Caraço. A foto foi feita à época do parecer técnico-científico.

"Esses empreendimentos vêm com a história de mais emprego, mais desenvolvimento para as comunidades, mas o que a gente vê é uma situação completamente diferente". O relato é de Mateus Santos, morador da comunidade de Barra de Moitas, em Amontada, município localizado a 174,4 quilômetros (km) de Fortaleza.

Esta é uma das muitas histórias envoltas pelo vento, em que o rastro gerado pela chegada da energia eólica praticamente batendo à porta de casa culmina em perda de território, poluição sonora e visual e impactos ambientais.

Na comunidade do Cumbe, no município de Aracati, a 147,3 km da capital cearense, João Luis Joventino do Nascimento, conhecido como João do Cumbe, diz que não só viu perda de território, mas destruição de dunas para a instalação de empreendimento eólico.

Para ele, colocar o pé na areia com a facilidade de antes também se foi, pois a instalação ocasionou dificuldade para acessar a praia de Canoa Quebrada.

A resposta, da reclamada, a CPFL Renováveis, após ser questionada pelo O POVO, é que todo o projeto está “devidamente licenciado e todas as licenças foram emitidas respeitando os requisitos legais e regulamentares exigidos”.

E sobre o que se queixa em relação ao acesso dos moradores à praia, a empresa informa que o trânsito é livre e “o que existe é uma portaria” na estrada de principal acesso: para fornecer orientações.

Diante dos relatos, O POVO procurou a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) para saber sobre o licenciamento do parque eólico, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

O lado não sustentável da energia eólica no Brasil também é mostrado no estudo "Large-scale green grabbing for wind and solar photovoltaic development in Brazil" (Apropriação verde em grande escala para desenvolvimento eólico e solar fotovoltaico no Brasil, em tradução livre), publicado na revista Nature Sustainability.

De acordo com o levantamento, apenas 55% de todas as turbinas estão situadas em terras com títulos de propriedade privada legais, enquanto 38% estão localizadas em terras privadas apenas com títulos de Cadastro Ambiental Rural (CAR).

Mas, segundo a legislação (Lei 12.651/12), o documento não pode ser considerado como meio de reconhecimento do direito da propriedade ou posse da terra. Em relação a terras públicas ou públicas não designadas, o cenário é de 7%.

No Nordeste, avaliações qualitativas e baseadas em trabalho de campo realizadas por acadêmicos e organizações civis mostraram que a aquisição de terras para a produção de energia renovável frequentemente envolve reivindicações irregulares e apropriação de terras públicas e comuns, falsificação de títulos de terras e “fraude notória”.

A análise foi feita por pesquisadores da Universidade de Recursos Naturais e Ciências da Vida, na Áustria, e da London College, da Inglaterra.

Publicado no último dia 13 de maio, o documento apresenta dados geográficos de parques solares e eólicos, informações de investimento e propriedade e registros fundiários digitais de 2000 a 2021.

Baseados nos Planos Decenais de Expansão de Energia (2029 a 2031) e o Plano Nacional de Energia a longo prazo, até 2030, a energia no Brasil deverá duplicar e, até 2050, o aumento deverá ser 11 vezes maior em comparação a 2011.

A expansão está relacionada com a busca por políticas energéticas e climáticas que visam reduzir a dependência da energia hidrelétrica e diversificar as fontes elétricas de baixo carbono.

Entretanto, o documento aponta que o caminho para as energias renováveis no Brasil é marcado pela grande ocupação do território, o que pode alimentar ainda mais a concorrência pela terra e intensificar negócios fundiários em grande escala.

"No contexto brasileiro, a posse da terra é marcada por grande insegurança e conflitos decorrentes de desigualdades históricas na propriedade da terra, lacunas regulatórias e fraca governança", diz o relatório.

O banco de dados revela que os parques eólicos em operação e em construção cobrem uma área de 2.148 quilômetros quadrados (km²), localizados principalmente no Nordeste.

O relatório destaca que, embora 89% das empresas listadas como nacionais operem nos parques eólicos, a maioria opera como subsidiária de conglomerados internacionais. Empresas com participação estrangeira atuam em 78% do terreno ocupado por parques eólicos.

Outro ponto apresentado é que quase metade de todas as privatizações em áreas de parques eólicos ocorreram após o primeiro investimento, "reforçando ainda mais o caso de que áreas de terreno foram privatizadas devido ao desenvolvimento de parques de energia renovável".

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Detalhamento sobre a legislação acerca da energia eólica no Brasil

O POVO - Quais são as implicações legais e ambientais de ter 38% das turbinas em terras privadas apenas com títulos de Cadastro Ambiental Rural (CAR)?

Rárisson Sampaio - Para melhor avaliar, é preciso levar em conta a classificação da terra ocupada. Em termos gerais, essa informação pode demonstrar a precarização das condições de uso da terra na instalação de grandes empreendimentos na zona rural.

O CAR constitui um instrumento declaratório para fins de regularização ambiental e, por força de lei, não é considerado título para comprovação de posse ou propriedade da terra.

Situações mais graves podem ocorrer quando a ocupação dessas terras se sobrepõe a áreas legalmente protegidas ou classificadas como indisponíveis (uma vez que o registro no CAR pende de validação das informações prestadas, algo que pode abrir espaço para ilegalidades, como tentativas de grilagens de áreas protegidas e de terras públicas).

O POVO - Quais são as principais diferenças entre títulos de propriedade legal e títulos de CAR em termos de segurança jurídica e viabilidade para projetos de energia eólica?

Rárisson Sampaio - Como observamos, o CAR não constitui título para fins de validação da posse ou propriedade, pois consiste em registro público de informações ambientais.

Na prática, aquele que ocupa um terreno na zona rural deve informar ao órgão ambiental do respectivo município ou estado sobre essa condição, a fim de viabilizar o monitoramento e eventual regularização das condições ambientais naquela área. Em termos de segurança jurídica, registros no CAR não possuem qualquer efeito.

Títulos de propriedade, em relação aos bens imóveis, são aqueles que, legitimamente, conferem o domínio sobre uma determinada área.

Estes títulos podem ser outorgados a particulares pelo Poder Público (a exemplo da concessão de Títulos de Domínio aos beneficiários de projetos de assentamentos rurais da reforma agrária, concedidos pelo Incra ou autarquias fundiárias estaduais), através de programas de acesso a/redistribuição de terras.

Também pode ocorrer a pactuação essencialmente privada (como ocorre nos contratos de compra e venda de terras entre particulares).

Em todo o caso, haverá a necessidade de registro das operações, certidões e matrículas no cartório competente. Tais títulos atestam o direito real (direito associado à coisa) que uma pessoa exerce sobre um determinado bem imóvel.

Por sua vez, sob uma perspectiva econômica, as empresas não estão interessadas, na maioria dos casos, em adquirir a propriedade dos imóveis, mas em obter tão somente a posse. Em outros termos, querem apenas usar a terra, sem se tornarem as donas.

Dessa forma, empresas pactuam contratos de arrendamento ou cessão de uso da terra com os respectivos ocupantes, a fim de obter autorização de uso para instalação das turbinas e outros equipamentos.

Trata-se de um uso mais precário e limitado do bem imóvel, o que não dispensa a atenção e devida diligência em observar a legalidade da área ocupada. Talvez a maior confusão se dê pelo fato de estarmos tratando de duas temáticas distintas (a regularização ambiental e a regularização fundiária). 

 

O POVO - Como funciona o processo de privatização das terras destinadas aos parques de energia renovável no Ceará?

Rárisson Sampaio - A política fundiária do Ceará é regida atualmente pela Lei nº 17.533/2021 (Lei Wilson Brandão), a qual estabelece os objetivos e procedimentos para regularização fundiárias em terras do Estado, de modo correlacionado com órgãos nacionais.

A competência para executar a política fundiária do Ceará é conferida ao Idace, que tem atuado para levantar dados sobre o território e gerenciar as demarcações e titulações.

A privatização de terras no Ceará segue o mesmo padrão de outros Estados do Brasil, com as empresas de energia buscando garantir o acesso a terra e controle dos recursos de modo muito anterior a qualquer formalidade regulatória para execução dos projetos (licenciamentos, outorgas, etc.).

O acesso a terra é a fase primordial e, muitas vezes ocorre de modo precário. Em diversos contratos entre empresas e moradores, há cláusulas que garantem a assistência jurídica da empresa para prover essa regularização (em outras situações, há a fixação de pagamento dos honorários dos advogados da empresa por parte dos moradores).

O POVO - O que leva os investidores a buscar a privatização das terras após o início dos projetos de energia renovável?

Rárisson Sampaio - É uma forma de reduzir os riscos do negócio e garantir a consolidação dos investimentos. Obter o controle da terra, ainda que mediante instrumentos mais precários, é determinante para a continuidade da exploração dos recursos.

O POVO - Quais são as implicações jurídicas e sociais da privatização das terras inicialmente não privadas para a instalação de parques de energia renovável?

Rárisson Sampaio - Juridicamente, é preciso avaliar a condição com a qual essas privatizações tem ocorrido, especialmente sobre as possíveis ilicitudes das operações de titulação. Cabe aos órgãos encarregados da operação e fiscalização da política fundiária em identificar tais inconsistências e adotar as providências para que a posse não se consolide em reivindicação de propriedade.

A prioridade da política fundiária é destinada ao desenvolvimento das comunidades rurais a partir da garantia de condições para sua vivência no campo.

Com a expansão de empreendimentos, tal qual ocorre em outros setores e estados (a exemplo do avanço do agronegócio na região amazônica), implica na retomada de processos de reconcentração fundiária e expulsão de comunidades, direta ou indiretamente, dos territórios que tradicionalmente ocupavam.

Há também prejuízos para a demarcação de terras de comunidades indígenas e certificação de territórios quilombolas, bem como o aumento da pressão ambiental sobre áreas de proteção.

O POVO - Como a privatização das terras afeta as comunidades locais e os proprietários originais dessas terras?

Rárisson Sampaio - Há algumas situações que podemos comentar: comunidades locais em processo de regularização (que ainda não obtiveram seus respectivos títulos de domínio), comunidades locais regularizadas (proprietários originais das terras) e terceiros que vivem no entorno.

Para aqueles que ocupam a terra diretamente e terceiros que vivem no entorno, a ocupação de terras pelos empreendimento pode acarretar danos sociais e ambientais, com a maior exposição de grupos aos impactos já verificados nestes empreendimentos.

Por outro lado, na questão fundiária, há um aumento do processos de concentração de terras, que pode reduzir a oferta para titulação de grupos que historicamente reivindicam a regularização de seus territórios, ou mesmo a diminuição na oferta de espaços produtivos para agricultura familiar e outras culturas locais, os quais passam a ser controlados e utilizados para fins dos empreendimentos.

Quanto aos proprietários originais, há a fragilização da relação contratual que garante a posse da terra para as empresas, explorando os recursos sem contrapartidas adequadas ou, em muitos casos, restringindo o acesso a terra por parte de seus legítimos donos. Tal situação já foi amplamente documentada em relatórios como o do Inesc, publicado em 2023.

O POVO - Quais são os principais desafios legais e operacionais dessa situação?

O POVO - Em termos legais, o principal desafio é a segurança jurídica para priorização do acesso a terra por comunidades e destinação para fins de proteção ambiental.

Essa questão se integra com o desafio operacional de executar as políticas ambientais e fundiárias, com a validação dos dados do CAR e mapeamento da ocupação de áreas em terras públicas e devolutas.

Apesar dos avanços recentes em processos de regularização no Ceará, conduzidos pelo Idace, é preciso integrar os dados de fiscalização com os processos de autorização e investimento em projetos de energia renovável, a fim de garantir que instrumentos jurídicos e econômicos não estejam colocados a disposição de empresas que, ilicitamente, estejam ocupando terras públicas.

O POVO - Como essas práticas irregulares afetam a legalidade e a sustentabilidade dos projetos de energia renovável?

A recorrência da prática de ocupações ilícitas, apropriações verdes e grilagens de terras para instalação de energias renováveis subverte o significado do termo sustentável. Na prática, o tipo de empreendimento, classificado como verde, serve apenas para legitimar a reconcentração de terras e exploração predatória dos recursos naturais em novos territórios, como o semiárido nordestino.

A conivência com a política desenvolvimentista que preza apenas pela alocação de investimentos, sem se preocupar com a qualidade das atividades, pode ter sido um fator que acabou incentivando a ocupação irregular e, em algum grau, proporcionando uma cooperação ativa para a implementação desses projetos, apesar de suas irregularidades.

A considerar a quantidade de investimento público que é dispendido para a execução desses projetos, uma eventual medida judicial para prover a restituição das terras pode impactar o próprio erário. Daí o porque da necessidade de maior diligência das empresas e dos agentes investidores.

O POVO - Quais medidas legais e regulatórias podem ser implementadas para prevenir a falsificação de títulos de terra e a fraude notarial?

Rárisson Sampaio - A atuação coordenada de entes fiscalizadores, como os órgãos fundiários do Estado, as corregedorias dos serviços notariais e o ministério público são essenciais para combater práticas ilícitas dessa natureza.

Por outro lado, o avanço na titulação de regularização de terras também pode reduzir a pressão de agentes econômicos sobre os territórios e mitigar a ocupação irregular de terras públicas. Isso depende de uma gama de atores e fatores, pelo qual seria injusto atribuir exclusivamente aos órgãos ambientais e fundiários estaduais.

Precisa de política pública coordenada e diálogo interinstitucional a nível federativo, com maior apoio dos órgãos nacionais (que detém maior capacidade operacional, ainda que atualmente também sejam bastante limitados).

Há um papel preponderante, também, das instituições financiadoras e reguladoras, pois deve-se ter maior cautela quando da aprovação de financiamentos e concessão de outorgas e autorizações para projetos que não demonstraram a inequívoca regularidade de sua posse ou propriedade nos terrenos em que pretendem instalar suas operações.

O POVO - Qual é a perspectiva da OAB Ceará em relação à regularização fundiária e à integridade na aquisição de terras para energia renovável nos próximos anos?

Rárisson Sampaio - A OAB defende o avanço da política fundiária no Ceará, com a plena efetividade da Lei Wilson Brandão. Temos um diálogo profícuo com o Idace, que é um grande apoiador das iniciativas da OAB no âmbitos de suas comissões ambientais.

Entendemos os desafios operacionais para afirmação dos direitos territoriais de comunidades no Estado e temos denunciado junto ao conselho ambiental do Estado (Coema) práticas abusivas que têm sido verificadas na instalação de empreendimentos de energias renováveis.

Infelizmente, a questão fundiária é pouco considerada nas avaliações do processo de licenciamento, o qual é conduzido de modo muito apressado e que inviabiliza discussões mais aprofundadas.

No âmbito consultivo, ainda prevalece a fragilização de visões mais críticas ao modo de implementação dos empreendimentos no Estado do Ceará, com posições minoritárias defendidas inclusive pela OAB, através de sua representação no Coema.

Continuaremos acompanhando a situação e mobilizando os atores competentes no sistema de justiça para adotar as providências cabíveis para garantir a integridade da nossa legislação ambiental e fundiária.

Distância

Há estudos que apontam que a distância mínima de uma torre eólica deveria ser de 500 metros

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