O Brasil já soma mais de 14 milhões de criadores de conteúdo digital, segundo dados da Wake Creators, em um cenário que acompanha o ritmo global de crescimento da chamada creator economy, traduzida como economia do criador.
De acordo com projeções do Goldman Sachs, o mercado mundial deve alcançar US$ 480 bilhões até 2027. No entanto, especialistas apontam que, apesar da expansão, o setor ainda opera em estágio de formação e enfrenta desafios como informalidade, falta de regulação e concentração regional de oportunidades.
Dados do Censo dos Criadores de Conteúdo 2025, realizado com mais de 4.500 participantes, indicam que apenas 9% dos influenciadores brasileiros têm na criação de conteúdo sua principal fonte de renda. A maior parte ainda depende de outras atividades profissionais ou realiza ações pontuais com remuneração limitada. O estudo também aponta que 86% dos criadores gerenciam sozinhos suas carreiras, o que evidencia a atuação autônoma em um ambiente pouco estruturado.
Para Julia Affonseca, diretora de negócios da Wake, ainda falta uma base sólida para que o segmento se consolide como setor econômico. “É necessário valorizar a qualidade do conteúdo, formalizar contratos, garantir remuneração justa e investir em capacitação — tanto de criadores quanto de marcas”, afirma. Segundo ela, essas medidas são fundamentais para mitigar a instabilidade e tornar o ambiente mais previsível para todas as partes envolvidas.
A pesquisa também mostra que a base da influência digital brasileira é formada majoritariamente por micro e nano influenciadores — 83% têm até 100 mil seguidores. São perfis com maior proximidade do público, mas que ainda enfrentam dificuldades em acessar oportunidades de monetização de forma consistente.
No recorte geográfico, o Sudeste concentra 56% dos criadores, seguido pelo Nordeste com 18%. Para Julia, esses números refletem uma tendência de expansão regional, embora o eixo Rio-São Paulo ainda concentre o maior volume de investimentos e campanhas. “Há uma movimentação consistente de criadores fora do eixo tradicional, mas o desafio é garantir que esse crescimento seja acompanhado por estruturas adequadas de apoio, valorização e visibilidade”, analisa.
A economista e colunista do O POVO+, Desirée Mota, que acompanha os movimentos da economia criativa no país, reforça que o avanço do setor está ligado à ampliação do acesso digital e ao uso de tecnologias como inteligência artificial. “O Brasil tem uma das maiores taxas de usuários ativos em redes sociais. Isso cria um terreno fértil para o surgimento de criadores com grandes audiências, tanto locais quanto globais”, afirma.
Segundo Desirée, a possibilidade de monetizar conteúdos, vender produtos próprios ou oferecer serviços educacionais atrai diferentes perfis de empreendedores. No entanto, ela aponta que a concentração de receita e visibilidade em um número restrito de criadores é um obstáculo. “Para atuar nesse mercado, é preciso investir em estrutura, tecnologia e equipe. Nem todo mundo consegue”, avalia.
No contexto nordestino, a economista destaca o papel da cultura empreendedora como fator de expansão. “O perfil do empreendedor do Ceará é muito criativo e proativo. O criador digital oferece exatamente o que muitos aqui procuram: renda autônoma e possibilidade de escala.”
Apesar do avanço, Desirée chama atenção para a falta de regulamentação e a dependência de plataformas estrangeiras, o que pode comprometer a sustentabilidade do setor. “É um mercado ainda pouco transparente, com regras determinadas por algoritmos e interesses comerciais. Falta uma base jurídica que assegure direitos, oriente contratos e regule as relações com marcas”, defende.
Ela sugere que tanto o poder público quanto a iniciativa privada poderiam contribuir com o desenvolvimento de plataformas nacionais e programas de capacitação técnica.
Tanto Julia quanto Desirée observam uma transição no perfil dos influenciadores, que vêm adotando uma postura mais estratégica. O modelo baseado apenas em espontaneidade cede espaço à produção estruturada de vídeos, podcasts, cursos e parcerias, com uso crescente de ferramentas de automação.
“Isso exige conhecimento de marketing, comportamento digital e visão de negócio”, resume Desirée.
Para os próximos anos, as tendências apontam para a valorização da autenticidade, o fortalecimento de nichos e a construção de comunidades engajadas. Ao mesmo tempo, aumenta a pressão por profissionalização, transparência nas relações comerciais e equilíbrio entre monetização e identidade. “É uma mudança que exige tempo, mas que já está em curso”, conclui.
Profissionalização é um desafio
Diante da percepção de uma lacuna no suporte a influenciadores e assessores fora do eixo Sudeste, as empresárias Lara Gomes e Elisa Sarquis decidiram montar, em 2020, em Fortaleza, uma empresa com foco na formação estratégica de profissionais da área.
A SoftConnect atua em três frentes: assessoria, educação (com cursos e mentorias) e relações públicas. A proposta é acompanhar criadores e equipes de apoio em temas como curadoria, posicionamento e construção de marca. "Nosso trabalho também envolve o fornecedor, o gestor, a estrutura que permite que esse mercado funcione", diz Lara Medeiros, que se juntou à equipe ainda em 2020.
As fundadoras reconhecem que operam em um mercado informal, com baixa padronização contratual e pouco preparo técnico entre influenciadores iniciantes. Nenhum dos seus clientes atua com carteira assinada e muitos não dominam processos básicos, como emissão de nota fiscal ou negociação de valores.
A empresa afirma ter formado mais de 500 alunos e estima um crescimento de 50% no faturamento no último ano. Um dos principais projetos é o Conecta Eusébio, programa de aceleração gratuito para criadores locais em parceria com o Shopping Eusébio, que oferece mentorias, oficinas e contrato remunerado aos selecionados.
Embora atue a partir do Ceará, a empresa mantém circulação entre regiões para ampliar visibilidade. A gravação recente de um podcast em São Paulo, por exemplo, foi pensada como estratégia para aproximar o mercado nacional dos criadores nordestinos.
Com isso, ela explica que a empresa passou a oferecer uma plataforma de formação e curadoria de oportunidades visando reunir criadores, assessores e marcas com foco em capacitação e profissionalização.
A relação entre identidade regional e linguagem digital é um dos eixos que orientam o trabalho da empresa, especialmente voltado às gerações Z e Alpha, que compõem a maior parte do seu público. As fundadoras também defendem políticas públicas específicas para o setor, como fundos de pagamento, programas de capacitação para marcas e parcerias com o Sebrae para apoio a microempreendedores da área.
Embora o Brasil ainda não tenha um marco regulatório para a economia de influência, as empreendedoras apontam a necessidade de normas mínimas sobre uso de imagem, contratos e transparência. "Muitas vezes, o influenciador não sabe o que é pós-venda ou como gerir uma campanha", diz Lara Gomes.
Segundo elas, também há um descompasso entre marcas e criadores, já que muitas empresas não sabem como se comunicar com públicos mais jovens. Por isso, propõem que políticas públicas contemplem não apenas os produtores de conteúdo, mas também os contratantes.
Com um investimento estimado de R$ 80 mil no último ano e retorno de 200%, a empresa já faz planos de expansão para o futuro. "Daqui a cinco anos, os criadores podem ter suas próprias moedas, plataformas e comunidades", projeta Lara Medeiros.
O trabalho invisível da criadora de conteúdo
Empresária e influenciadora, Carol Yamazaki concilia a gestão de uma empresa familiar com a produção de conteúdo para redes sociais. "Fui relações públicas de uma loja local e já tinha muitos contatos. A rede começou a se formar ali."
Hoje, a influência funciona como uma atividade complementar. "Escolho trabalhos que tenham a ver comigo e com meu público. Já recusei propostas por falta de alinhamento ou remuneração incompatível", afirma. Sem agência, ela conta com apoio pontual de uma pessoa na captação de campanhas e afirma que, muitas vezes, os contatos chegam diretamente pelas redes.
A informalidade no setor, segundo ela, ainda afeta a forma como o trabalho é percebido. "As pessoas não veem o quanto exige: roteiro, gravação, edição. Fazemos tudo." Para ela, a formalização — com CNPJ, emissão de nota e contratos — ajuda a encarar a profissão com seriedade, mas ainda há um caminho de conscientização.
Sobre os desafios regionais, Carol aponta que o sotaque já foi motivo de orientação em briefings. "Algumas marcas pedem para neutralizar, outras entendem como parte da identidade". "A tendência é ser real. Mostrar quem você é, sem tanto filtro." A rotina é organizada com horários fixos e poucos projetos simultâneos. "Preciso conciliar. Sou mãe de duas". Sem formação específica na área, ela investe em cursos técnicos de edição e segue criadores com os quais se identifica.
O papel das agências na virada do setor e na influência regional
Com mais de uma década à frente da Impulsione Comunicação, Isabella Purcaru fala sobre os desafios e oportunidades do marketing de infuência no Brasil, com foco no potencial do Nordeste e na profissionalização do setor. Confira a entrevista na íntegra:
O POVO - Como você enxerga a evolução do mercado de influência digital nos últimos anos, especialmente no Nordeste? O que mudou na forma como marcas e influenciadores se relacionam?
Isabella Purcaru - Nos últimos anos, vimos uma virada na forma como a influência digital é percebida, de uma ação pontual para uma engrenagem estratégica dentro da comunicação das marcas. Embora o mercado esteja amadurecendo, ainda passa por transformações para acompanhar as novas demandas.
No Nordeste, é visível como o marketing de influência tem ganhado espaço e se consolidado como parte estratégica da comunicação das marcas. Hoje, falamos em cocriação, mensuração de impacto e entregas com dados, algo que há poucos anos era quase inexistente fora do eixo Rio-SP. No entanto, ainda caminhamos para uma maior profissionalização do ecossistema como um todo, desde os criadores de conteúdo às próprias marcas e agências.
OP - A influência digital ainda é tratada, muitas vezes, como algo informal ou amador. Que avanços você observa em termos de profissionalização do setor?
Isabella - Ainda existem, sim, marcas que se aproximam desse mercado de maneira amadora, sem saber o que esperar de um criador, como estabelecer metas claras ou mensurar resultados e isso compromete o valor da estratégia.
Mas, por outro lado, vemos um avanço importante de marcas entendendo a importância de contar com setores ou agências especializadas, criadores que se enxergam como empresas, com CNPJ, equipe, contabilidade, contratos e gestão financeira. Na mesma via, plataformas de conteúdo e redes sociais têm cada dia mais investido em ferramentas de analytics e monetização direta para fomentar essa profissionalização.
OP - Quais são os principais desafios que uma agência como a Impulsione enfrenta ao estruturar campanhas com influenciadores na região?
Isabella - O principal desafio ainda é a falta de profissionalização em algumas etapas do processo. Embora tenhamos avançado muito, ainda há um caminho a percorrer. É comum lidarmos com influenciadores que não têm CNPJ, que atrasam entregas ou que não conseguem apresentar dados sobre performance.
Ao mesmo tempo, há criadores extremamente preparados, o que mostra que não é uma questão de localização, mas sim do nível de maturidade dentro do ecossistema. Nosso papel como agência é também ajudar a acelerar esse amadurecimento, pois muitas vezes o desafio não é só técnico, mas cultural, sendo necessário que o criador de conteúdo se enxergue como empresa.
OP - Como vocês avaliam o potencial da região Nordeste como polo de influência e inovação no mercado de criadores? Existe resistência por parte das marcas em investir fora do eixo RJ-SP?
Isabella - O Nordeste tem um potencial enorme e autêntico. Nossa diversidade cultural, a força das comunidades locais e o engajamento genuíno dos criadores da região são ativos muito valiosos.
As marcas já entenderam que, para se conectar de verdade com o público, precisam ir além do eixo Rio-SP. Não faz sentido querer impactar o Brasil inteiro a partir de uma comunicação que só representa uma parte dele. Cada vez mais vemos campanhas que valorizam a regionalidade como força e não como limitação.
OP - Hoje, muitos criadores atuam sem equipe ou conhecimento técnico sobre contratos, precificação, gestão de imagem. Como a Impulsione atua para orientar e profissionalizar esse relacionamento?
Isabella - Muitos criadores chegam até nós ainda sem estrutura e orientamos desde o básico, como abrir um CNPJ e emitir nota, até aspectos mais complexos como precificação estratégica, entendimento do briefing de como ele pode entregar sua autenticidade e linguagem reconhecida pela sua comunidade dentro do que a marca espera e, principalmente, nas entregas de dados pós-campanha.
OP - A gente tem visto cada vez mais influenciadores se tornando sócios ou tendo participação acionária em marcas. Você acha que esse é um caminho de futuro mais sustentável? Como vê essa movimentação?
Isabella - Sem dúvida, esse é um dos caminhos sustentáveis. Quando o criador de conteúdo depende exclusivamente de uma plataforma ou de contratos pontuais, ele fica vulnerável. A partir do momento em que passa a se posicionar como parte estratégica de um negócio, seja como sócio, investidor ou cocriador de produtos, ele amplia sua estabilidade, diversifica suas fontes de receita e fortalece ainda mais a própria marca.
OP - Existe algum tipo de regulamentação que você considera urgente para o setor? Ou algo que falta para garantir mais segurança (para marcas, agências e criadores)?
Isabella - A regulamentação é necessária, especialmente em três frentes: transparência na publicidade (com a correta sinalização de conteúdo patrocinado), direitos autorais sobre conteúdos co-criados e formalização das relações contratuais. Ainda vemos muitos acordos sendo firmados sem contratos claros, o que gera insegurança para todos os lados. Regras mais claras e mecanismos de fiscalização trariam mais credibilidade ao setor.
OP - Se você pudesse propor uma política pública ou incentivo voltado ao mercado da influência, qual seria?
Isabella - Um programa nacional de capacitação para criadores, com foco em empreendedorismo digital. O conteúdo incluiria formalização, gestão financeira, precificação, propriedade intelectual e análise de dados, temas essenciais para profissionalizar o setor. Além disso, criaria linhas de crédito acessíveis para criadores formalizados, considerando os custos elevados com equipamentos, conectividade e formação.
OP - Quais transformações você acredita que ainda precisam acontecer para consolidar a influência como um setor econômico reconhecido?
Isabella - Primeiro, é preciso que o setor seja formalmente mensurado, com indicadores, dados oficiais, pesquisas e números que mostrem sua representatividade no PIB, por exemplo. Depois, precisamos de mais visibilidade institucional e de políticas públicas que reconheçam esse mercado como parte da economia criativa. É fundamental também que os próprios criadores se posicionem como profissionais, e que as marcas entendam que estão lidando com uma cadeia de valor, não apenas com “perfis na internet”.
OP - E olhando para frente: como a Impulsione está se preparando para o futuro da economia de criadores? Que caminhos vocês veem como tendência ou oportunidade?
Isabella - Estamos sempre atentos aos movimentos do mercado. Acreditamos que o futuro passa pela construção de comunidades, pela valorização da autenticidade e por modelos de negócio cada vez mais colaborativos. Estamos investindo em tecnologia para melhorar a análise de dados, acompanhando a evolução das plataformas e, principalmente, criando projetos que aproximem marcas e criadores com propósito e estratégia.
OP - Pensando na estrutura do trabalho com creators, é comum que haja investimento em formação, gestão e campanhas. Como tem sido a relação entre investimento e retorno para a agência? Existe algum dado ou percepção concreta sobre isso?
Isabella - O retorno é direto e estratégico. Criadores mais preparados entregam conteúdos melhores, têm mais consistência nos dados e geram menos retrabalho. Um dado que mostra isso na prática é um estudo da YouPix com a Nielsen que mostra que campanhas bem estruturadas com influenciadores têm até 3 vezes mais conversão do que ações feitas de forma amadora. Na prática, isso se traduz em mais previsibilidade, contratos recorrentes e aumento do ticket médio.
Entrega
Não é mais somente o número de seguidores que conta para contratar um influenciador. Clareza de posicionamento e capacidade de entrega se tornaram essenciais
Luta
As empreendedoras querem ativar marcas no Ceará, mas primeiro precisam fazer com que os outros estados enxerguem
os cearenses
CBO
Embora não seja uma profissão regulamentada, o influenciador foi reconhecido pelo Ministério do Trabalho como ocupação na Classificação Brasileira de Ocupações