Naquela sexta-feira, o pátio portuário estava em calmaria aparente. Era 11 de setembro de 2020, faltavam dez minutos para as 22 horas. Pelo telefone, porém, nervosismo e ansiedade do cearense Francisco Gean Bezerra da Silva, à época funcionário terceirizado do porto do Pecém. Ele era operador de empilhadeira. Estava tenso. Na ligação, passava orientações para o paulista Fellipe Mualem Coelho, descrito pela Polícia Federal como um “contaminador de contêineres". Seria a figura especializada em rechear as caixas de ferro com cocaína dentro de portos.
Mesmo sem trabalhar no local, Fellipe estava naquele horário dentro do TMUT (Terminal de Múltiplas Utilidades, onde são movimentadas as cargas). Teve a entrada facilitada por funcionários do porto que atuavam para a organização criminosa. Mas, dentro do labirinto de contêineres, tentava achar um específico separado pelo empilhador. Exatamente meia hora depois, ele e outros dois homens, que não era o empilhador Gean, estariam sendo presos em flagrante com a cocaína.
O papel de contaminador é a reta final da operação criminosa — acessar a área do porto, romper o lacre do contêiner, inserir a droga, substituir o lacre por outro com a mesma numeração. O paulista é condenado em ação semelhante por tráfico de drogas, "suspeito de ter atuado em outros eventos de contaminação anteriormente". O credenciamento dele para estar no porto naquele dia e hora foi considerado “estranho”, segundo a investigação, o que chamou a atenção dos policiais e fiscais.
Desde a apreensão dos quase 330 kg de cocaína disfarçados num carregamento de mel, em agosto de 2019, a Inspetoria da Receita Federal e os agentes da PF haviam iniciado um trabalho mais rígido para coibir o tráfico nos portos locais. Direcionaram ações de inteligência, estavam atentos a possíveis condutas irregulares. Á época, a cocaína no mel, que desencadeou a operação Néctar, havia sido a maior quantidade já apreendida no Ceará.
Com a suspeita sobre o credenciamento, foi feita vigília especial no local. Tentariam pegar alguém no flagrante, mesmo que fosse situação difícil de acontecer. Na operação Néctar, Gean é mostrado como um dos “facilitadores” da quadrilha dentro do porto e indicava, pelo celular, como Fellipe deveria chegar até o contêiner específico. O equipamento era o alvo para colocarem dez sacolas com 320 tabletes de cocaína.
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A sequência dos fatos é toda descrita no processo, que tramita na Justiça Federal e mostra a ação de uma quadrilha especializada em tráfico internacional de drogas, que age em pelo menos nove estados brasileiros desde 2019. Ali era o resultado de meses de trabalho da organização criminosa. O paulista havia entrado a pé no porto do Pecém, sem dificuldades, ao lado do cearense Ytley Gomes de Lima, apontado como outro "contaminador".
Foram num Voyage alugado e deixaram o veículo numa rua do entorno do porto. Na hora da conversa com Gean, já estavam numa picape Saveiro, guiada por João Antônio Alcântara de Nojosa. Os 346,8 kg do entorpecente estavam na carroceria, junto com caixas de metal contendo máquinas de solda.
Com entrada permitida, o segundo veículo estacionou numa área do terminal (Berço 6) pouco visível nas câmeras de segurança. Os três estavam com crachás, devidamente "autorizados". Tentavam achar o contêiner “separado” pelo empilhador. Fellipe dizia até que a situação estava “suave”, favorável.
O diálogo a seguir, ocorrido naquela noite, minutos antes do flagrante, é um trecho do que foi interceptado pelos investigadores sob autorização da Justiça Federal:
GEAN - Porra macho, tu tem que fazer isso logo, cara.
FELLIPE - Oi!
GEAN - Tão desovando… [perguntava pela droga]? Cadê vocês, macho?
FELLIPE - Nós tamo indo, tamo... parece que nós tamo chegando na casinha, cadê a casinha? Eu tô vendo a casinha ali. Tem uns carinhas com o giroflex parado, não tem aí?
GEAN - É.
FELLIPE - Isso, então, calma aí. Nós tamo atrás de um caminhão. Tem um caminhão segurando a Saveiro na nossa frente aqui. É que eu não quero ficar com o telefone no meu ouvido. Pronto, nós tamo chegando calma aí.
GEAN - Vai dar merda ó...
FELLIPE - Tá dentro, tá suave. Logo, logo por trás os carros sair, os carros tão... Ah tá aí, os carros aí. Tô fazendo o mesmo caminho que tu fez viu! Tu tá onde os carros tão piscando, é isso?
GEAN - Onde é que tu tá, macho?
FELLIPE - É... Tô onde os carros tão piscando aqui ó... (ININTELIGÍVEL)...
GEAN - Tu tá onde, macho? Tu tá do outro lado ainda do engate?
FELLIPE - Tu dando ré, não tá?
GEAN - Tô dando ré.
FELLIPE - Isso, tô na tua frente agora.
GEAN - Ah, tu tá aí né?
FELLIPE - Pronto. Segura, espera.
GEAN - Pronto, aguarda, fica aí em PO (em posição). Tu tá vendo onde tem esse conteinerzinho aí, ó. Esse da gradezinha laranjada aí?
FELLIPE - Contêiner?
GEAN - Trancaram a entrada, macho. É essa entrada aí ó, que tu ia passar, ó. Com esse carrozinho aí.
FELLIPE - Então, mas os caras tão tudo lá dentro lá.
GEAN - Pois é, mas dava certo. Encosta o teu carro aí do lado, do lado aí.
FELLIPE - Encosta onde?
GEAN - Encosta o teu carro, encosta o teu carro do lado dessa bicha aí ó.
FELLIPE - Do lado daqui, da direita?
GEAN - É, nessa casinha amarelinha. Encosta nessa casinha amarelinha.
FELLIPE - Dá a ré aí (fala com o motorista da Saveiro). Ele vai dar ré.
GEAN - Pronto, encosta aí e aguarda aí, aguarda aí e fica aí.
FELLIPE - Tá bom.
GEAN - Já eu te ligo.
Se ligou, o empilhador não foi atendido. Deu tudo errado. Às 22h20min, o trio Fellipe, Ytley e Nojosa foi descoberto no local pelos agentes de segurança do porto. Na vistoria do carro, os policiais federais encontraram a droga e deram voz de prisão em flagrante.
Naquele momento, Fellipe teria feito menção de fugir. Também chegou a jogar seu celular no chão. Mesmo trincado, o aparelho foi vasculhado e confirmado o envolvimento do empilhador Gean e o contato com outros personagens da organização criminosa. Nojosa disse à PF que não sabia da droga em seu veículo e que receberia R$ 1.500 para transportar as máquinas de solda.
Já Ytley deu mais informação no auto de prisão em flagrante. Confirmou que ele e Nojosa receberiam R$ 20 mil pelo serviço, mas que a oferta feita por Fellipe teria sido o de transporte de pedras preciosas pelo porto. Àquela altura, a investigação da operação Néctar já tinha vasto material de provas. O flagrante deu mais peso. Os três flagrados estão recolhidos no sistema prisional cearense e aguardam julgamento. O empilhador está em liberdade também à espera da definição do Judiciário federal.