A investigação mais longa e detalhada já feita sobre o tráfico internacional de drogas a partir dos portos cearenses, conduzida pela Polícia Federal, encontrou uma "organização criminosa extensa, permanente, estruturada".
Esta é a descrição usada pelo Ministério Público Federal e que consta na ação penal em andamento na Justiça Federal. O grupo tem atuação pelo menos desde 2019 no Ceará e suas “digitais” foram encontradas espalhadas por nove estados.
Os integrantes, inclusive com funcionários terceirizados envolvidos e diversas empresas cooptadas ou abertas pelo próprio esquema, seguem hierarquia e funções muito bem definidas. Apesar de várias pessoas do grupo terem sido presas, a engrenagem ainda estaria ativa e dando lucro ao crime.
No dia 11 de fevereiro de 2025, no porto do Pecém, em São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Fortaleza, foram encontrados 133,5 kg de cocaína escondidos num contêiner com polpa de manga congelada. Tudo semelhante ao que foi investigado pelos federais até o ano passado.
A carga iria para Portugal. A apreensão foi possível a partir da colaboração entre as autoridades aduaneiras da Bélgica e do Brasil.
Os autos, que somam mais de 10 mil páginas até o momento, mostram uma quadrilha com movimentos ousados de remessas ilícitas frequentes para a Europa. Há um trecho, de diálogo interceptado com autorização judicial, que cita a possibilidade de envios até quinzenais para o velho continente.
Havia 33 réus. Um deles, porém, deixou de ser porque foi assassinado. O crime aconteceu em junho de 2024, em circunstâncias ainda não esclarecidas. Ele foi funcionário do porto durante nove anos e teria sido um informante do grupo em quase a metade desse período, segundo a investigação.
A maioria das cargas foi apreendida quando a droga ainda estava nas zonas portuárias brasileiras. Mas, em alguns dos episódios, também estavam sendo preparadas para as viagens ou identificadas já fora do País, por alfândegas estrangeiras, depois de enviadas. Em 11 ocorrências, mais de nove toneladas foram identificadas em menos de um ano e meio, de agosto de 2019 a janeiro de 2021.
O modelo mais acionado era o de contaminação de contêineres, chamado de Rip On/Rip Off, sem que o exportador legítimo saiba da carga ilegal inserida. Não há informações se também fixavam a droga no interior dos cascos dos navios, usando mergulhadores. Apreensões com esse método foram descobertas no Ceará enquanto a investigação transcorria.
Com a ajuda de gente de dentro dos portos, via propina, os traficantes conseguem entrar pelo portão da frente e sair sem alarde. A maioria das apreensões não tem prisões.
No comando está um casal, natural do Mato Grosso do Sul, foragido, que acompanha o vaivém das encomendas e dá (todas) as ordens de longe. Karine de Oliveira Campos, a "Patroa" , 46 anos, e Marcelo Mendes Ferreira, o "Roku", 43, são obedecidos e temidos.
Foragidos, com identidades falsas, seu último paradeiro anotado foi a Bolívia, base consolidada da facção Primeiro Comando da Capital (PCC). Podem também estar no Paraguai.
O inquérito da PF (nº 854/2019) durou mais de cinco anos e foi ampliado em outras investigações. A movimentação financeira em pouco mais de dois desses anos (de janeiro de 2018 a março de 2020, período da quebra de sigilo bancário) passou dos R$ 132 milhões em apenas parte das contas vasculhadas, conforme relatórios de inteligência financeira.
A escala total dos valores, porém, seria muito maior. No mercado europeu, o quilo da cocaína chega a ser negociado por 50 mil euros. Quanto mais longe o destino, mais caro o fornecedor cobra.
O ponto de partida do trabalho policial foi a apreensão de 329,4 kg de cocaína no porto do Pecém, em 16 de agosto de 2019. À época, fôra a maior apreensão em portos cearenses. Com a cotação do euro daqueles dias, foi avaliada em quase R$ 50 milhões.
O entorpecente foi achado às 13h30min daquele dia, após a inspetoria da Receita Federal no local receber um alerta da Divisão de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE). A suspeita era de um contêiner “contaminado”.
De fato, o equipamento vistoriado estava enxertado com 301 tabletes da droga em dez sacolas. Embarcaria para o porto de Antuérpia, na Bélgica. Levaria o narcótico dentro de um carregamento de mel. A operação foi batizada de Néctar. Aquele “achado” conectou caminhos e personagens em outras dez apreensões e cargas associadas ao esquema, dentro e fora do Ceará.
Pelas proporções descobertas e citadas nos autos, o esquema do tráfico marítimo no Ceará pareceu grandioso até para as autoridades policiais e judiciárias. A divisão por células, o funcionamento corporativo, a legalidade de ações sobrepostas ao crime cometido. Além dos traficantes propriamente, outros personagens e atividades dividem a cena, estando ou não no pátio dos portos.
Em troca de propinas generosas, funcionários portuários disparavam dados de navios, rotas, numerações de contêineres, de lacres, horários, escalas. Um funcionário do porto chegou a movimentar em sua conta bancária, em dois anos e dois meses, mais de dez vezes o que ganhava de salário num ano.
Dados da Ação penal nº 0806894-87.2024.4.05.8100 na Justiça Federal
Empresas legais (dos ramos de transporte, de logística e exportadoras, de pagamento) ou de fachada se integravam ao esquema ou estavam em nome de acusados ou laranjas. Os crachás e fardas ajudavam no acesso às zonas portuárias e teriam facilitado a lavagem de dinheiro.
Caminhoneiros também vendiam seus passes em entregas eventuais ou fixas. E ajudavam a recrutar colegas de boleia. O grupo recorria a doleiros, contadores e até um funcionário de cartório participava.
Neste caso, o então oficial registrador estava em Mauriti, no Cariri cearense. Ele teria falsificado documentos, identidades, certidões, registros de empresas e até certificados de conclusões de ensino. Não só para quem era do Ceará.
A confissão do operador de empilhadeira Francisco Gean Bezerra da Silva, ex-funcionário terceirizado do porto do Pecém e um dos réus no processo sobre a quadrilha especializada no tráfico marítimo, é elucidativa. “Respondeu que participou trabalhando em três eventos de colocação de drogas em contêineres no porto do Pecém, sendo um deles, o último, quando houve a prisão de três indivíduos no porto do Pecém (em 11/9/2020) e os outros dois nos dois ou três meses antes dessa prisão”.
Ele descreve que “o que tinha que fazer era baixar o contêiner onde seria colocada a droga e apontar a sua localização para a pessoa que iria colocar a droga no mesmo”. Foi persuadido pela propina. “Por cada um dos serviços recebeu R$ 50 mil, totalizando R$ 100 mil, uma vez que no serviço em que houve a prisão não foi pago”. Em seis contas bancárias vinculadas ao seu nome, a investigação identificou movimentação de R$ 532.107,71 (entre 1/1/2018 e 10/3/2020), quando seus ganhos salariais foram de R$ 51,9 mil.
Os três ex-funcionários terceirizados do porto apontados na denúncia teriam agido, conforme os autos, como informantes e facilitadores do grupo criminoso. Deles, o analista portuário Ronilson Morais do Nascimento, de 36 anos, foi assassinado em junho de 2024. O crime está sendo investigado pela Polícia Civil.
O empilhador, cearense, confessou ter atuado no grupo após receber propina. Aguarda o julgamento em liberdade. O coordenador de turno, capixaba que não residia no Brasil quando a operação Néctar foi deflagrada em 2024, foi preso em Portugal com ajuda da Interpol. Ele foi extraditado e está recolhido no sistema prisional cearense. No processo, admitiu receios sobre sua segurança, depois de saber que Ronilson foi morto.
O trabalho policial alcançou vários nomes a mais, mas teriam faltado provas que ajudassem na peça do Ministério Público Federal (MPF). Os procuradores citaram o número de empresas e pessoas identificadas em cada um dos nove estados. Na "base Ceará", dos 14 nomes mencionados, só seis viraram réus na ação penal.
A investigação detalha o mecanismo da organização criminosa. Na logística operacional, a maior das células do esquema, foram 16 participantes identificados entre os 33 réus. As atuações compartimentadas, além de ajudar a mover as engrenagens, diminuíam possíveis vazamentos. Nem todos se conheciam e saber menos sobre o todo também era protetivo.
As várias atribuições vão sendo citadas ao longo do processo. Desde "fazer parte do quadro societário de empresas utilizadas pelo grupo" a "locar imóveis e maquinário utilizados nas atividades realizadas pelas empresas controladas pelo grupo, especialmente nas áreas de logística, transporte e de exportação, usando esses locais e equipamentos para o armazenamento de drogas e contaminação de contêineres".
Também eram os da logística operacional que faziam a gestão dos veículos utilizados pela organização criminosa, com despesas autorizadas pelo alto comando do grupo. O recrutamento de motoristas que poderiam atuar para o grupo era preocupação constante dos "gestores".
Há descrição de caminhoneiros que recebiam R$ 60 mil para o transporte de uma carga ilícita até o pátio portuário. Aquele sempre era considerado um momento delicado da operação, por envolver acessos e escaneamento que poderiam, naquele momento, derrubar todo trabalho prévio e posterior do tráfico.
Com o ingresso às instalações portuárias, os traficantes conseguiam se movimentar em pontos estratégicos. A quadrilha recebia informações de rotas de navios, com datas de saída e chegada em destinos, até numeração de contêineres e lacres. Os funcionários indicavam ao traficante “contaminador” o posicionamento dos contêineres.
A Companhia de Desenvolvimento do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) informa que, desde 2019, registrou nove apreensões de cocaína em suas instalações. No total, 1.890 kg do entorpecente descobertos, na contagem própria. Porém, apesar de ação penal que tramita na Justiça Federal, com vasto conjunto de provas levantadas, a empresa afirma, em nota, que "não houve identificação de funcionários do porto envolvidos".
É o contrário do que diz a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) sobre o uso do porto pelos traficantes. Três terceirizados são réus: um operador de empilhadeira, um analista portuário e um coordenador de turno. Trabalhavam em uma operadora portuária à época dos fatos investigados. Teriam feito parte da logística operacional da organização criminosa.
Eles são citados no processo como "funcionários públicos por equiparação". Serão julgados por associação criminosa para o tráfico e também por corrupção passiva — crime no âmbito da administração pública, quando o funcionário pede ou recebe vantagem em dinheiro.
Das nove apreensões, a gestão do CIPP confirma que quatro aconteceram por contaminação de contêineres. Nos outros cinco casos, a modalidade usada pelos criminosos foi a de inserir a droga nos cascos dos navios.
O porto cita que atualmente conta com uso de drone para monitoramento, mais de 400 câmeras, quatro radares de superfície, dois scanners para vistoria dos contêineres e unidade de segurança privada 24 horas. O drone teria sido adotado quatro anos atrás, após sequência de apreensões pelos agentes da Receita e Polícia Federal.
Sobre o acesso ao Terminal de Múltiplas Utilidades (TMUT), área de movimentação de cargas, a nota do CIPP afirma que é feito cadastro para acesso ao terminal portuário, de pessoas e veículos, com agendamento prévio que passa por aprovação e tempo pré-definido para permanecer na área.
Rota da quadrilha dos portos
Reportagem especial mostra apreensão recorde de cocaína nos portos brasileiros de 2019 a 2023. Traz dados exclusivos e análises ao longo da série