Os relatos das reuniões de família da diretora de fotografia Gabriela Oliveira, de 28 anos, têm habitualmente as histórias do avô, o qual ela nunca chegou a ter contato. Através das lembranças, ela construiu a imagem dessa figura ainda tão presente. Um homem "esquentado", porém brincalhão, "danado" e com pouca paciência para "pessoas ignorantes". Descobriu as vivências dele durante a ditadura militar e o gosto a mais que ele carregava pela poesia. Algumas dessas particularidades se somaram aos causos de tantos outros amigos, conhecidos, alunos e admiradores, visto que o homem em questão é o cineasta Eusélio Oliveira, fundador da Casa Amarela e um dos maiores impulsionadores culturais do Estado.
Já na faculdade, após assimilar a relevância do avô, Gabriela questionou de que maneira poderia conhecer ao máximo o familiar. A resposta veio durante o processo de conclusão do curso de Cinema, Audiovisual e Mídias da Universidade de Fortaleza (Unifor), em 2015. Durante pouco mais de seis meses, ela mergulhou nas narrativas de pessoas próximas a Eusélio para montar o documentário "Saravá, meu avô". O projeto, que lança teaser exclusivo na plataforma multistreaming O POVO +, foi amplificado e está com previsão de lançamento ainda em 2021, ano que marca 30 anos de partida do cineasta.
"Ele veio com o propósito de disseminar o cinema. Trouxe seriedade, implementou esse curso na Casa Amarela, formou pessoas e essas pessoas me formaram. Diretamente ou não, nós estamos ligados", defende Gabriela. O filme foi viabilizado a partir de um edital do Governo do Estado em 2017 e a extensão da ideia contou com o auxílio de familiares em todo o processo. A exemplo da avó, Laisete Gadelha Oliveira, como o fio-condutor das histórias, e do pai, Eusélio Gadelha Oliveira, mais conhecido como Xuxu, na produção.
"Esse filme é um raio-x do Eusélio que muitos não conhecem. Muitas pessoas conhecem o Eusélio fundador da Casa Amarela, um articulador cultural do cinema cearense, o professor. Ele mostra além disso, o homem, o companheiro, o pai, o lado poeta, toda a parte da juventude", explica Xuxu. Para o diretor de fotografia, o produto será uma referência para as gerações que não puderam acompanhar de perto o trabalho do pai. "O mote do filme vai ser o legado que ele deixou, as pessoas que passaram por ele e que estão florescendo até hoje, inclusive a neta".
O filho conviveu com o cineasta até os 22 anos, quando presenciou a sua morte após uma discussão banal no dia 26 de setembro. Ele e o pai estacionaram o carro em frente à banca do sargento reformado da Marinha, Luiz Rufino, a fim de adquirir o filme "Amadeus" (1984) na locadora próxima. A produção seria exibida no mesmo dia, uma quinta-feira, em um evento na Casa Amarela. Ao voltarem para o veículo, o sargento esperava os dois com uma arma. Depois de breve desentendimento, assassinou Eusélio com tiros no tórax e abdômen.
O caso foi o mais longo processo de homicídio em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF) e foi extinto a partir da morte do homicida, em 2018, que esteve impune mesmo com mais de 25 anos do crime. Após o ocorrido, Xuxu segue com as consequências, principalmente emocionais, da injustiça frente ao fato. Depois de um período afastado do audiovisual, arte aprendida ao lado do pai e dos irmãos - Waulio, Wolney e Percília - , retornou à área para firmar profissão.
Em "Saravá, meu avô", o filho adentra pela primeira vez em um filme sobre o pai. Compreende, agora, outras versões de Eusélio. Enxerga uma das suas principais bandeiras, a democratização da imagem, e o uso do cinema como uma maneira de tornar o mundo mais justo. "Eu tenho um orgulho muito grande de ter o Eusélio como pai, olhando para esses 30 anos da morte dele, o reflexo é o cinema cearense ter surgido de uma forma muito forte a partir da semente que ele plantou", manifesta.
Difusão e progressão
"A Casa Amarela inicialmente foi uma ideia, uma ruptura, um atrevimento, em termos de passado. Em termos de presente, uma proposta. E em termos de futuro, um compromisso”. A descrição de um dos principais equipamentos de cultura do Ceará é feita pelo fundador, Eusélio Oliveira, no documentário “Eu, Sélio” (1991). Terno, colérico e temperamental - como ele mesmo se define -, Eusélio reflete as próprias características na fala e traça, mais uma vez, o paralelo entre a vida pessoal e profissional.
Atualmente endereçado na Avenida da Universidade, no bairro Benfica, o órgão foi o meio pelo qual o profissional direcionou a difusão cultural de aprendizagem na comunidade universitária. O trabalho pioneiro e incessante de Eusélio como idealizador, diretor e professor do local almejava fortalecer a cena das artes visuais cearenses e promover a troca de conhecimento entre amadores e profissionais. Em junho de 2021, a Casa Amarela celebrou os 50 anos de formação com programação virtual e a evidência de reverberação do propósito do cineasta.
O conceito segue o mesmo: oferecer cursos nas áreas de fotografia, cinema e cinema de animação. A iniciativa formou personalidades conhecidas no meio artístico, projetou o Cine Ceará e fortaleceu a construção de cursos superiores de Cinema, assim como experiências de cursos sequenciais em instituições como a Vila das Artes e o Porto Iracema. Mesmo sem a presença física de Eusélio Oliveira, o projeto segue dinâmico, como todos os âmbitos na vida dele.
Quem dá detalhes é o advogado, jornalista e ex-senador Cid Carvalho, amigo de longas datas do professor. Junto com outros nomes, os dois participaram na década de 1950 da Academia dos Novos, uma entidade literária de jovens estudantes. "Eusélio tinha toda uma gama de conhecimento, era muito aberto a todos os gêneros, mas era bem presente nos movimentos teatrais, literários e no movimento poético da juventude de Fortaleza", relembra.
A amizade dos dois, pontua Cid, suportou muita coisa da juventude: "muito encontro e desencontro, muito alento e desalento". Na memória, destaca-se a troca das múltiplas reuniões. A discussão da literatura de Monteiro Lobato, de Vinícius de Moraes, a política e a poesia moderna, áreas nas quais também era atuante. Eusélio respondeu pelo Movimento Concreto do Ceará e executou o papel de poeta de vanguarda, com trabalhos reconhecidos por referências como Haroldo de Campos.
Cid recorda, ainda, a faceta política do amigo. Lembra que estavam sempre antenados ao que acontecia nos Estados Unidos, na Polônia, Argentina e Cuba. "Nós éramos atentos a tudo isso e nós éramos contra movimentos de força. Essa coisa que acontece hoje das pessoas quererem medidas antidemocráticas, de quererem golpe de Estado, se o Eusélio fosse vivo seria contra, com toda certeza. Nós éramos de uma linha mais revolucionária", frisa.
Os dois estreitaram relações em uma época política “acalorada”, entre os resquícios da Era Vargas e a iminência da Ditadura Militar. O cineasta era filiado ao Partido Comunista Brasileiro, esteve preso no 23º Batalhão de Caçadores do Ceará, em 1964, por ser considerado "subversivo" pelo regime militar. Apesar de apreciar um bom debate, era convicto em suas ideologias. Um “homem arejado”, nas palavras de hoje, segundo o ex-senador.
Desbravador de ideais
As imagens de Fidel Castro e Che Guevara eram expostas em um santuário na casa de Eusélio, um ambiente de expressão da "fé na cultura popular", composto por demonstrações de artistas anônimos e populares. Acima de todos, estava Jesus Cristo crucificado apoiado em um revólver 38.
"Tio, o que é isso?", foi o que perguntou o psicólogo e executivo Jonas Marques na primeira vez que viu a cena, ainda na adolescência. A explicação, viria a compor um poema escrito por Eusélio pouco antes da sua morte: "A fé é como a bala / atinge as pessoas para escapar / na eternidade ou para condenar / eternamente à inércia das / profundas infernais". E daquilo o cineasta montava uma grande história, assim como tantas outras que criou.
Os filmes de Lampião, o ninho do pássaro Boé, partes de um imaginário construído na cabeça de Jonas. Crescer com as referências de Eusélio, ressalta o executivo, foi um momento de formação. "Ele era uma pessoa que usava muitas metáforas e todo o conhecimento histórico dele para explicar para a gente coisas sobre a lucidez, sobre a necessidade de lutar na vida, de discutir a capacidade de argumentação".
A personalidade, acrescenta Jonas, era polêmica, irreverente, de quem “não gostava de mediocridade” e não passava de maneira indiferente pela vida. Havia aqueles que adoravam o humor sarcástico de Eusélio, e outros que falhavam na compreensão. "Quando eu quero saber o real impacto de uma pessoa, eu pergunto para as pessoas que elas são capazes de tocar. O Eusélio deixou uma floresta, ele realmente expandiu", prossegue. Isso devido, em um dos pontos, à "capacidade de comunicação muito avançada" do professor.
Outra característica que vale citar é a "abrangência" de pensamentos do cineasta. "O que ele dava para a gente era uma liberdade muito grande de ser você mesmo e isso tem um valor", complementa. A soma desses atributos resulta em um legado físico, completamente ligado ao trabalho cultural, e emocional. "O impacto não vai acabar na neta dele, por exemplo, não vai acabar em você, vai mais pra frente, porque foi muito forte. Eu acho que o Eusélio vive, ele não morreu. Ele vive nas pessoas", diz.
Fortalezense do dia 3 de janeiro de 1933, Eusélio também advogou pelos trabalhadores rurais, foi procurador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e presidente da Federação Norte/Nordeste de Cine Clubes. O ativista militava no movimento cineclubista e ajudou a fundar a primeira escola internacional de cinema da América Latina, em Cuba. Em tudo, “era exagerado”, um ponto a ser destacado - várias vezes - pela atriz e amiga Fernanda Quinderé. “Quando ele era amigo, ele era amigo pela vida toda. Quando ele dava aula, ele dava aula em profundidade. Quando chegava perto de você, estava sempre de braços abertos para te receber e ser recebido”, comenta Fernanda.
Eusélio vive
A expansão do cineasta, visível na fala alta e nos movimentos exagerados do ritmo acelerado de quem não tem vida para perder, torna Eusélio “uma das criaturas mais admiráveis” que já passaram pela vida do jornalista Nonato Albuquerque. Muitas são as histórias entre os dois, camaradas desde a época em que Nonato cursava a Universidade e frequentava a Casa Amarela para debater assuntos entre as brechas da academia.
“Foi um verdadeiro senhor da verdade, no sentido de não trair o seu ideal, de ser um incentivador, um operador cultural dos mais entusiastas”, reflete. Inteligente, sábio, genial. Adjetivos próprios da personalidade única do professor de cinema. Apesar da voz grossa, do tom irônico que, vez ou outra, encontrava um jeito de colocar as pessoas em verdadeiras saias justas, ele transmitia um aspecto surpreendente, “muito afável”, de acordo com Nonato.
Um “sênior no conhecimento do cinema”, Eusélio era generoso e multiplicava as visões que tinha nas leituras dos filmes. Gostava, especificamente, dos filmes franceses, ao mesmo tempo em que abarcava a cultura em geral. “É uma figura que falta hoje no Brasil, que demarca a história da cultura”, menciona. Em uma “época de negacionismo tão grande”, o jornalista afirma que se pergunta como seria a reação do amigo. “Eu acho que ele estaria como um dragão, soltando fogo pelas narinas, cuspindo bala e demonizando todos aqueles que não tem um pé na cultura de respeito. Estaria fazendo um artigo, considerando-os demônios e mostrando o lado da pessoa que sabia o que dizer na hora certa, ele não se importava em falar a verdade”, contesta.
Tanto não fugia dos fatos que não perdia uma oportunidade de comparecer à redação do O POVO para dar uma palavra rápida a quem desejava sua fala em uma matéria. Nonato, que conviveu desde muito novo com a figura, o tinha como um tipo de pai. Conta que não esquece do expediente de uma quinta-feira, dia 26 de setembro, quando soube do falecimento. “Na redação nós ficamos perplexos, parados, nós sofremos a perda”, resgata.
No passo do “tempo avassalador” desses 30 anos sem Eusélio, a distância não diminui a falta da sua ausência. Se estivesse aqui, pontua Nonato, as coisas estariam acontecendo no movimento dele: ágil e enérgico. Ao realizar a entrevista para esta reportagem, o jornalista divagou ao imaginar como seria ter a presença do cineasta atualmente. Para o amigo, ele estaria nas redes sociais, com blogs de cinema “enlouquecendo os internautas” contra todo tipo de preconceito, censura, anti-democracia. Eusélio, de certa forma, continua realizando as previsões do amigo: “cultuando um universo de informações” através dos ensinamentos do seu existir.
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