Já se conhecia o Chico Buarque letrista, o sambista, o autor de teatro e o romancista premiado. Com "Anos de chumbo e outros contos" (Cia das Letras), entra em campo agora o Chico contista.
Estreando no gênero aos 77 anos, o artista mostra domínio da narrativa curta, expandindo o território estético e político do qual sua música e literatura fazem parte, influenciando-se mutuamente e dividindo temáticas, embora o cantor já tenha dito que se tratam de âmbitos diferentes.
E o Chico que maneja o conto é tão hábil quanto o autor de "Leite derramado" e "Budapeste", talvez seus dois romances mais bem-acabados. Reunindo oito histórias, "Anos de chumbo" traz um Brasil tocado por Chico em "Caravanas", disco mais recente, mas atualizado para contemplar o abismo progressivo dos anos de Bolsonaro.
Nesse exercício, o que se vê é um Chico docemente vingativo, que faz troça com os tipos da república bolsonarista, dos militares aos "haters" que o perseguem pelas redes sociais e nos saguões de aeroportos.
"Meu tio", que abre o volume de 168 páginas, acompanha uma garota levada para passear pelo tio, o tipo miliciano recém-enriquecido que desfila pelas ruas do Rio numa SUV branca e distribui dinheiro farto. Logo se descobre que as visitas do parente têm outro sentido.
"Meu tio veio me buscar em casa com seu carro novo", narra a menina. "Ele não costumava subir, mas dessa vez trazia uma encomenda para a minha mãe. Como sempre acontece nessas situações, papai fingiu que estava dormindo no quarto. Mamãe recebeu meu tio com dois beijinhos, ofereceu café, água, pão de queijo, mas lá em casa ele ficava irrequieto, não se instalava."
O tom faz lembrar Dalton Trevisan, contrastando essa voz mais íntima e quase infantil da personagem com o quadro de violência que se desenrola, para o qual a conivência familiar e as tintas com que o autor pinta o tio conferem intensidade.
O conto que se segue é "O passaporte", ambientado exatamente num aeroporto, local privilegiado onde se expressam as paixões nacionais de um certo Brasil reacionário, e isso não escapa ao olhar de Chico, que se sai ótimo satírico.
Narrada em terceira pessoa, a história segue "o grande artista", que poderia ser o próprio autor, mas cujo nome é ignorado. Entre idas e vindas, o personagem se desgarra do passaporte. Dá-se início a uma série de erros e encontrões, tratados sob a chave da pilhéria, numa escrita ora divertida, ora absurda.
Destaco um trecho: "Na entrada do banheiro teve de se desviar de um sujeito ali plantado, um homem bronzeado dos seus quarenta anos, com jaqueta de camurça e ares de playboy, que o encarou com aquela expressão hostil a que ele vinha se habituando nos últimos tempos".
Mais adiante, o narrador afirma que o grande artista "tinha noção de quanto era detestado em certos meios, e não era de admirar que algum canalha chegasse ao ponto de jogar seus pertences no lixo".
Dos oito contos, "O passaporte" é sem dúvida aquele no qual Chico deixa ver mais explicitamente a intenção de se divertir indo à forra, ridicularizando os detratores e fazendo de "Anos de chumbo" uma espécie de acerto de contas, como já havia ensaiado no romance anterior, "Nossa gente", publicado em 2019 - entre os dois trabalhos, passaram-se apenas dois anos, o menor intervalo entre publicações de Chico.
"O passaporte" é também um dos contos mais longos e precisos do livro, no qual o autor se mostra capaz de articular temas políticos, recorrendo ao humor, sem, contudo, baratear a qualidade literária do conjunto, atingindo raro equilíbrio na escrita.
Outro exemplo disso são os contos "O sítio", em que um casal formado por um autor iniciante e uma atriz se refugia numa chácara no início da pandemia, mas depois as coisas não saem exatamente como o planejado; e "Anos de chumbo", que encerra o volume e merece atenção especial, não por fechar a obra, mas por oferecer uma visão dos militares entre o deboche e a pilhéria, fazendo convergir aqui outra faceta de Chico: a da resistência ao regime de exceção.
No conto, que avança em primeira pessoa na voz de um garoto, Chico opera novamente com o tom jocoso, explorando uma cena de intimidade entre um casal, cujo pai e marido é oficial de alta patente, e um comandante com ares de bufão que visita a casa do subalterno nas tardes ociosas.
Enquanto escala o auxiliar para tarefas cada vez mais odientas e demoradas, entre elas a tortura de militantes capturados pela ditadura, o major se encontra com a esposa do amigo. Lá pelas tantas, o narrador/filho segreda que "a todo o oficialato ele (o pai) se impunha pelo exemplo, como ao sacrificar suas horas de repouso e lazer no recesso do lar para se ocupar dos seus prisioneiros noite adentro".
Exemplo, contudo, duplamente punido: pela traição do amigo e superior e pelo gesto final do filho, que decide colocar um termo àquela história. Mais não digo para não comprometer a leitura.
Nem tudo, porém, é horror e bestiário, violência e gozo no livro recém-lançado de Chico. Nele há espaço também para certa dose de ternura, mas também não sem alguma graça. "Para Clarice Lispector, com candura" é uma bela homenagem à escritora de "Laços de família", "Água viva" e "A hora da estrela", com quem Chico de fato se encontrou na juventude.
De contornos autobiográficos, a história acompanha as conversas e uma quase paixão entre um poeta e a escritora já festejada, que depois, ante os enigmas de Clarice e sua morte, se tornam uma obsessão. Os anos transcorrem, e então o admirador se converte num imitador de Clarice, desses tantos que pululam pela internet, fabricantes de frases feitas falsamente atribuídas à autora.
O conto é uma joia do livro, que, talvez por seu tema ou condução narrativa, está como que deslocado no volume. Ou talvez não. Quem sabe Chico o tenha mantido ali, mesmo destoante, exatamente para dizer que, apesar de você, amanhã há de ser outro dia.
Anos de Chumbo e outros contos
De Chico Buarque
Companhia das Letras
168 páginas
Capa: Raul Loureiro
Quanto: R$ 59,90 (E-book: R$ 29,90)
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