Na corda-bamba, a cantora Gloria Groove convida o respeitável público para assistir aos deslizes que ela vai cometer. Assim é o recém-lançado clipe de “A Queda”, obra com forte apelo ao terror e à temática circense, uma referência explícita ao “show de horrores” que a exposição midiática pode se tornar. Em tempos aflorados pela chamada “cultura de cancelamento”, o novo lançamento da drag queen paulistana convida o público a encarar as imperfeições.
“A maior definição de horror para uma pessoa pública é o ódio”, elabora a artista, em entrevista ao O POVO, detalhando que a estética do terror surgiu ainda nos primeiros passos do nascimento da composição. “‘A Queda’ nasceu como um projeto 360º: a música, a mensagem e uma estética visual para o videoclipe. Tudo isso junto já sugeria o marketing, uma estratégia reversa. Eu falo que a ‘A Queda’ se pariu”, conta, destacando a vontade que tinha de debater "ódio extremo e linchamento público".
Como estratégia de divulgação, Gloria se arriscou ao anunciar que a sua conta no YouTube havia sido hackeada. Os vídeos de sucessos como “Bonekinha” e “Coisa Boa” foram ocultados e surgiram imagens misteriosas revelando possíveis problemas enfrentados pela cantora. Nas redes sociais, o burburinho dos fãs passeou entre acreditar que algo estava errado e se empolgar com um possível novo lançamento musical.
A proposta, segundo a artista, foi justamente provocar diferentes sentimentos em quem acompanha sua carreira. “Os conceitos de cancelamento e frustração se misturam um pouco quando a gente fala de artistas. É importante ter consciência que pode ser vil e sádico o jeito que o amor do público se desenvolve. É gostoso, é lindo, é poético, é dramático e, por ser dramático, o amor e o ódio andam lado a lado", reflete. "A música é também um recado: eu recebo esse amor, mas eu sei muito bem do que o ódio é capaz", completa.
Sucesso no pop brasileiro desde 2016, quando lançou o single “Dona”, a persona que tem por trás o cantor, ator e dublador Daniel Garcia já viveu momentos de tensionamento diante do público. Um exemplo é o caso de "expulsão" de fã que invadiu o palco da artista em 2019. Ele tentou abraçá-la, mas não foi bem recebido. "Eu agi em cima do palco como uma drag queen agiria, mas o que esperavam de mim? Que eu agisse como um artista brasileiro humilde", contrapõe, relembrando os comentários de que teria sido ingrata.
A tensão mais recente envolvendo Gloria aconteceu em fevereiro deste ano quando ela defendeu Karol Conká durante a polêmica participação da rapper no Big Brother Brasil 21. “Eu passei pelo que eu passei na época de defender a Karol e eu não sou apologética quanto a isso. Eu firmo o pé e eu estou aqui”, sustenta, diante do caso da amiga artista que foi acusada de fazer “tortura psicológica” com outros participantes. “Isso é entretenimento?”, provoca Gloria.
“A Queda”, inclusive, encontra eco no single “Subida”, de Conká. “Eu vejo muitos se contradizendo enquanto se perdem por likes”, canta a ex-BBB, também refletindo sobre linchamento virtual. A tumultuada edição do reality show rendeu ainda o livro “Cancelada”, escrito por Viih Tube, e deve pautar o novo álbum de Projota. Não dá para negar: os artistas estão precisando falar do tema. “O cancelamento vem quando o grande público consegue reparar qualquer traço de humanidade numa pessoa pública”, pontua Gloria.
Bem antes de incorporar uma diva pop, Daniel, hoje aos 26 anos, já vivia sob os holofotes. Quando criança, participou da Turma do Balão Mágico, foi calouro do programa do Raul Gil e atuou na novela “Bicho do Mato”, na Record TV. Na adolescência, dublou filmes e animações, além de trabalhar com teatro musical. “Desde criança, eu venho me preparando psicologicamente para ter minha vida analisada, apontada. Meu amor pelo que eu faço supera isso e eu vejo como consequência”, afirma.
Apesar de defender não ver “nada positivo no ódio”, Gloria reflete que debates acalorados nas redes sociais podem revelar o avanço de algumas pautas. “O cancelamento é um medidor de como estamos lidando com as questões. A gente está conseguindo apontar para problemas que antes não conseguia identificar”, pontua, justificando não estar defendendo “cancelamento recreativo e gratuito” e, sim, a problematização de “pautas embasadas”.
Todo esse debate conquistou o público e o videoclipe de “A Queda” chegou ao topo no YouTube Brasil, superando os lançamentos de Adele e Anitta. Consolidando-se o mais ouvido lançamento solo da artista, a música integra o ainda inédito disco “Lady Leste”. Na paralela, a cantora participa do “Show dos Famosos”, do “Domingão”, com importante visibilidade no horário nobre da TV Globo. No bom momento, Glória celebra a importância de seguir buscando autonomia artística: “Eu não vou deixar de expressar o que eu estou pensando por pura pressão social”, completa.