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Dia dos Namorados: outras formas de amar no contemporâneo
Vida & Arte

Dia dos Namorados: outras formas de amar no contemporâneo

No Dia dos Namorados, celebrado neste domingo, 12 de junho, o Vida&Arte reflete sobre as várias formas do amor - romântico ou não - na sociedade contemporânea
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Thais Herculano e Maria Freitas estão juntas há uma década (Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Thais Herculano e Maria Freitas estão juntas há uma década

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Todos os processos de autodescoberta da escritora Maria Freitas aconteceram ao lado de da assessora Thais Herculano. Primeiro, descobriu-se birromântica ao se apaixonar pela mulher com quem compartilha a vida há uma década. Depois, a jornalista se fez presente nos outros momentos. "Comecei a entender que não estava no estereótipo de bi. Fui conhecendo mais sobre demissexualidade. Refleti sobre como lidava com meus relacionamentos e como me sentia com meus sentimentos", explica. A partir disso, também compreendeu que seus afetos funcionavam de uma maneira não-monogâmica. "Dentro do meu relacionamento, sempre tive muita compreensão em relação a isso, o que me ajudou muito", afirma.

"Ela sempre esteve comigo, me apoiou e me incentivou a buscar pela pessoa que sou, e ela sempre quis ficar comigo nesses momentos. Ela sempre quis ficar comigo apesar dessas descobertas, e dos altos e baixos. Ela escolheu ficar do meu lado, e eu escolhi ficar do lado dela. Apesar de eu não ser a pessoa que ela conheceu há dez anos, e ela não ser a pessoa que eu conheci há dez anos, a gente sempre escolhe ficar junta. E acho que isso diz tudo sobre o nosso relacionamento. Tenho certeza que não teria nenhuma força e coragem de lutar por quem eu sou se não estivesse com ela do meu lado", reflete.

Mas Maria Freitas também descobriu seus próprios sentimentos a partir de sua conexão com a leitura. Apesar de ser uma "leitora de fases", trabalhar com a escrita lhe proporcionou uma discussão sobre o amor e a sexualidade. "Para escrever, eu precisava pesquisar e entender o que estava fazendo. E eu me encaixava naquilo. Percebia que a forma que sempre enxerguei o mundo tinha nome e pessoas como eu existiam. Então o meio literário, os amigos que fiz, os leitores que tenho, isso me ensinou demais", indica.

Seu trabalho é dedicado a apresentar personagens com protagonismo LGBTQIAP+. Um de seus livros mais recentes, por exemplo, é a continuação de "Mas… E se?", que aborda a história de um casal poliamoroso. Já a coleção de contos "Clichês em rosa, roxo e azul" trata sobre as narrativas bissexuais. "Eu não saberia não destacar o protagonismo LGBTIAP+, em geral, das minhas histórias. É minha realidade e eu sempre busquei isso sem nem saber que estava buscando. Então acho que a maioria dos escritores que escreve literatura LBTQIAP+ escrevem justamente porque sentiram essa falta e ainda sentem essa falta de histórias com protagonismo de pessoas que se pareçam com eles", pontua.

Para ela, as diferentes formas de amar, mais evidentes nos dias atuais, surgem porque é impossível padronizar os sentimentos humanos. "Nós, seres humanos, somos extremamente diversos. A sociedade construiu estruturas, normas e regras para que a gente fosse uniformizado. Mas o ser humano não é assim. O padrão é sempre imposto, economicamente ou socialmente. Acredito que o amor é o maior sentimento que podemos sentir pelos outros e não temos como padronizar isso", defende.

 

 

Projetos para e sobre aroaces

Lori Araújo é uma escritora e estudante de psicologia que participa do projeto "Aroaceiros", fundado com o objetivo de disseminar informações sobre arromanticidade e assexualidade. "O Aroaceiros é um projeto relativamente recente. Foi criado em 2020 justamente da necessidade que nós, assexuais e arromânticos, tínhamos por produção de fontes de informação confiáveis em português. Quem se descobriu assexual ou arromântico antes de 2019 vai entender muito bem quando eu digo que não tinha informação de fácil acesso sobre isso em português, o que era um problema", diz a jovem, que é agênero e se identifica com todos os pronomes.

De acordo com ela, quebrar as tradições sobre o amor romântico é importante para todas as pessoas. "É chocante perceber como, desde a infância, é pregado, principalmente para mulheres, que o amor romântico, o casamento e a família são metas de sucesso. Se você é solteiro depois de uma certa idade, você é uma piada, é malsucedido. Quantas vezes não ouvi nessa vida coisas horríveis, das mais machistas possíveis, sobre mulheres mais velhas que optaram por não casar e não ter filhos? Até na ficção essas mulheres frequentemente são a bruxa malvada ou figuras infelizes que praticam coisas ruins", afirma.

Para a estudante, essa desconstrução é uma das grandes colaborações que sua comunidade tem a oferecer. Isso ocorre porque a existência dos arromânticos, por si só, questiona a lógica tradicional do amor. "A nossa própria existência nos joga para fora dessa norma, nos leva a questionar isso, ameaça a integridade dessa ideia que é vista como natural, constantemente romantizada e que sabemos muito bem a quem ela mais beneficia: ao patriarcado".

Lori Araújo, que nunca sentiu atração sexual e ainda está no processo de definir seus sentimentos (românticos ou não), também escreve contos aroaces que estão disponíveis nas plataformas digitais. Ela identifica que, apesar de certos avanços, ainda há pouca representatividade sobre trajetórias arromânticas e/ou assexuais. "É muito difícil ser um adolescente de 15 anos se percebendo totalmente fora daquela realidade que todos os seus amigos vivem e não tendo nenhuma referência. É inegável que a literatura, assim como a mídia em geral, tem um papel fundamental nesse acolhimento. Quando não temos ninguém igual a nós ao nosso redor, é bom ao menos poder abrir um livro e ver que algum personagem vive aquilo que estamos passando", ressalta.

Breve dicionário

- Birromânticos: quem sente atração romântica por pessoas de qualquer gênero.

- Demissexualidade: atração sexual que se manifesta com uma forte conexão emocional. Está dentro do espectro da assexualidade.

- Assexualidade: falta de atração sexual, pouca atração sexual ou atração sexual condicional, a depender da relação.

- Arromanticidade: espectro que engloba atrações românticas nula, parcial ou condicional.

- Aroaces: pessoas que se identificam como arromânticas e assexuais.

- Não-monogamia: possibilidade de estabelecer mais de uma relação ao mesmo tempo, seja de forma romântica e/ou sexual.

- Poliamor: relação amorosa entre três ou mais pessoas, em que todos os envolvidos têm conhecimento sobre os respecitovs relacionamentos.

Roberta Laena e Alan Mendonça fizeram uma performance poética durante o casamento
Roberta Laena e Alan Mendonça fizeram uma performance poética durante o casamento

Amor através da poesia

O primeiro encontro da pesquisadora e servidora pública Roberta Laena com o escritor e dramaturgo Alan Mendonça aconteceu em um evento de poesia. O autor estava em uma mesa-redonda, citando e discutindo poemas, e ela era uma ouvinte. Naquele dia, ele lhe presentou com a obra "O silêncio possível", e a data grafada na folha de rosto marcou o início da relação entre os dois.

Anos depois, quando iniciaram os planos para o casamento, também começaram a escrever o livro "Manual das estradas em dias suspensos". As palavras feitas a quatro mãos são dedicadas ao amor. E, como uma forma de celebrar a poesia que lhes conecta, fizeram um espetáculo com música e declamação de poemas no dia em que se casaram.

A obra também surgiu com o objetivo de fazê-los parar em uma sociedade que lhes obriga a serem excessivamente produtivos. "Diante dos cansaços dos dias corridos, do excesso de trabalhos e dos silêncios e distanciamentos que a contemporaneidade produtiva gera, decidimos nos permitir a 'dias suspensos', dias de não-trabalho, de caminhos outros e, principalmente, dias de poesia", contempla Alan Mendonça.

"Alguns poemas são meus, alguns poemas são do Alan, mas a maioria é de nós dois. Foram escritos todos em momentos de suspensão, em viagens curtas que fizemos… Muitas vezes pelo celular: sentados numa mesa, um de frente para o outro, eu escrevia um verso e mandava pelo WhatsApp. Ele olhava, escrevia outro verso e me mandava. E assim o poema ia se desenhando", explica Roberta Laena sobre o processo de produção.

Para o escritor, os verdadeiros encontros são raros. Em um mundo tão veloz, o olhar atento e o cuidado com o outro se tornam escassos. "Há amores velozes, amores surdos, amores mudos, amores doentes, amores que fecham caminhos. O ato de amar em relação (ou a ilusão disso) é reflexo de cada pessoa. Há pessoas que só estão para o desencontro, desencontradas delas mesmas de tão narcísicas. Porém, há pessoas que estão para o encontro, o encontro mútuo entre os diferentes. São raros os amantes encontrados. Quando se encontra esse tipo de amor, talvez se possa suspender dias, desacelerando-os, permitindo que os olhares se vejam com atenção própria do amor mais lento e leve", reflete.

Zenilce Bruno fala sobre amores na contemporaneidade
Zenilce Bruno fala sobre amores na contemporaneidade

Amor na contemporaneidade

Para a psicóloga e sexóloga Zenilce Bruno, o mundo contemporâneo tem uma tendência destrutiva. Entre excessos de consumo, narcisismos e intolerâncias, as pessoas podem perder as conexões que permitem encontros amorosos. “A mudança virá se formos capazes de ver além do nosso umbigo e sairmos em luta por maior equidade. É hora de nos perguntarmos o que estamos fazendo da vida que temos nas mãos. Que páginas da história queremos deixar escritas com nossas ações? Na orgia de consumismos, banalizações e celebridades não há dignificação do existir. Ou encontramos isso em nossa coragem de ser, ou corremos o risco de nunca chegarmos aos encontros amorosos”, cita.

Segundo ela, todas as gerações passam por problemas específicos. E, no mundo atual, muitas pessoas começaram a tratar a vida como “algo simples e desprezível, que dela se faz uso para fins destrutivos”. “É um tipo de atitude que vem sendo fortalecida num contexto em que crescem os narcisismos e as intolerências, promovendo a depreciação crescente do cordial, relacional e amoroso. Desde que a felicidade passou a ser buscada nas coisas, no consumo, na ostentação, no parecer, no poder, e não dentro do sujeito e nas relações que estabelece, o outro foi perdendo seu lugar de parceiro e começou a ser visto como concorrente e rival”, reflete.

Regina Navarro Lins reflete sobre os amores na contemporaneidade
Regina Navarro Lins reflete sobre os amores na contemporaneidade

Outras maneiras de amar

Regina Navarro Lins é uma psicanalista e escritora brasileira que aborda temas como sexualidade e relacionamentos. A autora já escreveu muitos livros em que aborda as mudanças no amor entre as gerações. Algumas de suas obras são "Novas formas de amar", "A cama na varanda", "O livro do amor: da pré-história à renascença" e "A cama na rede: O que os brasileiros pensam sobre amor e sexo". Em entrevista ao O POVO, ela trata das transformações da sociedade contemporânea acerca das relações amorosas.

O POVO: Por muito tempo, vivíamos em uma sociedade que idealizava o amor romântico. Mas você defende que esse tipo de amor, aos poucos, está dando espaço ao desejo. Como essa mudança acontece? O que justifica essa transformação?

Regina Navarro Lins: O amor romântico começou no século XII, mas esse amor não podia entrar no casamento. As famílias escolhiam com quem seus filhos iam casar. A minha crítica ao amor romântico é que ele é calcado na idealização. Você conhece uma pessoa e atribui a ela aspectos que ela não possui. Depois você se desencanta, se decepciona com a convivência porque não pode manter a idealização. O amor é uma construção social, em cada período da história, ele se apresenta de uma forma. O amor romântico, além da idealização, prega que as duas pessoas têm que se transformar em uma só, vão se transformar em uma só, que nada mais vai lhes faltar, que uma vai satisfazer totalmente as necessidades da outra pessoa e que, quem ama, não tem olhos para mais ninguém. Qualquer coisa só tem graça se o amado tiver presente. Então, o que acontece é que o amor romântico está dando sinais de sair de cena. Toda vez que há uma mudança nas mentalidades, na forma de viver e pensar, é algo lento e gradual. O amor romântico, que prega a não-individualidade na medida que prega fusão, está saindo de cena porque os anseios contemporâneos são em busca da individualidade. E o amor romântico prega o oposto disso. Então, estamos vendo, aos pouquinhos, esse amor saindo de cena e levando com ele a exigência de exclusividade. As pessoas estão buscando novas formas de se relacionar amorosamente, de uma forma que não entra a exclusividade. Por isso, não entra a monogamia. Por isso, nós estamos assistindo surgir o poliamor, amor a três, relações livres…

O POVO: Que projeções você faz para o amor no futuro? Onde estaremos em alguns anos?

Regina Navarro Lins - No futuro, menos pessoas vão querer se limitar a uma relação a dois e mais gente vai optar por relações múltiplas. Primeiro, a gente tem que falar sobre o casamento. Acredito que o casamento que a gente conhece hoje vai deixar de existir, porque um número enorme de pessoas casadas vivem muito mal. Acredito que pouquíssimas pessoas, 10% no máximo, vivem realmente satisfeitas e têm um casamento satisfatório. Elas vivem mal por conta desse modelo de casamento da nossa cultura, que é calcado no controle, na possessividade, no ciúmes e no desrespeito à individualidade do outro. Então é praticamente impossível se viver bem. Quais são os maiores problemas no casamento? O sexo é o maior problema que os casais vivem. No casamento, o que você mais observa é o fim do desejo sexual. As pessoas estão muito frustradas por não sentirem mais desejo sexual pelo parceiro ou pela parceira, principalmente, são as mulheres que perdem o desejo sexual. Tenho um consultório há 48 anos e o que mais escutei durante toda a vida foram mulheres dizendo: 'amo meu marido, não quero me separar, mas não tenho menor vontade de fazer sexo com ele. É o meu melhor amigo, um bom pai e companheiro, temos uma vida social interessante. Mas gosto de ficar abraçada com ele fazendo cafuné'. Por que acaba o tesão no casamento? São vários os motivos. Mas principalmente por esse controle, pelas pessoas não terem sua individualidade, sua privacidade. A dependência emocional é um fator muito comum no casamento. Se eu sei que meu marido depende totalmente de mim, tem medo de me perder, não tem vida própria, não transaria com mais ninguém, não tem projetos próprios, a relação vai se desfazendo. Cadê a sedução, a conquista? O mínimo de insegurança é necessário para viver uma relação amorosa satisfatória em que o tesão continua existindo.

Livros para entender os amores

"Amor na Vitrine”, de Regina Navarro Lins
O amor passou por muitas mudanças. E no livro “Amor na Vitrine”, da psicanalista Regina Navarro Lins, a autora apresenta um percurso das relações amorosas desde a pré-história. Ela caminha por momentos como a Idade Média, o Iluminismo, a criação das pílulas anticoncepcionais até os dias atuais. Ao chegar na sociedade contemporânea, reflete sobre as estruturas dos relacionamentos e a sexualidade.
BestSeller
376 páginas
Preço médio: R$ 49,90 (e-book: R$ 27,26)

“Tudo sobre o amor”, de bell hooks
bell hooks (1952 - 2021) foi uma teórica antirracista e feminista que abordou temáticas distintas em sua trajetória profissional. No livro “Tudo sobre o amor”, ela se debruça sobre os significados do amor em quaisquer relações, como familiares, românticas e de amizade. A autora se distancia da ideia de que o sentimento é um sinal de irracionalidade e descreve que é uma ação que vai na contramão da ganância e do niilismo presentes no mundo.
Editora Elefante
272 páginas
Preço médio: R$ 54 (e-book: R$ 43,60)

“Ética do amor livre”, de Janet W. Hardy e Dossie Easton
Janet W. Hardy é escritora, educadora sexual e fundadora da editora Greenery Press, especializada na publicação de livros sobre BDSM e poliamor. Já Dossie Easton é uma terapeuta da família focada no público LGBTQIAP+. Nesta obra, as duas autoras revelam como a monogamia é uma construção ideológica, questionam os valores impostos pela sociedade e defendem a liberdade das escolhas.
Editora Elefante
368 páginas
Preço médio: R$ 62 (e-book: R$ 47,91)

“Sexoterapia: desejos, conflitos, novos caminhos em histórias reais”, de Ana Canosa
Psicóloga clínica, terapeuta sexual e educadora em sexualidade, Ana Canosa apresenta crônicas baseadas em casos clínicos reais. Ela expõe os questionamentos e os sentimentos humanos de prazer, paixão, amores, separação e preconceitos. Seu objetivo é explicitar as dimensões humanas a partir de uma linguagem coloquial e de fácil entendimento para públicos variados.
Alta Life
144 páginas
Preço médio: R$ 38,90 (e-book: R$ 22,68)

“Sem amor”, de Alice Oseman
Alice Oseman é uma das autoras atuais mais promissoras da literatura jovem. Famosa por “Heartstopper”, que virou uma série da Netflix, ela também escreveu “Sem Amor”. Na história, Georgia é viciada em fanfics, uma ficção para fãs, e se considera muito romântica. Mas ela nunca se apaixonou, beijou ou sentiu atração por alguém. Quando entra na universidade e conhece pessoas que se relacionam de diferentes formas, passa a conhecer conceitos como assexualidade e arromanticidade.
Rocco
466 páginas
Preço médio: R$ 69,90 (e-book: R$ 9,95)

“Cartas para Luísa", de Maria Freitas
Rafaela é uma jovem bi e assexual que começa a escrever cartas para sua antiga melhor amiga, Luísa. As duas não mantém mais contato há anos, e a escritora faz questionamentos e indagações sobre os motivos para elas terem se afastado. A narrativa é dividida em dois momentos temporais: o primeiro acontece em 2009 e apresenta várias referências à cultura pop da época; o segundo ocorre uma década depois em um período bastante diferente da vida de Rafaela.
Se Liga Editorial
296 páginas
Preço médio: R$ 39,90 (e-book: R$ 9,90)

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