Há 30 anos, a atriz e dançarina Daniella Perez vivia um momento de realizações profissionais e pessoais: a jovem de 22 anos era destaque da novela "De Corpo e Alma" — escrita pela mãe dela, a novelista Glória Perez — e construía projetos futuros não somente na carreira, mas na relação com o marido, o ator Raul Gazolla. O percurso ascendente foi interrompido de forma abrupta e torpe em 28 de dezembro de 1992, quando a artista foi morta pelo também ator Guilherme de Pádua, que era colega de elenco na obra televisiva. O caso que chocou o País é revisitado na série documental "Pacto Brutal - O Assassinato de Daniella Perez", dirigida por Tatiana Issa e Guto Barra. O V&A teve acesso aos dois primeiros episódios da produção, que estreia nesta quinta-feira, 21, na HBO Max.
A efeméride de 30 anos do crime e o momento de destaque e repercussão de obras que se debruçam em crimes reais — que vão do podcast de sucesso "A Mulher da Casa Abandonada", do jornalista Chico Felitti, à graça feita com o formato na série de humor e suspense "Only Murders in the Building", com Selena Gomez e Steve Martin, para citar somente exemplos recentes e diversos entre si — podem ajudar a explicar a produção da série.
A principal motivação de "Pacto Brutal", porém, parece ser, de maneira mais simbólica e intensa, aquela enunciada por Glória Perez nos primeiros segundos da série: "Eu sempre quis que essa história fosse contada da forma como aconteceu, e não que ela permanecesse contada como uma novela barata, um folhetim barato". A fala da mãe de Daniella aponta a intenção de resgatar o caso para elucidar questões que seguem até hoje equivocadamente ligadas ao crime.
Mais frontalmente, por exemplo, a produção aborda a atribuição de um falso caso amoroso entre Daniella e o assassino. Em momentos fortes dos episódios disponibilizados, Glória Perez revê capas e matérias de revistas de fofoca que sugeriam, a partir do uso de imagens das personagens que Daniella e Guilherme viviam na novela, que o crime teria ligação com um suposto relacionamento entre os dois.
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"Isso é muito mais agressivo do que as fotos dela no local. Isso aqui é continuar matando a pessoa", atesta a dramaturga, comparando os conteúdos sensacionalistas às fotos do corpo de Daniella que também circularam à época. A avaliação de Glória do peso das imagens referidas joga luz em um aspecto, inclusive, contraditório da própria série documental.
A presença de Glória Perez como entrevistada e de diversas outras figuras ligadas ao caso à época — do então marido de Daniella, o ator Raul Gazolla, a amigos como Cláudia Raia, Eri Johnson e Fábio Assunção —, depõe acerca de uma parceria da família e amigos da jovem atriz com a produção. Uma relação de confiança, decerto, foi estabelecida para resultar nos sensíveis depoimentos e na utilização de arquivos de intimidade de Daniella, como registros em imagem, vídeo e até diários e cadernos.
É inclusive por isso que a irregularidade de tom, pelo menos nos dois primeiros episódios da série, soa ainda mais evidente. De aspecto positivo, há de fato uma tentativa discursiva de construir um retrato crítico ao sensacionalismo e às falsas narrativas criadas e divulgadas por parte da mídia à época. Notadamente, a produção opta por não ouvir nem Guilherme, nem Paula (então esposa dele, também acusada e presa pelo crime), nem advogados ou representantes dos dois.
As boas intenções da obra podem ter sido inúmeras — e há segmentos de fato interessantes, como os que refletem sobre os atravessamentos de gênero na repercussão do caso ou aqueles que mostram a mobilização do público perante o caso, confundindo ficção com realidade —, mas a utilização de certas imagens de forma pouco elaborada abre margem para questionamentos.
O uso insistente das fotos da atriz já morta, em especial, aproxima a obra de um ar sensacionalista, reforçado ainda por outros expedientes formais, como as cenas pontuais que funcionam como "simulações" do passo-a-passo do crime. As sequências lembram, inclusive, o programa policial "Linha Direta" (1999-2007), da Globo, que reconstituía crimes reais — consta que a emissora chegou a produzir um episódio sobre o caso de Daniella Perez que acabou não sendo exibido.
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A abordagem problemática é ainda mais acentuada pelas também insistentes sugestões de um caráter "macabro" envolvendo o crime. De partida, o próprio título, "Pacto Brutal", sugestiona esse viés. Há, ainda, reproduções de falas da época do crime e também entrevistas recentes que reforçam um caráter sobrenatural. Porém, diferentemente do uso das capas de revistas de fofoca sensacionalistas, que são trazidas de modo a elaborar um olhar sobre gênero e culpabilização da vítima, tais menções são jogadas de maneira irresponsável, estabelecendo uma abordagem que observa o crime pelo viés do "pitoresco".
Apesar da intenção anunciada pela novelista de retomar a narrativa do assassinato da filha sem o viés "barato", "Pacto Brutal" é trôpego neste sentido. A obra parece se esforçar para tentar encontrar algum equilíbrio, mas a linha é tênue e o caminho, ao menos de partida, é irregular.
Pacto Brutal - O Assassinato de Daniella Perez
O quê: série documental em cinco episódios
Quando: estreia na quinta, 21 de julho
Onde: HBO Max
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