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Destaque em Paris e NY, Linga Acácio fala sobre percurso artístico "desobediente"
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Destaque em Paris e NY, Linga Acácio fala sobre percurso artístico "desobediente"

Com obra exposta na França e filme recém-premiado nos Estados Unidos, a artista cearense Linga Acácio destaca a "desobediência" em sua obra e sustenta a afetividade em "mundo mergulhado em guerras"
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A artista cearense vai expor suas obras no Museu Palais de Tokyo, na França  (Foto: Linga Acácio )
Foto: Linga Acácio A artista cearense vai expor suas obras no Museu Palais de Tokyo, na França

De Fortaleza a Nova Iorque, Paris e onde mais couber a arte multilinguagem de Linga Acácio. A cearense passeia entre fotografias, desenhos, esculturas, instalações e mais em percurso artístico pautado na "interseccionalidade" e na "desobediência anticolonial". A artista, que atualmente integra exposição no museu Palais de Tokyo, na França, divide com o Vida&Arte momentos da sua trajetória.

"Arte, para mim, é um trabalho junto ao sensível do mundo, que é a própria vida. Em um mundo mergulhado em guerras, que tem a brutalidade como meio, fortalecer ações que possam promover reconexões e afetividades tem sido de grande importância para mim", destaca Linga ao ser questionada sobre as motivações para criar. Segundo ela, é importante ir na contramão de uma sociedade "heteronormativa, elitista e racista".

A artista participou da primeira e única turma do curso de Artes Visuais da Vila das Artes em 2011 e, desde 2012, atua como diretora de fotografia com participação em mais de 25 filmes, entre longas e curtas-metragens. Em 2021, foi artista residente do programa de pesquisa em arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) e também fez parte do Grupo de Crítica do Centro Cultural São Paulo entre os anos de 2020 e 2021.

Na infância, a fotografia sempre foi uma companhia, em forma de diversão, lazer e até diário para Linga. Já o desenho funciona como refúgio na busca por seus contornos. O começo na cena artística, ela conta, foi bem desafiador pela falta de incentivo e ausência das instituições públicas. Driblando os desafios, hoje, aos 38 anos, integra a exposição "Fora da noite da norma, fora do enorme tédio" no museu Palais de Tokyo, na França, com o trabalho "Zona de Convivência, Organismo perigo infinito". O trabalho entra em cartaz nesta quarta-feira, 18, e segue até 7 de janeiro de 2024.

"O convite surgiu a partir da curadoria de Valentina D'avenia e Clément Raveau para uma residência de três meses em Paris, de junho a setembro, e abertura da exposição agora em outubro. A exposição tem como ponto de partida pensar o amor e a convivência sob a perspectiva queer/LGBT em dimensões históricas e afetivas", detalha a cearense.

A mostra reúne vinte artistas de países diversos e busca mostrar "o amor como um ato de resistência, ultrapassando as normas rígidas que limitam as expressões emocionais".

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Neste trabalho, Linga mostra em sua obra um jardim no formato do símbolo do perigo biológico, vidrarias de laboratório e rosas, onde enxerga isso com entusiasmo para a possibilidade de circular e abrir pontes com outras localidades sobre questões que abordam diretamente sua existência. "Acredito que isso amplia as atuações e fortalece o trabalho que temos feito no Ceará e no Brasil", expõe.

No Estado, a artista participou da produção de fotografia do filme "Estranho Caminho", escrito e dirigido por Guto Parente e produzido pela Tardo Filmes, de Fortaleza. O drama independente teve sua estreia mundial no Festival de Tribeca, nos Estados Unidos, e venceu os prêmios de Melhor Filme, Melhor Roteiro, Melhor Performance e Melhor Fotografia (com destaque para o trabalho de Linga) na Competição Internacional.

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"'Estranho Caminho' foi um filme muito especial de ser realizado, não só pela estrutura, mas, principalmente, pelo processo rico de troca com toda a técnica e elenco. Na equipe de fotografia, tive o privilégio de trabalhar com pessoas muito talentosas que contribuíram diretamente para o resultado nas telas", aponta, ao ser perguntada sobre o trabalho no longa, recém-premiado também no Festival do Rio.

Linga destaca que todos os prêmios que o filme levou no festival em Nova Iorque são resultados de muito trabalho e pontua que o cenário do audiovisual no Estado está ganhando mais força e destaque. "No Tribeca, o filme ganhou todos os prêmios principais do festival, um sinal da potência e da inventividade que marca o cinema cearense", declarou.

Para Linga, aos poucos a cena cultural vem conquistando mais visibilidade em Fortaleza, fruto de um "trabalho enorme" feito por artistas e produtores culturais que buscam levar cada vez mais cultura a populações não-hegemônicas da Cidade e do Estado. O resultado disso é a abertura de novos espaços culturais que possibilitam a imersão desse público e tem o poder de mudar a vida de muitos jovens.

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"Percebo uma mudança no perfil das contratações e no incentivo de ações afirmativas, mas é fundamental que pessoas negras, indígenas, PCD e trans possam ocupar o espaço enquanto gestores, em cargos de confiança, e, assim, ter o poder de decisões e acesso a verba para viabilizar projetos. Não há mais tempo a perder, os artistas cearenses têm pressa", afirma a fotógrafa.

Como principais referências, a artista tem pessoas que fazem parte do seu convívio em processos de troca e partilha de saberes, e que são esses artistas e movimentos comunitários que constroem seu alicerce.

"Mais recentemente, a cena de Fortaleza tem me provocado diversas reflexões importantes, como as ações do coletivo Terra Prometida, o (bloco) Carnaval do Inferno e eventos na Barraca Foi Sol, situada na praia da Leste", afirma.

Descobertas enquanto pessoa que convive com o vírus HIV

Há 10 anos, Linga Acácio convive com o vírus HIV. A artista conta já ter vivido situações de preconceito e destaca que busca, por meio da sua criação, difundir informações sobre o assunto, além de combater estigmas sobre as pessoas soropositivas. Durante esses anos, a fotógrafa conta que recebeu apoio da família e amigos. A partir dessa base sólida, pôde buscar ajuda em grupos de pessoas que também viviam com HIV.

Ao ser acolhida, sentiu “firmeza” para, aos poucos, falar sobre seu estado sorológico, entendendo a importância que é partilhar essa vivência de forma pública. Nesse processo, ressalta também em seus trabalhos o acolhimento para pessoas LGBTQIA+, trazendo o protagonismo de travestis e trabalhadoras do sexo na luta por acesso à saúde pública, aos tratamentos e às políticas de prevenção.

"Enquanto fortalecia as palavras, fui criando os contornos desse tema através de desenhos, textos, cartas e performances. Nos últimos anos, tenho pesquisado sobre a convivência virótica e processos históricos em torno da epidemia do HIV, especialmente depois de 2020 e do surgimento da pandemia da COVID-19", declara a artista.

Já como uma mulher trans, Linga afirma que só existirá uma democracia plena no País, quando o governo fizer um pacto de forma interseccional, pela vida de pessoas trans, negras e indígenas, oferecendo direitos básicos e cidadania. "É uma luta por equidade de oportunidades, por isso a necessidade urgente de fortalecer o acesso de pessoas trans ao mercado de trabalho. A autonomia financeira é um importante passo na dignificação das vidas dessas pessoas", afirma.

Ao ser questionada sobre se sentir incluída na sociedade, a artista afirma que não deseja fazer parte de uma um lugar “transfóbico, misógino e racista”. "Pessoas trans ainda são mortas com requintes de crueldade aqui. Não esqueceremos de Keron Ravach, Dandara dos Santos e tantas outras. Pessoas trans e travestis, especialmente as racializadas (pretas, pardas e indígenas) tem me ensinado todos os dias sobre o poder da transformação da sociedade através de um processo histórico de acolhimento, luta e resistência", afirma.

Conheça mais sobre o trabalho da artista

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