"O cinema brasileiro sempre foi a fênix renascendo das cinzas, sempre foi esse trabalho de reconstrução". Citando uma afirmação do cineasta Ruy Guerra, o diretor e roteirista cearense Wolney Oliveira traz a mitológica figura como símbolo da história do audiovisual no Brasil. A partir de reflexões sobre os cenários do setor no País e no Ceará há quatro anos e hoje, profissionais cearenses avaliam percursos das políticas federais e estaduais entre esvaziamentos, manutenções possíveis e demandas para os próximos passos.
Para o audiovisual cearense, 2019 foi marcante: da vitória do cearense Karim Aïnouz em Cannes aos prêmios em Gramado para Allan Deberton, além de recorde de lançamentos comerciais de obras do Estado e produção pujante — cenário fruto de políticas e movimentos construídos anteriormente. Já 2023 vem se desenrolando em contexto de impactos de descontinuidade de políticas, mas também da manutenção de bases que possibilitaram circulação — e premiação — de obras em festivais como Tiradentes, Curitiba, Gramado e Tribeca, por exemplo.
"Pelo menos até 2019, a gente comentava sobre muito dinheiro a ser investido no setor, nas produções, e sobre encontrar o nosso espaço, porque estava efervescente: produções cearenses emergindo com força nas salas de cinema e participando de festivais", remonta Josenildo Nascimento, cineasta e fundador da Bom Jardim Produções. "Foi um ano super especial que credito à boa safra de políticas anteriores, principalmente do governo federal, mas também do estadual", dialoga Wolney.
Apesar do positivo âmbito estadual, o contexto federal já era de descontinuidades e esvaziamentos. "Aniquilar o Ministério da Cultura (fato ocorrido já em 1º de janeiro de 2019 na reforma administrativa do governo Bolsonaro) foi um passo que trouxe retrocesso. Se estava dando certo, o que tem a ver mexer em um setor da economia que estava gerando emprego, renda e com boa projeção?", aponta Josenildo.
Raylane Neres, diretora e produtora da Argumento Produções, com sede em Meruoca, cita "o desolador sucateamento da Agência Nacional de Cinema e das políticas de financiamento". "Em regra, a cadeia produtiva enfrenta adversidades inauditas, mas existem realizadores que continuaram bebendo das escassas fontes de financiamento e conseguiram se sobressair via canais alternativos", analisa.
Pesquisadora, curadora, crítica e, desde 2022, coordenadora de audiovisual da Secretaria da Cultura do Ceará, Camila Vieira lembra que, já em 2019, o governo federal à época cortou 43% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual.
"A repercussão imediata sobre a política audiovisual foi a paralisação das atividades da Ancine, com suspensão de chamadas públicas, além da tentativa de imposição de filtros sobre o conteúdo das obras audiovisuais", avança a especialista, que lembra ainda do descaso federal com a chamada cota de tela, instrumento que prevê exibição de filmes brasileiros nas salas de cinema e ficou sem validade a partir de 2021.
Todo o cenário negativo foi acentuado a partir de 2020 quando o setor sofreu — assim como todos os outros por todo o mundo — com impactos da pandemia de covid-19. Neste sentido, os produtores destacam a importância da Lei Aldir Blanc, estabelecida como medida emergencial para o campo da cultura que foi conquistada a partir de mobilização popular junto ao Congresso Nacional.
"Uma política fundamental nesse período foi a vitória da Lei Aldir Blanc. Mesmo em plenos anos de Bolsonaro e destruição do MinC, isso fortaleceu e deu um gás para se atravessar os últimos anos", afirma Wolney. "Muitas produções audiovisuais que estamos vendo circular recentemente nos festivais ainda são resquícios do que foi realizado e concluído neste período", ressalta Camila, citando exemplos cearenses como "Memórias da Chuva", de Wolney, no Festival de Gramado; "Estranho Caminho", de Guto Parente, premiado em Tribeca; e "Todo Mundo já Foi pra Marte", de Telmo Carvalho, na Mostra Olhar de Cinema (PR).
Com a retomada de investimentos culturais em geral pelo governo Lula (PT) e a execução da Lei Paulo Gustavo em estados e municípios — outra conquista popular e parlamentar ocorrida durante a pandemia —, os produtores compartilham boas expectativas. A LPG, inclusive, terá maior parte de recursos direcionados para projetos relacionados ao audiovisual.
"Como os caminhos estão se reabrindo, é factível antever que, nos próximos anos, testemunharemos uma prolífica ascensão de produções cearenses ganhando ainda mais o Brasil e o mundo", confia Raylane.
"Com a recriação do MinC, a Ancine prestes a anunciar R$ 1 bilhão de investimento no audiovisual e os editais da Lei Paulo Gustavo, acho que daqui a dois ou três anos a gente vai ter uma safra muito forte, muito filme sendo produzido com esses recursos", concorda Wolney.
"A gente tem um olhar de esperança para essa nova conjuntura política, que realmente vê a cultura como patrimônio, como emprego e renda para as pessoas. A gente só quer produzir, colaborar com o setor. Os impactos (dos últimos anos) estão aí, mas com as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, a injeção de muitos recursos para o setor, acredito que já se pode seguir ao futuro que nos espera, que é produzir", arremata Josenildo.
Audiovisual reconhece papel da Secretaria da Cultura, mas demanda aprimoramentos; pasta aponta avanços e promete novas políticas para a área
Os produtores entrevistados reconhecem a atuação da Secretaria da Cultura do Ceará como essencial para manutenções possíveis de políticas para o audiovisual em meio às adversidades, mas também apontam aprimoramentos e demandas no âmbito estadual.
"É inegável que o governo cearense tem um olhar diferenciado para o setor cultural como um todo. Todavia, é imperativo que não sejamos condescendentes ao analisar a abordagem conferida ao setor audiovisual nos anos pretéritos", aponta Raylane Neres, citando "lacunas" que "carecem de urgente preenchimento".
A primeira delas, destaca, é o "estabelecimento de um edital que verdadeiramente albergue os interesses do setor". A produtora cita a importância do Edital de Cinema e Vídeo, principal instrumento do tipo para o setor, cuja mais recente edição foi finalizada em 2022, mas aponta que os "baixos valores são bastante questionáveis". Vale frisar que a edição da chamada encerrada no ano passado foi originalmente lançada em 2019, sofrendo com atrasos tanto por problemas anteriores à pandemia quanto aos impactos causados por ela a partir de 2020.
Camila Vieira, coordenadora de audiovisual da Secult, afirma que os dois braços do Ceará de Cinema e Vídeo finalizados em 2022 — para produção, difusão, formação e pesquisa — tiveram investimento total de R$ 11.030.000,00 e que os 79 projetos apoiados estão "em fase de execução".
"São projetos de longas, curtas, formação, desenvolvimento de roteiro, cineclubes, festivais e mostras. Boa parte deles tem o prazo de execução até dezembro de 2023 e outros de maior complexidade, como os longas-metragens, até junho de 2024", informa. Já os diferentes editais da Lei Paulo Gustavo estão em distintas fases. Conforme Camila, os projetos a serem selecionados devem ter execução ao longo do ano que vem e a previsão de pagamento é para dezembro de 2023.
Outra lacuna que tem "preenchimento" demandado pelos produtores ouvidos pelo Vida&Arte é a concretização da Ceará Filmes, programa estadual para o desenvolvimento do audiovisual.
"As políticas na gestão da secretária (da Cultura) Luisa Cela e do governador Elmano (de Freitas - PT) precisam avançar. Seria importante que nesses primeiros quatro anos do (novo) governo (estadual) isso seja colocado como uma realidade, que a gente avance na política de criação da Ceará Filmes", afirma o cineasta e produtor Wolney Oliveira, que ainda cita aprimoramentos necessários para o fomento no Estado, ressaltando "problemas sérios" no mecenato estadual.
"Um dos marcos da Secult foi a criação do programa, pelo (ex-)governador Camilo Santana, que vem impulsionar o setor audiovisual. Enquanto se enfraqueceu a produção a nível federal, a gente se fortaleceu aqui. Isso foi importante, ganhar força em meio a um desmantelo no setor cultural", diz Josenildo Nascimento, da Bom Jardim Produções, produtora que atua na região periférica do Grande Bom Jardim, na Capital.
"O que pode ser aprimorado é que, por mais que a Ceará Filmes venha com essa proposta de impulsionar e fomentar o setor, recursos também venham para cá, venham a contemplar o máximo de produtoras possível", demanda. "Se o setor olhar com bons olhos para as pequenas produtoras, só tem a ganhar. Se continuar injetando recursos apenas para quem já tem mercado e vem acontecendo, não vai trazer nada diferente", defende.
"O Governo está formando profissionais com cursos pequenos, médios, nas Universidades públicas, mas essa galera sai de lá e não encontra espaço. Ela tem nos procurado, principalmente do Grande Bom Jardim e outros (bairros) periféricos, querendo oportunidade, mas a gente ainda é tão pequenininho que não pode abraçar", lamenta o produtor.
"A gente quer e está tentando, por meio da Lei Paulo Gustavo, quem sabe conseguir uma produção grande. A gente sabe que é difícil, mas imagina recursos de longa-metragem aqui, na periferia, para essa galera que sai das formações ter a chance de crescer e da nossa produtora ser esse espaço que pode garantir isso", torce. "O que se pode aprimorar é que realmente as ações do governo e da Secult também nos alcancem, cheguem até nós da periferia", sustenta Josenildon.
Conforme Camila Vieira, discussões e ações voltadas ao programa estão em pauta como prioridade para o audiovisual. "Já retomamos a discussão sobre a implantação do Ceará Filmes para pensar qual será o melhor modelo para seu funcionamento, se deve funcionar como empresa pública ou agência de desenvolvimento do audiovisual cearense", explica.
"Já temos uma legislação estadual que dá diretrizes para políticas públicas voltadas ao setor audiovisual, que é a Lei 17.857, de 29 de dezembro de 2021, que institui o Programa Estadual de Desenvolvimento do Cinema e Audiovisual - Programa Ceará Filmes. É uma legislação que deverá ser objeto de regulamentação", avança a coordenadora da Secult.
Filmes cearenses lançados comercialmente entre 1996 e 2022
Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariry (1996) | O Sertão Das Memórias, de José Araújo (1997) | Iremos A Beirute, de Marcus Moura (2000) | Eu Não Conhecia Tururu, de Florinda Bolkan (2002) | As Tentações do Irmão Sebastião, de José Araújo (2007) | Bezerra de Menezes - O Diário de um Espírito, de Glauber Filho e Joe Pimentel (2008)
A Ilha da Morte, de Wolney Oliveira (2009) | Patativa do Assaré - Ave Poesia, de Rosemberg Cariry (2009) | O Grão, de Petrus Cariry (2010) | As Mães de Chico Xavier, de Glauber Filho e Halder Gomes (2011) | Estrada para Ythaca, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti (2011) | Os Monstros, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti (2011) | Mãe e Filha, de Petrus Cariry (2012)
Cine Holliúdy, de Halder Gomes | Doce Amianto, de Guto Parente e Uirá dos Reis | Kátia, de Karla Holanda | No Lugar Errado, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti | Rânia, de Roberta Marques
Os últimos Cangaceiros, de Wolney Oliveira
O Shaolin do Sertão, de Halder Gomes
Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, de Petrus Cariry | Com os Punhos Cerrados, de Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti | Corpo Delito, de Pedro Rocha | Do Outro Lado do Atlântico, de Daniele Ellery e Márcio Câmara | Os Pobres Diabos, de Rosemberg Cariry
A Misteriosa Morte de Pérola, de Guto Parente e Ticiana Augusto Lima | Meu Tricolor de Aço, de Glauber Filho, Tibico Brasil e Valdo Siqueira | O Animal Sonhado, de Breno Baptista, Luciana Vieira, Rodrigo Fernandes, Samuel Brasileiro, Ticiana Augusto Lima e Victor Costa Lopes
António Um Dois Três, de Leonardo Mouramateus | Bate Coração, de Glauber Filho | Cine Holliúdy 2 - A Chibata Sideral, de Halder Gomes | Divaldo - O Mensageiro da Paz, de Clovis Melo | Greta, de Armando Praça | Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes | O Clube dos Canibais, de Guto Parente | O Último Trago, de Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretii
Sertânia, de Geraldo Sarno | O Barco, de Petrus Cariry | Cabras da Peste, de Vitor Brandt | Pacarrete, de Allan Deberton | Se Arrependimento Matasse, de Lília Moema Santana
Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso | Dente por Dente, de Pedro Arantes e Julio Junqueira | O Filho Único do Meu Pai, de Dado Fernandes
A Jangada de Welles, de Petrus Cariry e Firmino Holanda | Fortaleza Hotel, de Armando Praça | Meu Tricolor de Aço 2 - O Sonho que Liberta, de Thelmo Maia e Júnior Mendes | Os Escravos de Jó, de Rosemberg Cariry | Pajeú, de Pedro Diógenes | Pequenos Guerreiros, de Bárbara Cariry | Transversais, de Émerson Maranhão | Virar Mar, de Philipp Hartmann e Danilo Carvalho
Fonte: Listagem de Filmes Brasileiros Lançados 1995 a 2022, disponível no site da Ancine, a partir da UF da "Empresa Produtora Brasileira Majoritária"; em anos não citados não constam produções do CE