O batismo de um achado científico é muito mais que uma simples escolha. Há muitas histórias por trás, inclusive a de afirmação de identidade. Recentemente, uma aranha fóssil do Cariri ficou famosa por causa do seu nome, Cretapalpus vittari, que homenageia a cantora e drag queen brasileira Pabllo Vittar. Ela não só fez sucesso entre os pesquisadores brasileiros, como também ultrapassou as barreiras do público geral. Agora, é bem mais fácil alguém conhecer a aranha e, quem sabe, o mundo dos fósseis caririenses. Tudo por causa de um nome.
Mas a aranha descrita pelo estadunidense Matthew R. Downen e pelo britânico Paul A. Selden não é o único fóssil com nome curioso. Na verdade, os cientistas brasileiros têm se mostrado experts em divulgação da ciência por meio dos nomes científicos, além de aproveitarem para reafirmar a pesquisa nacional.
Quando você homenageia um artista ou um personagem, você chama atenção das pessoas, tornando sua pesquisa mais visível para a sociedade”, comenta Flaviana Lima, paleontóloga e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Focada na paleobotânica do Cariri, Flaviana é uma das pesquisadoras que teve o prazer de nomear uma nova espécie. No caso dela, a angiosperma Cratosmilax jacksoni, em homenagem ao professor Jackson Antero, falecido em 2012, durante o processo de descrição da planta fóssil.
Enquanto o público geral pouco conhecia o professor Jackson (ressalte-se: um grande defensor da preservação da Chapada do Araripe), o nome é um bom exemplo do gosto que os cientistas têm por homenagear e serem criativos ao batizarem as descobertas. Enquanto alguns relembram professores, ativistas e grandes pesquisadores, outros preferem mencionar personagens da cultura pop.
O paleontólogo Felipe Lima Pinheiro, cearense e professor na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), esteve envolvido na nomenclatura do Elessaurus gondwanoccidens, um réptil fóssil que viveu há 252 milhões de anos, no período Triássico inferior. Os pesquisadores liderados pela paleontóloga Tiane de Oliveira escolheram, na brincadeira mesmo, o nome Elessar em referência ao personagem Aragorn, do livro O Senhor dos Anéis.
“Surgiu como se fosse uma piada, porque a canela dele (o fóssil) era muito comprida. Aí a gente lembrou que o Aragorn II Elessar era chamado de canela comprida. Só que a gente não esperava a repercussão que esse nome teve”, ri Felipe. A equipe chegou a ser entrevistada pela Tolkien Society, instituição que pesquisa a obra de J. R. R. Tolkien. Além disso, todas as publicações sobre a pesquisa destacavam o nome do bichinho.
No entanto, nem todos os acadêmicos gostam dessa prática. “Esses próprios nomes são polêmicos. Vale a pena colocar nomes de personagens fictícios ou pessoas que não têm vínculo direto com a ciência?”, questiona Rafael Rigolon, professor de Biologia e administrador da conta @nomescientificos no Instagram. Já na opinião dele, os nomes correspondem ao universo cultural de suas épocas, justificando o uso deles nas nomenclaturas.
"A origem das palavras deixa um registro fóssil e a gente tem sempre uma sensação de estar descobrindo um mundo novo."
Mas por que os nomes, logo eles, são eficazes na divulgação da ciência? “A origem das palavras deixa um registro fóssil e a gente tem sempre uma sensação de estar descobrindo um mundo novo (quando entende o significado das palavras)”, responde Rafael. Ou seja, as palavras despertam o que há de mais potente nos humanos: a curiosidade.
“A partir do momento que você vê um fóssil de aranha, por exemplo, que leva o nome do cantor Pabllo Vittar, aí a atenção para a questão do fóssil é vista. Quer a pessoa goste ou não (de fósseis), ela acaba vendo a matéria e vendo que ele tem o problema de ser contrabandeado. Ela acaba tendo acesso ao problema do tráfico de fósseis, de que aranha, apesar de ser um aracnídeo, também fossiliza... E aí tá o ponto positivo de procurar um nome famoso", afirma o professor.
Para além do maravilhoso universo dos fósseis geeks, há outra vertente nos nomes científicos brasileiros. Na tentativa de reafirmar as origens dos fósseis, paleontólogos têm batizado seus achados com idiomas indígenas.
A título de exemplo, é possível citar o Aratasaurus museonacionali (da Formação Romualdo, no Cariri), o Oryporan insolitus (Formação Sanga do Cabral, no Rio Grande do Sul) e o Tupandactylus imperator (da Formação Crato, no Cariri).
“É uma maneira da gente dizer o seguinte: ‘Olha, aqui tem uma identidade. E a gente quer manter viva essa história’”, reforça o paleontólogo Álamo Saraiva, professor da Universidade Regional do Cariri (Urca). Assim, os brasileiros têm optado por usar palavras e terminologias dos idiomas e culturas mais próximas da região na qual o fóssil foi encontrado.
Por outro lado, Felipe Pinheiro reforça que é necessário muita cautela e respeito ao se utilizar etimologias com idiomas indígenas. Afinal, eles são patrimônio cultural dos povos originários e, assim como qualquer língua, têm nuances. “É muito comum, quando a gente vai a fundo nos nomes indígenas dos quais se utilizaram o vocabulário, percebermos que a intenção que o pesquisador quis dar é totalmente diferente da qual ele conseguiu produzir com aquele conjunto de palavras”, menciona o professor.
Na Unipampa e na Urca, por exemplo, o padrão é explorar em dicionários algum léxico que se encaixe nas características do fóssil analisado. Depois, eles procuram linguistas especialistas no idioma para garantir que o sentido das palavras escolhidas - e da junção delas com outras - é íntegro à nomenclatura.
Focinho largo, aproximadamente sete metros de altura e pesando uma tonelada. Esse é o Irritator challengeri, um espinossauro que viveu há 110 milhões de anos no que é hoje a Chapada do Araripe, no Ceará. Provavelmente piscívoro (dieta à base de peixes), o dinossauro caririense não devia ter muito o que se irritar quando estava vivo - só se ele pudesse imaginar a polêmica na qual a sua espécie estaria envolvida a partir de 1996.
Ocorre que o Irritator guarda no nome uma “piada” de mau gosto. Mas para entendê-la, é preciso compreender o cenário do tráfico de fósseis no Cariri cearense.
Entre os anos 70 e 90, o Cariri passou pelo pior momento em relação ao tráfico de fósseis, considerados patrimônio cultural do Brasil. Esse capítulo da paleontologia cearense tem como um dos nomes mais mencionados o de David Martill, paleontólogo britânico non grato pelos pesquisadores brasileiros.
Segundo eles, especialmente o professor Álamo Saraiva, da Universidade Regional do Cariri (Urca), Martill está envolvido em vários estudos com fósseis traficados, tendo suposto papel ativo no transporte ilegal dos materiais. A polêmica mais recente envolveu o Ubirajara jubatus, encontrado na Bacia Sedimentar do Araripe e levado com autorizações suspeitas para a Alemanha.
Acontece que Martill também descreveu o Irritator e o nomeou assim porque ele e a equipe ficaram bem irritados pelo fato de o focinho do fóssil ter sido alongado artificialmente por contrabandistas.
A história fica pior quando, ainda em 1996, sai a descrição do Angaturama limai - um espinossauro vindo do Cariri cearense, descrito por pesquisadores brasileiros e extremamente parecido com o Irritator. Talvez, especula-se, sejam até da mesma espécie.
Por enquanto, ambos são citados como “sinônimos”. Mas se um dia forem encontrados dados suficientes que comprovem a hipótese, o nome que prevalecerá será o Irritator challengeri, por ter sido publicado primeiro. Nesse caso, o nome científico será simbólico por perpetuar o batismo marcado pelo tráfico e pelo colonialismo.
O problema, é claro, não está apenas em um homem, mas em toda uma lógica colonialista com o patrimônio e a Ciência brasileira. Afinal, os fósseis do Cariri já foram traficados para países como Alemanha, Estados Unidos, Portugal, Japão, França, Suíça e Reino Unido; e este é só o começo da lista.
“A gente teve problemas piores com relação ao tráfico de fósseis no passado e gradativamente teve uma melhoria, no final dos anos 90, 2000 e 2010. E recentemente, com o fechamento de alguns escritórios de fiscalização da Agência Nacional de Mineração (ANM), a fiscalização caiu de novo e voltou a ter uma piora”, conta Tito Aureliano, paleontólogo e comunicador científico.
Ele e a paleontóloga Aline Ghilardi são responsáveis pelo canal Colecionadores de Ossos e levantaram, no Twitter, a #UbirajaraBelongsToBr (Ubirajara pertence ao Brasil, em tradução livre) - em razão da polêmica já mencionada envolvendo Martill e outros pesquisadores. A hashtag ultrapassou a bolha do Twitter acadêmico e mobilizou o público geral.
Ao lado dela, muitos adicionaram a #DecolonizeScience (Descolonize a Ciência, em tradução livre), apontando a ausência de pesquisadores brasileiros nas pesquisas com fósseis nacionais e denunciando o contrabando dos materiais. Na época, Aline chegou a mencionar no Twitter como a escolha do nome do Ubirajara parecia caçoar da cultura brasileira:
"Ubirajara é um romance do escritor brasileiro José de Alencar publicado em 1874, onde seu personagem principal é um puro índio brasileiro, que ainda não se corrompeu perante a cultura europeia. Engraçado, certo? Não! Eles estão brincando com a nossa cultura no estudo!"
Por causa do esforço dos brasileiros, assim como de pesquisadores de outros países historicamente subjugados, a decolonização da ciência virou tópico mundial e acadêmico. Instituições norte-americanas e europeias, incluindo o Simpósio de Paleontologia de Vertebrados, um dos principais eventos da paleontologia mundial, têm debatido sobre o cenário de tráfico de fósseis e a ausência de cientistas nativos nas pesquisas.
“Isso já é uma abertura incrível da cabeça dessas pessoas”, comemora Aline. Segundo ela, os cientistas mais jovens têm se mostrado especialmente mais dispostos ao debate. Ela destaca as jovens pesquisadoras Emma Dunne, da Irlanda, e Nussaïbah Raja, da Alemanha: ambas dedicadas a pesquisar o quanto os países europeus retiraram dos países colônia. “Entraram em contato comigo e outros colegas da América do Sul quando teve o caso do Ubirajara, para tentar entender melhor isso. Então existe, sim, uma comoção”, explica a pesquisadora.
De nome em nome, os cientistas brasileiros vão registrando os esforços para tornar a ciência do País mais acessível e mais respeitada pelo público leigo e internacional. Com a riqueza nacional de fósseis, os nomes brasileiros já estão na ponta da língua do mundo inteiro. E na sua?
Reportagens do O POVO exploram o universo dos fósseis do Brasil e do mundo