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Guardiões da Terra no Ceará: povos indígenas e o cuidado sustentável
Reportagem Especial

Guardiões da Terra no Ceará: povos indígenas e o cuidado sustentável

Indígenas Gleidson Karão Jaguaribaras, Nazaré Pitaguary e Mateus Tremembé compartilham experiências à frente de ações para preservar o meio ambiente.

Guardiões da Terra no Ceará: povos indígenas e o cuidado sustentável

Indígenas Gleidson Karão Jaguaribaras, Nazaré Pitaguary e Mateus Tremembé compartilham experiências à frente de ações para preservar o meio ambiente.
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A preservação do meio ambiente é essencial para a sobrevivência humana. No Brasil, quem historicamente esteve atento às questões ambientais foram os povos originários. O bioma da Amazônia é o território com a maior parte dessa população. Conforme o Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), são cerca de 440 mil autóctones, com mais de 180 povos, além de vários grupos isolados. Os povos indígenas são tidos como os Guardiões da Terra por serem os responsáveis por guardar a fauna e flora em segurança. Eles foram intitulados dessa forma, em 2021, pela Organização das Nações Unidas, após um estudo concluir que as taxas de desmatamento na América Latina e no Caribe são significativamente mais baixas em áreas indígenas e de comunidades tradicionais onde os governos reconhecem formalmente os direitos territoriais coletivos.

No âmbito estadual, o Ceará tem 15 povos indígenas de diferentes etnias, contabilizando cerca de 36 mil pessoas nas regiões de serra, sertão e zona costeira. Os dados são da Secretaria de Proteção Social do Estado (SPS). Mesmo que sejam povos muito distintos entre si, eles carregam princípios e reivindicações semelhantes. Buscam estabelecer uma relação de harmonia com a Mãe Terra, tendo o meio ambiente como algo divino. Ó que se detecta na fala de três lideranças indígenas ouvidas para esta reportagem. Os Guardiões da Terra também emprestam a vida em prol da luta para manter saudável os respectivos territórios, com o objetivo de conter a degradação contra a natureza, pelos invasores.

 

Para Kleber Saraiva, professor do Programa de Pós Graduação em Antropologia UFC/Unilab e coordenador das Licenciaturas Indígenas Kuaba e Putakaja, a relação dos povos originários com o meio  ambiente é, sobretudo, polissêmica "algo que possui diversos significados" , pois revela uma pluralidade de significados que une sustentabilidade, espiritualidade, cultura, historicidade, educação e identidade.

Segundo o professor, o princípio de destruição do meio ambiente em favor de interesses econômicos precisa ser ressignificado, tentando incorporar o desenvolvimento sustentável e o respeito à natureza. “A sociedade contemporânea capitalista produz, por princípio, uma relação predatória com o meio ambiente. Esse aspecto é facilmente percebido, por exemplo, na poluição de rios, lagoas e mares, na destruição de parte da camada de ozônio, na destruição de florestas.”

Questionado sobre as mortes recentes de Bruno e Dom e ações criminosas em territórios indígenas, o antropólogo comenta que os dois homens eram exemplos de pessoas não indígenas que tinham muita preocupação em combater e denunciar as atividades econômicas ilegais no Vale do Javari.

“Esses ilegalismos são profundamente prejudiciais aos indígenas, pois além de afrontar o meio ambiente com o garimpo, a pesca e a derrubada de floresta de maneira ilegal, os invasores desrespeitam também os direitos humanos e indígenas dos povos nativos que vivem naquela região. Tudo isso revela, outra vez, o descaso de setores do estado brasileiro e de segmentos da iniciativa privada, com o meio ambiente e com os povos originários que nele vivem.”

 

 

"Estamos usando dos saberes ancestrais como estratégia de preservação e combate à desertificação, uma vez que nos reunimos para trabalhar diretamente com a terra" Gleidson Karão Jaguaribaras, indígena, ambientalista e mestre interdisciplinar de História e Letras

A experiência ancestral no Ceará

Em busca de mapear essa relação atávica dos povos indígenas com o meio ambiente, O POVO conversou com lideranças de três povos do Ceará. Eles contam e mostram que é uma relação que vai além da subsistência ou do ideal de lucro.

Recuperação das áreas florestais degradadas pelo povo Karão Jaguaribaras

“O processo de invasão dos territórios indígenas trouxe o desequilíbrio ambiental para a natureza. Por isso, nós fomos obrigados a idealizar uma luta com ações para reverter esse quadro”. É assim que o indígena, ambientalista e mestre interdisciplinar de História e Letras Gleidson Karão Jaguaribaras, 33, denuncia a degradação da natureza através da ação humana na serra de Baturité, a 93 km de Fortaleza.

Aldeia Kalembre Feijão, localizado na serra de Baturité no Ceará
Foto: Arquivo Pessoal
Aldeia Kalembre Feijão, localizado na serra de Baturité no Ceará

O processo é longo, mas o resultado traz esperança para o povo Karão Jaguaribaras. “O espaço que estamos recuperando sofreu grandes explorações com criações de gado, e, por ser de Semiárido, precisou de muita atenção. Conseguimos recuperar a fertilização de uma parte. Foram feitos experimentos e (foram) semeadas plantas, que diziam que não floresceriam no local, mas hoje estão ricas, frutíferas e verdes. Como, por exemplo, a goiabeira, mamoeiros e ervas medicinais (malvarisco, colônia, mastruz). Tudo passou por um processo de manejo ancestral de cuidar do solo”, detalha.

“Estamos fazendo coletas de sementes nativas, começamos a pedir doações de sementes e mudas nos municípios vizinhos e com o auxílio do Projeto Fundo Guardiões da Terra (da ONG internacional Cultural Survivor) construímos uma estufa para brotar sementes durante o verão e plantar no inverno. Estamos usando dos saberes ancestrais como estratégia de preservação e combate à desertificação, uma vez que nos reunimos para trabalhar diretamente com a terra”, explica.

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O ambientalista mostra que a questão é uma das maiores preocupações do povo Kalembre. “Diante dos dilemas ambientais e falta de hábito da humanidade em construir olhares sobre o meio ambiente, tornam-se urgentes medidas que possibilitem trajetórias de combate à degradação ambiental em curso no modelo atual de desenvolvimento. A melhor forma de retribuir o carinho que Mãe Terra tem com a gente é cuidar dela e assim estamos fazendo”.

Filho da kasike Mãe Ota Karão e do papuã Ruy Karão, Gleidson se define como uma semente germinada com a luta dos ancestrais. “Trago como herança o sangue dos meus antepassados, sem esquecer nossos mortos e a Terra sagrada que alimenta meu corpo. A Serra de Baturité é um oásis em meio ao Sertão cearense, sendo muito rica e abundante em recursos naturais. Neste lugar nasce a gênese da Nação/povo Karão Jaguaribaras”.

 

 

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Território e cultura alimentar do Povo Tremembé

Na Terra Indígena Tremembé da Barra do Mundaú, no distrito de Marinheiros, município de Itapipoca, a 139,9 km de Fortaleza, também tem ações de preservação do meio ambiente. Organizado em quatro aldeias — São José, Munguba, Buriti do Meio e Buriti de Baixo — o território soma atualmente 150 famílias que participam e se beneficiam das ações de conservação e preservação dos recursos naturais.

O produtor do ponto de cultura Recanto dos Encantados, Mateus Tremembé, 26, estudante Agronomia, é uma das lideranças indígenas jovens de Itapipoca e pesquisa a cultura alimentar Tremembé. Segundo Mateus, o Conselho Indígena do povo dele vem realizando um trabalho de conservação e preservação dos recursos naturais do território, sobretudo, das peças nativas.

Território e cultura alimentar do Povo Tremembé da Barra do Mundaú, no distrito de Marinheiros, município de Itapipoca.(Foto: Luan Castro Tremembé)
Foto: Luan Castro Tremembé Território e cultura alimentar do Povo Tremembé da Barra do Mundaú, no distrito de Marinheiros, município de Itapipoca.

"Nós criamos um projeto de transição agroecológica. Esse processo possibilitou uma conexão entre a juventude, agricultores, pescadores e demais lideranças em um só pensamento que é preservar, cuidar e planejar esse território para o futuro. A gente criou o projeto Cultura Alimentar da Aldeia, que fortalece a relação com plantas nativas, medicinais, culturas agrícolas e frutíferas dentro do território. Para que essas famílias comecem a resgatar o sentimento de relação com a Mãe Terra."

Foram construídos 30 canteiros agroecológicos, duas áreas de nascente foram reflorestadas com diversas mudas e as áreas de plantio coletivo vêm sendo fortalecidas para que sigam sendo espaços onde os cuidados com a terra geram alimentos na mesa do povo Tremembé.

Mateus explica que a relação do povo com o meio ambiente é respeitosa e a troca entre os dois é mútua: "A terra é mãe, ela cuida de nós, e nós cuidamos dela. Ela nos dá o alimento, por isso a gente cuida da Mãe Terra. A gente cuida do mangue porque ele nos dá o caranguejo, siri e o aratu."

"No passado, os colonizadores arrancaram nossas folhas, cortaram nossos galhos e caules, mas esqueceram de arrancar nossas raízes. Hoje nós estamos brotando com muito mais força e vigor. Nós temos a essência da nossa ancestralidade conectada ao nosso território sagrado. O povo indígena, por ser indígena, está conectado a toda essa memória e sobretudo a luta para garantir o futuro da nossa geração", disse.

 

 

Horta mandala e agricultura familiar em território Pitaguary

Em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza, dona Nazaré Pitaguary, 62, levanta a frente pela Mãe Terra. Ela é uma das principais incentivadoras dos espaços de plantio coletivo, trabalhando com a horta mandala, uma estrutura de produção que se expande em círculos com cultivo de diversas plantas. Este modelo de plantação proporciona alimento para as famílias e gera excedentes para a comercialização.

“Em torno do mandala temos hortaliças, plantas frutíferas (graviola, bananeira, cajueiro, mangueira). Esse é o nosso trabalho no dia a dia. O trabalho de mulheres unidas. Somos um coletivo de mulheres que tiram da terra o sustento para as famílias. Para mim é muito importante estar junto com as meninas, realizando essa atividade”, disse a liderança.

Integrante da Articulação das Mulheres Indígenas no Ceará (Amice), Nazaré tem, no nome que carrega, força. Ser Pitaguary significa muito para ela, que além de mãe de quatro filhos é militante e acredita que, mesmo com dificuldades, é possível cuidar da terra e tirar dela os alimentos de que precisa sem desperdício e sem poluir o solo.

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Desde 2010, Nazaré incentiva a agricultura familiar dentro da sua comunidade. “Tivemos algumas dificuldades no ano passado e neste ano porque choveu bastante e as hortas se encheram de água. Agora estamos esperando as águas baixarem para voltarmos à prática com as hortaliças. Queremos trazer mudas de plantas nativas para plantar próximo ao rio e queremos construir uma barreira para proteger os canteiros e termos uma colheita garantida.” 

Além do trabalho com as hortaliças, as famílias do povo Pitaguary de Maracanaú participam de um programa de Agricultura familiar (PAA), e as frutas, acerola, limão, goiaba e ata também são vendidas para a Prefeitura do município.

“Minha rotina só muda quando eu preciso abandonar meus afazeres para lutar em prol da causa indígena. Quando a gente fala que nós lutamos pela terra, estamos falando do nosso direito em relação a demarcação dos nossos territórios e contra a violação à dignidade dos povos indígenas. Porque a todo momento nós estamos sendo atacados, querem tirar nossas terras. A Mãe Terra é o nosso bem mais precioso. Um indígena sem terra é como um indivíduo que vive sem casa, sem abrigo ou moradia. E é da terra que nós tiramos a nossa sustentação.”

 

 

>> Entrevista

Sem os povos originários não existe vida

Para a educadora, ativista e cientista ambiental, Andreia Lopes, sem os povos originários não existe vida. Para ilustrar essa afirmação, a educadora lembra de quando a ONU apontou, com base em uma revisão de mais de 300 estudos publicados nas últimas duas décadas, que os povos tradicionais são os melhores guardiões da terra.

“A Organização das Nações Unidas reconheceu os povos originários como melhores guardiões de seus territórios. A nível de Brasil, se você visita um território, você percebe a extrema diferença entre uma área guardada e outra não. Isso vai desde a limpeza daquele espaço até o sentido de preservação dos povos em relação ao meio ambiente. Os indígenas têm como parte da relação de vida tratar os territórios como algo vivo, preservando a coleta, a pesca, a agricultura e a medicina”.

Com mais de 10 anos com vivência em terras indígenas no litoral do Ceará, a cientista ambiental conta que a sabedoria dos povos originários nos faz entender a vida em seu aspecto mais complexo: “O ser humano é natureza, é bicho. Eu costumo fazer uma dinâmica com meus alunos, primeiro eu pergunto se a árvore, água, ar são naturezas. Depois eu pergunto se o ser humano é natureza também”.

“Nossos corpos tem ar, tem muita água, a gente é tanto elemento da natureza, mas foi convencido a achar que não é. É triste pensar que a gente precisa ser sensibilizado para, talvez, passar a atender a importância disso, que é a extensão dos nossos corpos”. Andreia diz que cuidar da natureza é se perceber parte dela. É um autocuidado poder respirar e ter acesso a água”. Acompanha a entrevista completa com a ambientalista Andreia Lopes.

Andreia Lopes é educadora, cientista ambiental (Universidade Federal do Ceará), artesã e mestranda em Educação na linha de movimentos sociais.
Foto: Levi Aguiar
Andreia Lopes é educadora, cientista ambiental (Universidade Federal do Ceará), artesã e mestranda em Educação na linha de movimentos sociais.

O POVO - Por que é importante cuidar do meio ambiente?

Andreia Lopes: Nós estamos em uma estrutura moderna, colonial e capitalista, que nos convenceu de que o meio ambiente não faz parte de nós. A coisa mais preocupante desse projeto é que ele faz com que nos enxerguemos fora da natureza. Se eu me entendo como participante dessa terra, será que eu aceitaria destruir essa natureza de uma forma tão tranquila? É realmente admissível a degradação da vida dessa forma? Por que a vida é quantificada? Por que uma vale mais e outra menos?

Quando eu vejo pessoas querendo ingressar no ativismo ambiental, algumas pessoas dizem que preferem mais bichos do que gente. A gente chegou ao ponto de achar que não é bicho. A gente se relaciona com a terra, a terra nutre nossos corpos. Sem a água e o oxigênio não há vida.

Eu costumo fazer uma dinâmica com meus alunos, eu sempre brinco com elas e pergunto se a árvore, água, ar são naturezas. Eu sempre digo que nosso corpo tem ar, tem muita água. A gente é tanto elemento da natureza, mas foi convencido a achar que não é. É triste pensar que a gente precisa ser sensibilizado para, talvez, passar a atender a importância disso, que é a extensão dos nossos corpos. Cuidar da natureza é se perceber parte dela. É um autocuidado poder respirar e ter acesso a água.

O POVO - Os povos indígenas são muito diversos, mas em sua maioria têm uma relação de intimidade com a natureza e um consumo sustentável. Qual o peso disso?

Andreia Lopes: Cada etnia tem uma relação diferente com o meio ambiente, seja na praia ou na mata. Eu já trabalhei com diversos povos originários no litoral do Ceará, nós éramos mais de 178 etnias. Dentro da educação ambiental, a gente discute que os povos não entendiam as coisas como propriedade porque é da própria natureza. Todo mundo sempre usou e viveu daquilo de maneira sustentável. Mas depois veio a perspectiva colonizadora, com uma degradação ambiental, visando exclusivamente o lucro e o acúmulo da produção. A gente não pensa nas coisas como vivas, esquecemos que somos bichos, mamíferos.

Imagina se todos nós percebêssemos o quanto de vida pulsa numa árvore. Uma vez o pajé Luís Caboclo Tremembé, lá de Itarema, foi perguntado sobre a diferença entre cultura e natureza. A resposta dele foi que a natureza era nossa cultura. Ele fala sobre os encantados. Na filosofia daquele povo, quando alguém morre, essa pessoa se torna um encantado. Esses encantados ficam na sombra das árvores, e com o desmatamento ficou cada vez mais difícil de encontrá-los.

É muito potente perceber nossa própria espiritualidade em consonância com a vida, natureza. Quando você deita na sombra de uma árvore, você deita com os seus. O aprendizado que os povos originários nos dão é a possibilidade de podermos continuar vivos nessa sociedade. Inclusive a partir da sombra de uma árvore que me conecta com quem, dessa terra, já cultivou para que eu pudesse estar aqui.

 

Matar Bruno e Dom não é somente matar, mas sim construir um cenário que nos dê pânico de lutar pela vida. Pegaram duas pessoas, que estavam ali para somar na construção de uma luta. Quando você olha para essas mortes, você vê um reflexo de uma sociedade que atua com o medo. Os nossos corpos precisam parecer descartáveis, pois só assim as pessoas terão medo, e estarão sob controle

 

O POVO - Em uma de suas publicações você menciona que sem os povos originários não há vida. Pode dissertar mais sobre isso?

Andreia Lopes: Isso é um ponto essencial e necessário de se falar. A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu os povos originários como os guardiões de seus territórios mundialmente. A nível de Brasil, se você visita um território você percebe a extrema diferença entre um território guardado e outro não. Isso vai desde a limpeza daquele espaço até o sentido de preservação dos povos indígenas em relação ao meio ambiente. Esses povos guardam os saberes, mas a gente deu a eles também uma carga muito violenta, que é guardar a vida. Isso eles sempre fizeram, independente de qualquer pessoa. Os indígenas têm como parte da relação de vida tratar os territórios como algo vivo, preservando a coleta, pesca, agricultura e conhecimento sobre medicamentos de cura.

A gente precisa se responsabilizar pela vida também. Quando a gente discute áreas protegidas, como terras indígenas, estamos falando de um quadrado imaginário dentro de um mapa marcado para dizer que ali não pode ser destruído. Hoje nossos povos originários estão lutando para impedir que esses quadrados não sejam destruídos. Vale ressaltar que eles lutam com as próprias vidas. Se eles não lutassem, seria que a gente ainda teria algum território. Estaríamos conseguindo respirar? Quando você sobrevoa os territórios indígenas, entre o que é do povo originário e o que é utilizado de maneira degradante. Você percebe a fronteira de contaminação.

Cerca de quase 20 anos atrás, quando eu fui na aldeia Jenipapo-Kanindé, do povo Pitaguary, teve uma briga com a Ypióca, porque a empresa estava sugando a água do território e lançando dejetos na Lagoa da Encantada (Município de Aquiraz). A lagoa é chamada de Encantada porque tem uma importância espiritual para eles. Até hoje essa lagoa não conseguiu se restabelecer. Se não fosse esse povo, aquele lugar não seria respeitado. Essas pessoas muitas vezes pagam com a própria vida. A gente não pode achar certo degradar todo o meio ambiente e consumir para além do fundamental.

O POVO - Sobre a defesa de vidas e terras indígenas, a gente tem um caso do indigenista Bruno e o jornalista Dom. Podemos considerar que defender os direitos humanos no Brasil é algo perigoso? Como é atuar em prol do meio ambiente e das causas dos povos originários?

Andreia Lopes: Quando a gente pensa nessas figuras, eu vejo um projeto de medo. Matar Bruno e Dom não é somente matar, mas sim construir um cenário que nos dê pânico de lutar pela vida. Pegaram duas pessoas, que estavam ali para somar na construção de uma luta. Quando você olha para essas mortes, você vê um reflexo de uma sociedade que atua com o medo. Os nossos corpos precisam parecer descartáveis, pois só assim as pessoas terão medo, e estarão sob controle.

A gente que luta por uma outra sociedade sabe que não é de hoje que acontece esse tipo de coisa. A história de Marielle é um exemplo. Foi uma pessoa assassinada na mesma perspectiva, para nos assustar. Corpos pretos são mais vulneráveis, mas quando você pega um jornalista de âmbito internacional e um pesquisador, você vai estar dizendo que não tem para corpo nenhum estar ali. Ninguém pode se meter, né?! Ninguém tem a possibilidade de estar ali defendendo a vida.

Além do mais, a Amazônia nunca foi um ambiente de amor. Ela é um ambiente de conflito constante. Tem guerras, queimadas constantes, pessoas perseguidas e violentadas cotidianamente na Amazônia. Quando eu penso nos dois, eu lembro que eles são exatamente o que querem para os ativistas, querem que tenhamos medo de lutar. Eu adotei uma frase do Paulo Freire para este momento da vida. “Os sonhos são projetos pelos quais se luta", eu acredito que Bruno e Dom estavam neste processo de sonho em prol dos povos originários.

Nós estamos de luto e em luta. Não podemos dar margem para fortalecer o medo. O projeto moderno, colonial e capitalista não nos cabe. O modelo deles é uma sociedade racista, patriarcal, violenta, degradadora e especista, aquela que define qual espécie vale mais. Se ela não nos cabe, o que nos resta é a luta. A cacique Adriana, da Barra do Mundaú, tem uma frase que eu acho muito potente. “Nós, depois disso tudo, só estamos vivos, por causa da nossa espiritualidade”. Isso é potente, essa espiritualidade fala de conexão e sonhos. Se depender desse modelo de sociedade, nós não sonhamos. O que nós somos sem sonhos.

 


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