Provavelmente, você já se deparou com um ou mais dias em que foi inevitável deparar-se com notícias ruins. Mortes por Covid-19, incêndio no Pantanal, corrupção em compra de vacinas, fome, guerra… Notícia seguida de notícia, postagem seguida de postagem, compartilhamentos embasbacados com as tragédias cotidianas… Foram momentos de doomscrolling.
O termo em inglês ainda não tem uma tradução exata. Ele junta as palavras “doom” (ruína, tragédia) e “scrolling” (rolando, como fazemos no celular) para descrever o hábito de passar muito tempo online vendo notícias ruins ou negativas. O comportamento ganhou nome por causa da pandemia e a consequente onda de informações envolvendo as vítimas da Covid-19, as incertezas sobre o vírus e o isolamento rígido.
Uma pesquisa de julho de 2021, publicada na revista científica Journalism Studies, mostrou como o consumo constante de notícias sobre a pandemia foi insustentável emocionalmente para os noruegueses. A pesquisa foi realizada por meio de questionários com moradores da Noruega ― país europeu de IDH muito alto e que, portanto, teria condições sociais favoráveis para o combate da pandemia ―, o que não impediu as percepções de que as notícias eram “assustadoras, chatas e emocionalmente desgastantes”.
“Descobrimos que as pessoas precisavam combater a sobrecarga de informações e o esgotamento emocional, enfatizando que a quantidade de notícias sobre a pandemia causou fortes respostas emocionais”, descreve a autora principal Brita Ytre-Arne no artigo.
Mesmo com um estudo focado em apenas um país, os pesquisadores compreendem que o fenômeno do doomscrolling foi vivido mundialmente, inclusive a resposta a ele: a tentativa de evitar o noticiário para reduzir o mal estar provocado pelos diversos conteúdos.
É justamente o acesso 24 horas por sete dias na semana às notícias, seja na televisão, no rádio, nos portais ou nas redes sociais, que o doomscrolling virou um fenômeno tão característico de crises presentes. Afinal, o mundo sempre viveu grandes tragédias, mas por que somente agora as pessoas querem evitar as notícias para “fugir” dessa realidade?
“Tem muitos dados que apontam o aumento dos transtornos mentais durante a pandemia, e essa questão de entrar em contato com notícias ruins influenciou bastante nesse momento”, comenta a psicóloga Jéssica Rosa. Segunda ela, existe uma tendência das notícias ruins gerarem uma repercussão maior.
Significa dizer que as pessoas prestam mais atenção a elas e reagem mais sensivelmente quando as ouvem. “A gente acaba aprendendo ao longo da nossa história de vida que as notícias ruins são mais bem recebidas socialmente por conta disso. Vamos ter mais atenção, as pessoas vão cuidar melhor da gente. E por conta disso, a gente fica mais tendencioso a compartilhar as notícias ruins”, descreve.
Paradoxalmente, a nossa sociedade não aprendeu a lidar com os sentimentos que essas informações despertam. Emoções como tristeza, raiva, medo e preocupação são vistas como “más” e nunca aprendemos a lidar com elas. Quem nunca ouviu um “Engole esse choro!”, “Pra quê ficar triste? Que besteira!”, “Não vamos ficar tristes, não”?
A invalidação desses sentimentos faz com que as pessoas não tenham ferramentas para encará-los quando é necessário. Some isso à experiência de incontáveis lutos, a perda de autonomia e da rotina e o distanciamento social que todos viveram durante a pandemia e está pronta a receita para o doomscrolling.
De 2019 para 2022, o Brasil deu um grande salto no evitamento de notícias por causa da "fadiga de notícias ruins”. Enquanto há três anos 34% dos brasileiros evitavam os jornais, hoje eles são mais da metade (54%). Os dados são do estudo Reuters Institute Digital News Report 2022, que pesquisou 46 países e economias.
Junte-se ao fato de que a parcela de pessoas “extremamente interessadas em notícias” também caiu demais no País: de 82% em 2015 para 57% em 2022.
Da mesma maneira, os brasileiros têm deixado de consumir notícias por meio do jornal impresso ou da televisão e têm usado as redes sociais ainda mais para informar-se. É interessante, inclusive, perceber a característica de consumo rápido e constante que as mídias sociais propõem, o que pode explicar um pouco a facilidade de viver em doomscrolling.
Bom, mas a pergunta que fica é: evitar a realidade é a solução? Sim e não. De acordo com a psicóloga Jéssica Rosa, distanciar-se dos noticiários quando o impacto emocional é muito forte e facilmente engatilhado pelas informações pode ser uma boa opção inicial.
“Nesses casos, evite aqueles veículos de informação que são mais sensacionalistas, escolha aqueles que filtram mais”, sugere. “Se você não se sente mais bem acompanhando, não tem porque se expor, até porque tudo está muito recente, a gente ainda precisa processar bem tudo o que aconteceu.” A tendência é que as pessoas se reconstruam, afirma, principalmente agora que a procura por acompanhamento psicológico tem aumentado.
Por outro lado, estar informado é um movimento muito mais complexo. Ao levantamento do Instituto Reuters, 42% dos entrevistados afirmaram que pararam de assistir os jornais porque “há muita Covid-19 e política” neles. Nesse sentido, vale a pena destacar que é da responsabilidade social do Jornalismo falar de aspectos políticos, principalmente por comporem uma parte intrínseca da cidadania.
“O jornalismo, pela sua natureza, tende a trazer sempre mais notícias ruins do que boas”, comenta a jornalista Kamila Fernandes, coordenadora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC) e comentarista do podcast As Cunhãs. Isso ocorre por vários critérios de noticiabilidade, um deles é a própria denúncia.
Ela exemplifica: “É importante que a gente saiba desses casos de violência sexual contra mulheres porque, beleza, não está acontecendo comigo nesse momento, mas pode acontecer com a minha filha. Eu tenho que saber o que está acontecendo no mundo, tenho que saber as tendências, tenho que saber como se combate isso, como é que o Estado está agindo contra tudo isso. Porque senão vira terra sem lei e tudo vale. Porque nada disso vai ser informado e as pessoas vão continuar vivendo e ninguém vai saber de nada.”
O papel da imprensa durante a pandemia no Brasil, inclusive, foi essencial para garantir o repasse de informações de qualidade e transparentes sobre a crise sanitária, já que o governo federal se isentou da responsabilidade de informar a população e ainda espalhar mentiras sobre a doença.
“Todo esse acompanhamento, a busca por trazer números e dar maior transparência para o que estava acontecendo e uma dimensão mais ampla em termos nacionais e internacionais teve que ser feito um consórcio de imprensa, porque o governo se negou a dar as informações públicas sobre isto”, reforça Kamila, sem desconsiderar casos em que o negacionismo científico acabou ganhando espaço em veículos de imprensa.
Quem viveu o doomscrolling realmente desejava se manter bem informado sobre a atual situação. Mas enquanto a leitura de conteúdos sobre o número de mortos da Covid-19 possa ser um sufoco, optar por se distanciar totalmente das notícias também pode ser perigoso pela desconexão de uma realidade transformável com o exercício do debate político e da participação ativa na escolha por governantes ― o que necessariamente exige estar informado.
Por outro lado, Kamila entende que o jornalismo também precisa ser mais analítico e aprofundado. Somente assim as notícias saem de números para histórias que geram empatia e desejo de mudança. Para os leitores, a dica é procurar ativamente por informações em veículos diversos e até em linguagens diversas. Telejornais, rádios, podcasts, grandes reportagens digitais… Tudo que garanta uma leitura contextualizada e mais protagonista.
Você não precisa viver de notícias ruins, nem precisar lê-las todos os dias, mas é importante estar atento e discutir o mundo real, principalmente quando ele dói mais do que deveria.