Há quem ainda acredite que o avanço dos grupos neonazistas é algo restrito a atos clandestinos, sem se atentar para o quão à vontade corre a escalada dessa violência pelo mundo.
A Copa do Mundo 2022 no Catar, por exemplo, mostrou que o futebol não está limitado ao que acontece entre as linhas do gramado, e que historicamente o que separa o esporte das manifestações políticas é uma linha bastante tênue — não apenas no Brasil.
A derrota da seleção brasileira para a Croácia, que em tempos outros podia estar restrita à arena do torneio mundial, representou mais do que a perda do hexa. As demarcações do campo de futebol deram lugar às dos campos de concentração quando jogadores croatas resolveram comemorar a vitória exaltando um movimento que vai muito além do futebol: o neonazismo.
Dias após a partida, um vídeo mostra a seleção croata celebrando a classificação enquanto cantava uma música da banda Thompson, conhecida por estar associada ao nazifascismo. A canção faz referência explícita ao regime “Herceg-Bosna”, marcado durante a guerra da Bósnia por campos de concentração, estupros e limpeza étnica e cuja liderança veio a ser condenada por crimes contra a humanidade.
Croatian players celebrating their WC run by singing songs from neo-fascist crooner Thompson, which explicitly make reference to the criminal “Herceg-Bosna” regime in wartime Bosnia, whose entire senior leadership was convicted of crimes against humanity. pic.twitter.com/QW5DdyATVH
— Jasmin Mujanović (@JasminMuj) December 12, 2022
Essa não foi a primeira vez em que o elenco croata fez apologia ao neonazismo durante copas: em 2018, por exemplo, uma polêmica semelhante já havia sido levantada.
Confundidos com nacionalismo ou liberdade de expressão, esses ideais estão espalhados pelo mundo e se materializam em uma cultura de violência que vai além da suástica.
Os crimes ligados a essa ideologia vão desde pichações em prédios de universidades até ataques violentos a escolas, patrimônio público, com atiradores que se aliam à articulação crescente de grupos extremistas pela internet ou na
Fonte: Techtudo"
Somente nos Estados Unidos, pelo menos 554 crianças, educadores e funcionários foram mortos ou feridos em tiroteios em escolas americanas desde o massacre de Columbine High em 1999, conforme dados levantados pelo The Washington Post.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), os grupos neonazistas já se tornaram uma “ameaça transnacional” e se aproveitaram da pandemia para expandir suas redes. No Brasil, inclusive, os
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Como uma expressão da chegada da extrema-direita ao poder no País, a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 e o decorrente bolsonarismo estão diretamente ligados aos dados que apontam um avanço do neonazismo na sociedade brasileira, garantem pesquisadores.
Alguns indícios velados e simbólicos corroboram com tal associação: não bastasse haver uma carta de Bolsonaro publicada em três diferentes sites neonazistas na época em que era deputado (2004), em 2021, durante uma recepção calorosa com direito a foto, o presidente da República recebeu a visita da alemã Beatrix von Storch, neta de um ministro de Hitler.
Impulsionada por discursos de ódio e extremistas contra as minorias, essa ligação é defendida por diversos pesquisadores, dentre eles Adriana Dias, doutora em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estudiosa do fenômeno neonazista há mais de duas décadas.
A partir de um mapeamento que reúne atividades dos grupos extremistas em redes sociais, aplicativos de mensagens e fóruns da internet, ela demonstra que a eleição de Bolsonaro fez com que o número de células saltasse de cerca de 200, em 2018, para 1.117 em 2022, seu último ano de mandato.
Também aumentaram os atos criminosos praticados por neonazistas desde 2019, quando ocorreram 24 ataques: o número subiu para 35 em 2020, chegou a 67 em 2021 e passou a 43 somente no primeiro semestre de 2022, de acordo com levantamento divulgado pelo Observatório Judaico dos Direitos Humanos.
O fenômeno vem acompanhado do crescimento exponencial do número de inquéritos que investigam os crimes de apologia ao
Essas ocorrências também estão no radar de monitoramentos independentes como o da ONG SaferNet Brasil, que atua mapeando denúncias anônimas de crimes e violações contra os direitos humanos na internet. A organização identificou um aumento de mais de 600% nas denúncias sobre conteúdos de apologia ao nazismo na internet entre 2015 e 2021.
Dois episódios recentes também acenderam um alerta e motivaram o debate em torno deste tema: as falas neonazistas do apresentador de podcast Monark e o gesto supremacista do comentarista de TV Adrilles Jorge, da Jovem Pan.
Ambas as expressões precederam o que viria de mais grave pela frente: casos de ataques com armas de fogo em escolas praticados por alunos e ex-alunos, que se tornaram uma das principais preocupações de profissionais e pesquisadores da educação.
No atentado mais recente, um jovem de 16 anos invadiu duas escolas na cidade de Aracruz, no Espírito Santo, em 25 de novembro de 2022, e matou a tiros três professoras e uma aluna. O adolescente, armado com o revólver do pai (policial militar), usava uma faixa no braço com o símbolo nazista runa odal e uma máscara com estampa de caveira.
Quatro dias depois, em 29 de novembro, um centro de ensino de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), foi depredado e pichado com referências nazistas e ameaças, além da inscrição da palavra “bully”, um jogo nas redes sociais que estimula a prática de crimes de ódio.
Diante de tamanha gravidade, um relatório elaborado pela equipe de transição de Lula sinaliza a necessidade de uma educação crítica para o uso da internet e da formação de docentes para que possam identificar alterações no comportamento dos jovens, que são o principal alvo de cooptação pelo discurso de extrema-direita.
O documento explicita que esses ataques estão normalmente associados ao bullying e situações prolongadas de exposição a processos violentos, incluindo negligências familiares, autoritarismo parental e conteúdo disseminado em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagem.
Intitulado “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, o texto expõe os diversos meios de recrutagem presentes na web.
São eles: uso de humor; uso de estética e linguagem violentas como a linguagem da "machosfera"; trollagem; uso de jogos online como Roblox, Fortnite, Minecraft; uso de imagens de ataques e compartilhamento de manifestos de atiradores como método de propaganda; dentre outros.
Os pontos elencados pelo Grupo Temático de Educação da transição governamental evidenciam, ainda, que "artefatos de segurança como catracas e seguranças armados não vão enfrentar o impacto do extremismo de direita nos jovens e, pelo contrário, tendem a aumentar as ameaças e ocasionar riscos de novos atentados".
"É fundamental, portanto, que órgãos de inteligência ligados às forças de segurança monitorem sites, plataformas e fóruns anônimos, ao passo que mantenham canal de comunicação direto com as escolas", sublinha a publicação.
Uma combinação de fatores contribui para o aumento de ocorrências de atos de neonazismo tanto individual quanto coletivamente e faz com que o Brasil hoje seja um dos centros mundiais desse fenômeno.
Os desafios para o novo governo são muito amplos, segundo especialistas, porque o extremismo de direita no País ao longo das duas últimas décadas e do governo Bolsonaro vivenciou uma forma diferenciada de articulação, desde as estruturas formais até as informais.
Conforme explica a cientista política Carla Quaresma, essas movimentações existem independente do bolsonarismo e são crescentes no mundo inteiro, mas acabaram sendo repaginadas e atualizadas.
Isso ocorre, na visão de Quaresma, como uma reação de grupos em virtude da expansão de direitos civis pelo mundo, "como se os grupos marginalizados fossem ameaçar a liberdade e a pátria".
"O bolsonarismo se alimentou desse discurso e viés. Os grupos neonazistas falam da liberdade como bem supremo, superior inclusive à própria vida, que podem morrer pela liberdade. Esse é um discurso do próprio presidente, 'Brasil acima de tudo'. Todas essas construções discursivas fazem parte desse movimento", explana.
De acordo com o professor Fábio Gentile, docente do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), embora essa tendência existisse antes de 2018, o bolsonarismo e o uso das redes sociais são dois elementos que devem ser destacados nesse processo.
"Não há dúvida que a eleição do Bolsonaro alimentou o movimento neonazista brasileiro, apresentando pra ele um espaço político favorável para se espalhar, uma vez que apresentou uma agenda de tópicos quais a homofobia, o racismo, a misoginia, a exaltação da ditadura militar, o anticomunismo, só pra lembrar alguns dos mais notórios", pontua.
Gentile enfatiza que "o uso amplo e sofisticado das redes sociais pela máquina da propaganda bolsonarista, só pensar na família Bolsonaro e sua presença nas redes espalhando ódio e mentiras, alimentou ainda mais o movimento neonazista brasileiro, que ganhou muito mais fôlego até se sentirem legitimados".
Para Odilon Caldeira Neto, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Observatório da Extrema-Direita do Brasil, a sociedade brasileira terá de lidar, em certa medida, com uma geração política moldada em torno do extremismo de direita em suas mais variadas facetas constituintes.
Segundo Neto, as medidas a serem tomadas envolvem desde uma perspectiva educacional até de segurança pública, assim como propostas de regulação das redes sociais.
"Esse tripé tem por objetivo não somente dirimir a atuação desses grupos como também desarticular as lideranças mas também projetar uma dimensão de referência de combate ao extremismo da direita em seus veículos de disseminação", ressalta.
"Olá! Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários :) até a próxima!"