As fotos de crianças e idosos com os ossos colados à pele nos chocaram. Os números de mortos (570 crianças entre 2019 e 2022, por causas evitáveis) também. O abandono, a violência, a fome, as mortes… Tudo que envolve a crise humanitária dos Yanomami em Roraima indignou o País e mobilizou a viagem do presidente Lula (PT) para entender de perto a dimensão da tragédia.
O problema é que foi uma tragédia anunciada. Com manifestações públicas, com pedidos de socorro em denúncias e estudos e com ao menos 21 ofícios formais de ajuda humanitária enviados ao governo federal, desde 2020 — completamente ignorados pela gestão de Jair Bolsonaro (PL).
De acordo com Luis Ventura Fernández, secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o ponto de inflexão para a crise foi entre 2017 e 2018, com o aumento da presença do garimpo no território indígena (TI) Yanomami. Mas foi após a eleição de Bolsonaro que a escalada garimpeira ganhou uma “velocidade absurda”, com o incentivo e o amparo do governo federal.
No mapa, a forma em laranja delimita a TI Yanomami, enquanto as outras três formas são unidades de conservação. Já os círculos em vermelho com ícone de trator são os municípios com maior desmatamento na TI Yanomami; os círculos em marrom com ícone de mineração, são os municípios invadidos pelo garimpo. Clique nos ícones para ter mais informações sobre os hectares desmatados e os efeitos do garimpo.
Durante todo o mandato, o ex-presidente desmontou os órgãos de fiscalização ambiental, indigenistas e de saúde: ao mesmo tempo que a inércia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), por exemplo, facilitou a invasão garimpeira, madeireira e grileira; a desconstrução da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) impediu a garantia dos direitos dos povos.
Ao mesmo tempo, o subsistema de saúde indígena foi desmantelado, provocando o fechamento dos postos de saúde (quando não estavam ocupados pelo garimpo armado) e minando o acesso a instrumentos de saúde.
“Foram quatro anos de desestruturação. Os Yanomami foram absolutamente abandonados”, descreve Luis. “Nós estamos diante de um Estado que, por muito mais que a sociedade se mobilizasse, ela estava cerceada. Os povos indígenas eram impedidos pela própria Funai.”
Os pedidos de socorro têm sido enviados desde então. Em 2019, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou a primeira ação de cumprimento de sentença, exigindo da União a instalação de três Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes) da Funai em pontos estratégicos da Terra Indígena Yanomami, “com vistas à asfixia logística do garimpo, conforme decisão em ação civil pública (ACP) ajuizada em 2017”.
Em nota, o MPF defende que a crise sanitária Yanomami é resultado da omissão do Estado brasileiro em assegurar a proteção das terras indígenas. Também chegou a informar à equipe de transição do atual governo Lula da possibilidade de a crise humanitária ser considerada um genocídio.
No entender de Camila Soares Lippi, doutora em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professora na Universidade Federal do Amapá (Unifap), é perfeitamente cabível considerar as ações do governo Bolsonaro como genocidas.
“Os pressupostos estão presentes”, afirma, ao lembrar que o crime de genocídio implica intenção de exterminar uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso. E pelas falas do ex-presidente, mesmo já como deputado, refletem nitidamente a ojeriza dele para com os povos indígenas e seus direitos.
“Pode ter certeza que se eu chegar lá não vai ter dinheiro pra ONG. Se depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola.”
No clube Hebraica, Rio de Janeiro, no dia 4 de abril de 2017
"Você fica pensando como é que pode 10 mil índios terem uma área equivalente a duas vezes o estado do Rio de Janeiro, como os ianomâmis. Chega, não dá mais porque a intenção disso é inviabilizar a agricultura, inviabilizar o agronegócio do Brasil e virar um conflito".
Entrevista à Rádio 96 FM de Natal (RN), no dia 4 de agosto de 2021
"Até vale uma observação neste momento: realmente a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país".
no Diário da Câmara de 16 de abril de 1998
“Deve-se, sim, falar em genocídio”, concorda o secretário adjunto do Cimi. “Eles estão atacando na raiz”, lamenta, ao contar sobre a morte entre as crianças indígenas. Em 2021, Luis relembra, foram 20 mil casos de malária entre os 30 mil indígenas, dentre os quais as crianças foram as mais afetadas.
Ao mesmo tempo, o garimpo — que provoca desmatamento e, portanto, favorece o espalhamento de doenças, além de contaminar a água com mercúrio — ficou armado. Camila Lippi aposta no termo “garimpeiros traficantes”, já que o garimpo de Roraima agora é majoritariamente controlado e operacionalizado pela facção Primeiro Comando da Capital (PCC).
Os garimpeiros foram armados e também viraram traficantes de drogas, tudo muito facilitado pelo completo abandono do governo federal.
No dia 26 de janeiro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou uma representação criminal na Procuradoria Geral da República (PGR) contra o ex-presidente do Brasil, Bolsonaro, e seus aliados: Marcelo Xavier, ex-presidente da Funai, Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e Robson Santos, ex-secretário de saúde indígena da Sesai, para que eles sejam responsabilizados criminalmente pelo genocídio dos Yanomamis, em Roraima.
A denúncia afirma que a gestão de Bolsonaro foi omissa com o povo indígena Yanomami que, de 2019 a 2022, foram afetados pelo aumento de desnutrição, malária, assassinatos e estupros, além da contaminação de indígenas com a Covid-19.
Enquanto o Governo Federal foi o principal responsável pela crise humanitária Yanomami — diga-se, desde a década de 70 —, também é importante refletir: mesmo com reportagens aqui e ali comentando sobre o assunto, por que a sociedade brasileira não se comoveu de primeira?
Por que deixamos a tragédia persistir por tantos anos? Por que não falamos nada coletivamente? Por que permitimos que a crise fosse uma notícia lida por um grupo já envolvido na pauta, uma mobilização de nicho?
“O problema é o apagamento dos grandes traumas históricos do Brasil”, define Camila. A memória curta brasileira esqueceu os pavores da escravidão, do genocídio indígena e da ditadura militar. Em todas as instâncias.
Não há uma manutenção dos museus para debater esses assuntos, os monumentos existentes homenageiam principalmente os agressores (como garimpeiros e bandeirantes), e a própria escola formal perpetua uma visão histórica romantizada e recheada de preconceitos sobre a ocupação e criação do Brasil.
Com o apagamento e a propagação do preconceito, vem a repetição da história. “O passado não se torna passado”, explica Camila. É por isso que a pesquisadora defende o fortalecimento de políticas de memória para evitar mais casos como os do Yanomami. Isso implica criar, estruturar e fomentar museus e construir monumentos significativos com foco na história de luta dos povos.
Por outro lado, a própria imprensa deve fortalecer a cobertura sobre as causas indigenistas. “A mídia também foi de olhar curto. A questão saiu de pauta depois de alguns dias. Tudo isso vai criando dificuldade de reação”, analisa Luis Ventura. “Acho que além de pautar os fatos, é também momento de pautar os contextos”, sugere.
Ou seja, é insuficiente dizer que existe uma crise sanitária Yanomami; é preciso informar porque e como ela chegou a esse nível.
Além disso, Camila Lippi opina que a imprensa não deve diminuir o peso do genocídio indígena, como chegou a ocorrer durante a cobertura da CPI da Covid-19.
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Os indígenas estão mais vulneráveis à maioria das doenças e tiveram todo o subsistema de saúde desmantelado.
Apesar de a propriedade delimitada ser do Brasil, a posse dos territórios indígenas são das populações, e elas estão sendo invadidas.
Indígenas têm sido ameaçados, perseguidos e assassinados sistematicamente pelos garimpeiros, madeireiros e grileiros.