É recorrente dizer que o ano no Brasil só começa depois do Carnaval. Se for assim, estamos às vésperas de 2021. Afinal, este ano a festa recomeça depois dos dois anos que não começaram — o outro foi 2022, época em que a pandemia de Covid-19 interrompeu o maior acontecimento da vida popular brasileira.
No ano em que os festejos recomeçam, O POVO revisita as memórias do Carnaval em Fortaleza. A Capital nunca foi um Rio de Janeiro, uma Olinda, uma Salvador. Por muito tempo, invejou Aracati, Paracuru. Aliás, mesmo com cidades como Carnaubal, Fortaleza não conseguia competir. Porém, há uma história carnavalesca na cidade. Uma tradição por vezes esquecida.
A ideia de Fortaleza sem Carnaval cresceu a partir do fim da década de 1970. Os clubes perderam força. O automóvel se popularizou e quem podia preferia viajar. Já a festa de rua, a alegria de quem não tinha como sair da Capital, perdeu apoio do poder público naquele período. Em 1983 e 1998, nem houve desfile oficial. Nesse último, apenas um maracatu desfilou, por três dias, em gesto de resistência.
A bagunça era marcada pela falta de local fixo. Os desfiles, que antes saiam da Praça do Ferreira, foram por muito tempo na avenida Duque de Caxias. A partir da década de 1980, passaram pela Avenida da Universidade, voltaram à Duque de Caxias, foram para Beira Mar, voltaram para a Avenida da Universidade, foram para a avenida Pessoa Anta, na Praia de Iracema, depois Beira Mar, voltaram à Duque de Caxias, até se fixarem na Domingos Olímpio. A indefinição atrapalhava a criação de uma tradição. Na tentativa e erro, buscava-se uma identidade.
Mais pobre e sem organização, o Carnaval da Capital foi ficando entregue aos blocos de sujos. Ocorrências policiais eram registradas. A festa foi ficando perigosa e se esvaziou. Sobretudo para as classes médias, o Carnaval foi morrendo.
Mas, a festa dos pobres nunca deixou de ocorrer. Os clubes também mantêm sua tradição. Assim como as praias têm seu público cativo. Mas, surgiu uma nova geração de blocos, a partir do Pré-Carnaval. Shows no Aterrinho da Praia de Iracema levam grandes públicos. A histórica Gentilândia e o Mercado dos Pinhões tornam-se polos de uma tradição carnavalesca que começa a se consolidar.
Fortaleza sempre teve Carnaval e sempre teve quem não abriu mão e lutou para fazer o Carnaval. O POVO mergulha em seu acervo para apresentar as várias feições que a folia já teve, em seus altos e baixos. Nenhuma tão triste quanto as de 2021 e 2022.
Neste 2023, quando as ruas voltam a ser tomada, O POVO mostra de onde vem e como se chegou ao que o Carnaval é hoje em Fortaleza.
"Momo! Momo! Nesses três dias que virás passar comnosco, vê lá se dás um geito no Ceará", publicou O POVO em 18 de fevereiro de 1928, primeiro Carnaval após a fundação.
A festa na época se dividia entre clubes — destacavam-se o Iracema e os Diários — e a festa de rua. Fora dos clubes, o destaque eram os corsos, desfiles de carros ornamentados. O automóvel era ainda novidade, o primeiro tinha chegado menos de vinte anos antes. Os foliões iam fantasiados, e travavam batalhas de serpentina e lança-perfume, enquanto a multidão sem carro assistia. Acabaram mais tarde se convertendo em carros alegóricos, que inspiraram desfiles de blocos, cordões e escolas de samba.
Em 13 de fevereiro de 1929, O POVO registrou aquele Carnaval nos salões como talvez o mais vibrante já visto em Fortaleza. Nas ruas, em compensação, a festa foi menos animada que em anos anteriores. O corso perdeu brilho. Era reflexo de uma crise econômica, que iria piorar muito até o fim daquele ano.
Detalhe é o registro de que festejos carnavalescos já ocorriam desde meados de janeiro. Já existia Pré-Carnaval.
O corso era coisa muito séria. O inspetor geral baixava regras: "O corso constará de duas filas de vehiculos, e obedecerá o seguinte itinerário: partindo da praça do Ferreira, pela rua Major Facundo, em direcção ao sul, entrará na rua Duque de Caxias, voltando á mesma praça, em direcção ao norte, pela rua Floriano Peixoto", definiu em 1930. Veículos com placa de experiência eram proibidos. A velocidade máxima dos carros era de 10 km/h. No perímetro urbano o limite era de 20 km/h, e 30 km/h no perímetro suburbano.
Em 14 de fevereiro de 1931, O POVO noticiou regras baixadas pela Delegacia de Policia: era proibido usar máscaras, canções "indecentes", "criticas grosseiras ás pessoas que tenham exercido, ou estejam exercendo cargos públicos" e "criticas offensivas á moral". Pessoas em estado de embriaguez em via pública seriam conduzidas aos postos policiais.
"Outrossim: serão recolhidas aos postos policiais as pessoas encontradas na via publica em estado de embriaguez". Apesar da tentativa de controle, em 17 de fevereiro de 1931, O POVO informava de tiros e correria na Praça do Ferreira lotada, resultado de conflito entre praças da Polícia e do Exército, que não se davam. Não houve morte ou ferido grave, mas muita gente teve machucados.
Ao final daquela década, a festa seguia quente nos Diários e no "aristocrático Ideal, na avenida João Pessoa". Mas, o Carnaval de rua era apontado como desanimado. As ruas até se enchiam, mas eram poucos os blocos.
No começo da década, o Carnaval saia em meio a noticiário sobre a guerra. Em 1940, O POVO destacava o bloco "Maracatu" como melhor daquele Carnaval. A festa de rua ainda era ditada pelo corso, que atraía muita gente para ver, embora, em 1942, estivesse fraco, para o gosto da reportagem. A noite era na Praça do Ferreira. Já se destacava o Maracatu Az de Ouro. O Benfica também tinha festa. Além dos clubes Ideal, Iracema, Diários, Country Club e Maguari. Também em 1942, registra-se furto de lança-perfumes por grupo de garotos.
Em 1944, a festa estava combalida pela carestia e a guerra. O corso teve só uns 15 carros. Pouca gente se animou a assistir. Os blocos davam alguma vida à rua, mas os destaques mesmo eram os clubes. Em 1945, a festa seguia ladeira abaixo. "Nos últimos anos, nesta capital, o carnaval tem sido desanimadíssimo", dizia O POVO em 14 de fevereiro, destacando os poucos blocos, raros foliões fantasiados. E mesmo os clubes perdiam entusiasmo.
"Foi o carnaval deste ano, sem dúvida alguma, o mais animado e concorrido dos que já se realizaram em Fortaleza"
Mas, em 1946, veio o Carnaval da Vitória, o primeiro após a guerra. O palco principal tornou-se a avenida Duque de Caxias, que atraiu multidão, para ver o corso e os blocos. A Escola de Samba Luiz Assunção foi escolhida o melhor bloco. Os clubes também tiveram animação. A festa terminou às 6 horas da Quarta-Feira de Cinzas, simbolicamente com a prisão do Rei Momo.
Em 1947, a festa foi saudada como "O maior Carnaval de Fortaleza". Dizia O POVO: "Na verdade, nunca houve nesta capital um carnaval como o de 47". Blocos se apresentavam na Praça do Ferreira, havia festa no Theatro José de Alencar, além dos clubes Diários, Ideal, Iracema, Maguari. E o corso. Mas o destaque passou a ser o frevo na rua Senador Pompeu, entre Duque de Caxias e Pedro Pereira.
Em 1948, o jornal até avisou no sábado: "A turma do O POVO aderiu ao Carnaval da rua Senador Pompeu. Por esse motivo somente voltaremos á circulação na quarta-feira de cinzas". Parece ter valido à pena, pois a edição seguinte dizia: "Foi o carnaval deste ano, sem dúvida alguma, o mais animado e concorrido dos que já se realizaram em Fortaleza".
Em 1950, o Carnaval ficou abaixo de anos anteriores. A economia não ia bem e O POVO destacava que havia muita gente nas igrejas, que chamavam as pessoas a ficarem em retiro. Depois da prisão de outro ano, a festa terminou com Momo despojado do cetro e tendo parte do traje queimado na quarta-feira.
Em 1951, a festa foi melhor, com mais blocos. Os ônibus circulavam abarrotados de foliões. Não houve lá muita criatividade ou humor nas fantasias. A festa ocorreu nas praças do Ferreira, do Carmo, na Senador Pompeu, Barão do Rio Branco, Major Facundo, Floriano Peixoto, Duque de Caxias e Dom Manuel, além dos clubes.
Em 1952, a festa foi desanimada na rua, com corso desorganizado. Lança-perfume era vendido a cem cruzeiro. "Aproveitadores entraram direitinho na bolsa dos foliões", registrou a reportagem. Em 1953, o corso foi pobre e mesmo os clubes já não recebiam o mesmo público.
No fim da década, a festa ocorria em clubes como Náutico, Iracema, Líbano, Diários, Comercial, Massapeense, Maguari, Country Club, Quixadaense, General Sampaio, Santa Cruz, Crateuense. Em 1959, havia poucos blocos, mas muito público. Destacava-se nas ruas o maracatu. A carestia e falta d'água atrapalhavam a festa. Alguns clubes deixaram de exigir fantasia, o que levou alguns foliões a irem em trajes mais simples, embora não deixasse de haver algumas vestimentas mais ostentatórias.
A década começou como terminou a anterior: Carnaval pouco animado na rua. O corso era recebido com certa frieza. Alguns clubes com festas animadas não mantiveram a tradição. A reportagem atribuía em parte à proibição do uso de lança-perfume.
Em 15 de fevereiro de 1961, O POVO dizia: "Carnaval teve um mérito: foi calmo". Destacavam-se blocos de sujos e travestidos.
Calmo não foi o Carnaval de 1962, quando no elegante Ceará Country Club houve tiros, garrafadas e um fotógrafo ficou gravemente ferido. A causa da confusão teria sido desentendimento sobre a entrada de adolescentes e o uso de lança-perfume.
Uma curiosidade foi a presença de mais mulheres no Carnaval de rua, festa até então tida como mais masculina.
Em 12 de fevereiro de 1964, o Carnaval foi classificado como o "mais animado de Fortaleza", nas ruas e nos clubes. Com o detalhe de que a opinião geral era de maior animação nas ruas — o noticiário costumava antes destacar os clubes como espaço principal.
Naquele ano, como ocorrera em décadas anteriores, o palco principal era a Duque de Caxias. Os maracatus destacavam-se nos desfiles.
Em 1965, apesar da força do Carnaval de rua, muitos fortalezenses viajavam com destino a praias como Paracuru, Pecém, Prainha, Majorlândia e Iguape, ou serras como Maranguape, Pacatuba, Baturité, do Estevam e Serra Grande.
Em 1967, o corso estava proibido pelo órgão de trânsito. A Duque de Caxias não teve decoração e a festa foi de blocos de sujo e papangus, num Carnaval de rua que O POVO caracterizou como decadente. No ano seguinte o corso voltou. Mas, no percurso com blocos e cordões, houve brigas, inclusive de membros da mesma agremiação. O que dominava o percurso eram os blocos de sujo.
Em 1970, o Maracatu Rei de Paus foi campeão do Carnaval, o que gerou protestos da escola de samba Ispaia Brasa, e a Polícia teve de intervir. No ano seguinte, a Ispaia Brasa foi campeã.
Naquela década, os desfiles foram transferidos para então recém-inaugurada avenida Aguanambi. Em 1973, a festa foi marcada pela chuva. Os "sujos" foram impedidos de desfilar no mesmo espaço dos blocos tradicionais. E o engenheiro Carlito Pamplona, diretor da escola Ispaia Brasa, foi agredido por um policial que estranhou ao vê-lo desfilar protegido com uma capa — chovia, ele estava com febre. O policial quis saber o que ele fazia ali com aqueles apetrechos e supôs que ele fazia troça ao se dizer vice-presidente da agremiação.
A festa ficou pouco tempo na Aguanambi. Em 1976, transferiu-se para Senador Pompeu e Duque de Caxias. Nos clubes, destaque para Náutico, BNB, Líbano e Clube de Regatas da Barra. Em 1977, na festa da Duque de Caxias, um poste caiu e matou duas crianças. Mas, ao final da década, os desfiles de rua na Duque de Caxias estavam consolidados como festa relevante na cidade.
A festa de maracatus e escolas de samba se mudou para a Avenida da Universidade, mas por pouco tempo. Em 1983, sem verba da Prefeitura, as agremiações tradicionais não saíram. Na avenida Duque de Caxias, apenas os renegados blocos dos sujos e uma distribuição de mais de três mil litros de cachaça por uma fabricante. Na Beira Mar, desfilaram naquele ano aquilo que O POVO chamou de "arremedos de escolas de samba e blocos".
Clubes perderam espaço e relevância. O automóvel já era mais popular e cresceu a tendência de busca por praias de outros municípios, como Paracuru, Morro Branco e Canoa Quebrada. Os mela-melas se popularizam. Descanso era buscado na serra de Guaramiranga.
No fim da década, os desfiles voltaram à Avenida da Universidade, com críticas cada vez maiores à desorganização. Os blocos de sujos, tantas vezes reprimidos, tornam-se uma das caras da festa de rua. O surgimento da aids se tornou preocupação na festa.
A festa de rua foi para a Praia de Iracema, na avenida Pessoa Anta, em 1990, e, em 1991, para a Beira Mar, onde atraiu multidão. Ali se buscava questionar a imagem já construída de que Fortaleza não tinha Carnaval. Em 1992,o desfile retornou à Duque de Caxias. Mas, a festa seguiu na Praia de Iracema com a banda Bandalheira. Em 1993, os desfiles foram de novo para a Beira Mar.
Os clubes se esvaziaram enquanto Aracati e Paracuru se consolidaram como principais festas do Estado. Foi o auge do Carnaval no litoral.
Em 1994, houve desfiles na Duque de Caxias e shows na Beira Mar. Em 1997, a festa ganhou o espaço que viria a se consolidar: a avenida Domingos Olímpio. Maracatus, cordões e escolas desfilavam com poucos recursos, mas atraindo grande e cativo público.
Em 1998, foi o fundo do poço. A Prefeitura não liberou recursos e apenas um maracatu, o Nação Baobab, desfilou. Apresentou-se sozinho, domingo, segunda e terça na Domingos Olímpio. No Centro, nada de Carnaval. A única atração era o filme Titanic, no cine São Luiz, onde longas filas se formaram no meio do Carnaval. Houve festas modestas na Beira Mar, Barra do Ceará, Conjunto Ceará e José Walter.
A década começou com o Carnaval da Domingos Olímpio quase sem apoio e Fortaleza esvaziada. Essa foi a marca do Carnaval até meados de 2000. Mas, o Pré-Carnaval ganhou impulso e passou a atrair grandes multidões. O contraste entre a força do Pré e a debilidade do Carnaval se evidenciou.
O Pré recebeu mais investimentos da Prefeitura, com edital de blocos. Já no Carnaval, em 2008, a arquibancada na Domingos Olímpio desabou e deixou 40 feridos. O triste episódio acabou sendo, curiosamente, um ponto de virada.
A partir de 2009, a Prefeitura investiu mais no Carnaval e na contratação de atrações nacionais para a Praia de Iracema, enquanto a Domingos Olímpio seguiu como palco de maracatus, escolas e cordões. No fim da década, o Pré acabou puxando o Carnaval. Vários blocos que se apresentavam nas semanas anteriores começaram pouco a pouco a se transformar em blocos de Carnaval.
O Carnaval de rua se diversifica, com mais blocos e muitas atrações, enquanto escolas e maracatus seguem na Domingos Olímpio. A tendência de o fortalezense brincar fora da cidade é em certa parte revertida. As praias seguem com seu público, a serra também.
Mas, a festa na Capital ganha diversidade de manifestações e espaços. Benfica, Praça do Ferreira, Praça dos Leões, Mercado dos Pinhões, Largo Dona Mocinha, Praia de Iracema são alguns dos espaços por onde a festa passa. Públicos e setores da sociedade que não participavam das celebrações de rua na Capital se juntam à folia. É o auge do Carnaval de Fortaleza.
O Carnaval de 2020 ocorreu em meio a motim de policiais, com segurança pública em crise e sob espectro da Covid-19, que se alastrava pelo mundo. Na Quarta-Feira de Cinzas, o primeiro caso no Brasil foi confirmado em São Paulo.
Em 2021 e 2022, não haveria Carnaval. Feriados foram suspensos pelo poder público. Para quem teve folga, houve viagens ao litoral e Interior. Porém, não houve a festa de sempre. Aqueles foram os anos sem Carnaval. Agora, em 2023, a festa volta a tomar o Brasil e a história segue a ser escrita.