O comboio de sete carros fura a madrugada lentamente, presenciando cada segundo em que o céu escuro é pintado de rosa e azul, e decorado pela alvura da lua crescente. Os carros escoltados pela Polícia Militar do Ceará (PMCE) e pelo Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CMBCE) não guardam nada assustador, pelo contrário: no caminhão da PMCE, está a peixe-boi Ariel em uma longa viagem de volta ao lar.
Ainda que a translocação à Icapuí tenha saído de Caucaia na primeira hora da madrugada do dia 7 de fevereiro, a história de Ariel tem sete anos. Ela foi resgatada na manhã de 10 de novembro de 2016, na praia de Ariós, Beberibe (CE). Tinha apenas um dia de vida, ainda com resquícios de cordão umbilical, uma cena infelizmente comum no litoral leste cearense.
Trichechus manatus
Status de conservação (CE): Criticamente ameaçado
Tamanho médio: entre 2,7m e 3,5m
Peso médio: entre 200 e 600 quilos
Com a degradação de manguezais e estuários, as mães peixe-boi carecem de espaços seguros para parir os filhotes. Então, o fazem em alto-mar, facilitando o arrasto dos recém-nascidos para as faixas de areia. Na segunda temporada do especial Década do Oceano, O POVO+ narrou a história de quatro peixes-bois com a mesma sina de Ariel.
Desde então, Ariel cresceu no Centro de Reabilitação de Mamíferos Marinhos (CRMM) da Aquasis, localizado em Caucaia, aprendendo tudo o que normalmente aprenderia em dois anos com a mãe. Apesar do começo triste, Ariel se desenvolveu bem: a adulta de 7,3 anos mede 2,76 centímetros e pesa 450 quilos. Está entre as mais pesadas já translocadas pela Aquasis.
Na minha imaginação, Ariel já pressentia que algo iria ocorrer. Desde 8 de janeiro, a comida era oferecida no espaço de cambiamento do tanque, com a comporta sempre aberta, o que não a incomodou. Nesse mês, ficou habituada a alimentar-se por lá, passeando no novo espaço sempre que sentia vontade. Às 14 horas do dia 6 de fevereiro, ela foi confinada no cambiamento, separando-se do peixe-boi colega de tanque.
À sua volta, a equipe da Aquasis organizava pormenores detalhados da viagem ao mar. Contavam minuto a minuto, prevendo atrasos, adiantamentos, lanches e idas ao banheiro. Estavam confiantes de uma rota noturna tranquila e de uma liberação bem sucedida. E assim foi.
A chegada dos convidados e demais participantes do comboio estava programada para 20h40min de terça, 6 de fevereiro. Confere. Às 21h20, a caixa de transporte de Ariel seria colocada no caminhão munck. Confere. Reunião com a equipe repassando o trajeto às 22h. Sedação de Ariel, 22h40. Saída da sede da Aquasis, 1h20min de 7 de fevereiro. Confere, confere, confere.
Nenhum segundo foi desperdiçado. Mesmo o tempo imprevisível de efeito do remédio para tranquilizar Ariel foi, de alguma maneira, exato. Em nenhum momento, a peixe-boi esteve sedada; o fármaco apenas a deixou menos reativa aos estresses sonoros, luminosos e de movimento durante o processo de transporte.
Assim que Ariel tranquilizou, foi possível amarrá-la para ser içada. Ela ainda deu uma dificultada: descrita no Plano de Trabalho da Aquasis como uma peixe-boi reativa durante contenção física e coleta de sangue, apesar de receptiva aos humanos, Ariel se negava a ficar na posição ideal para ser posta em uma rede e ser levada ao caminhão. No momento em que os quatro humanos a acomodavam perfeitamente, ela jogava o corpo pesado para o lado e girava, distanciando-se do local.
“Hoje a gente fez uma avaliação prévia com exames muito muito mais específicos do que é feito na rotina”, explica o médico veterinário Felipe Catardo, técnico em resgate e reabilitação de animais marinhos na Aquasis. “Esse animal recebe uma medicação antes de ir para caixa de transporte com a finalidade de tranquilizar o indivíduo. Ele ainda é monitorado com uma frequência muito maior, a cada 20 minutos a gente avalia, principalmente a temperatura, a respiração e os batimentos cardíacos.”
De qualquer maneira, não demorou muito para ela ser finalmente içada e instalada na caixa revestida por colchões, desenvolvida pela Aquasis para o transporte à seco dos peixes-bois.
O método é totalmente seguro, afinal os peixes-bois são animais pulmonados, ou seja, respiram o mesmo ar que os seres humanos. Por isso eles moram em partes relativamente rasas do mar: eles mergulham para pastar nos bancos de gramas marinhas e logo voltam à superfície, colocando o focinho fora da água e enchendo os pulmões com ar puro.
“Muita gente que se depara com um animal marinho fora da água se assusta, porque a primeira impressão que a gente tem é que esse animal precisa ficar obrigatoriamente dentro da água”, diz Felipe. “Claro, é um animal marinho, então realmente ele precisa ficar dentro da água, mas nessas intervenções mais minimalistas ele suporta bem estar fora”, tranquiliza.
Liderados pela bióloga Letícia Gonçalves, coordenadora de Resgate da Aquasis, o comboio partiu madrugada à dentro vagarosamente. Para o conforto de Ariel, a velocidade máxima foi de 60 km/h, transformando uma viagem de três horas em uma de cinco. Nos carros, os rádios tocavam hits de Carnaval para manter todos acordados; em pequenos coolers, sucos, refrigerantes e sanduíches.
Seis da manhã. A placa de boas vindas de Icapuí harmoniza com o azul matutino. Depois da agitação durante o manejo para a caixa de transporte, Ariel conseguiu ficar mais tranquila durante a viagem. Na rotatória na entrada da comunidade de Redonda, outro caminhão munck já aguardava a chegada da cavalaria acompanhado de vários moradores estendendo celulares, ansiosos por filmar a penúltima transferência da peixe-boi.
Na Praia de Picos, o público também vibrava com o momento em que veriam, para alguns a primeira vez, um peixe-boi. A equipe da base de Icapuí da Aquasis tinha instalado uma área de educação ambiental para atender a comunidade que esperava por Ariel: uma pelúcia de peixe-boi, no tamanho de um filhote, demonstrava como eram instalados os rastreadores nas caudas dos animais.
Crânios de peixes-bois e botos-cinzas também estavam na mesa, ao lado de bótons e cadernetas informativas sobre a Ariel. De acordo com Luanna Oliviery, técnica de educação socioambiental da Aquasis, esse é o momento ideal para educar o público sobre os animais marinhos e a importância da conservação deles.
Desde a chegada da ONG, diz Luanna, a relação da comunidade com o peixe-boi mudou completamente. Aos poucos, a figura do animal virou parte da identidade de Redonda. Em 2024, o Carnaval de Icapuí terá o primeiro Bloco do Peixe-boi, uma ideia que partiu da comunidade.
A nível municipal, a Lei Nº 55/2015 decretou a população nativa de peixes-bois marinhos (Trichechus manatus) como patrimônio natural de Icapuí, instituindo também o dia 4 de outubro como o Dia Municipal do Peixe-boi Marinho.
Mas entre os sorrisos e os olhos empolgados por espiar a gloriosa Ariel não estavam apenas icapuenses. O vigilante patrimonial Aureliano Souza é de Nova Olinda, no Cariri cearense, e estava passeando no litoral com o filho Gabriel, de 5 anos, quando soube da translocação de Ariel. Foi correndo buscar o pequeno para conhecer a espécie.
“Quando o Gabriel vê isso, ele vai crescer com a mentalidade de preservação, de cuidado. Foi isso que eu tive na infância. Ele vendo isso, ele vai ter mais amor pela vida, pelos animais, pela natureza”, orgulha-se. Apesar da oportunidade de ver animais de outros ecossistemas, Aureliano reforçou que ser do sertão não é impeditivo para a conexão com a vida marinha. “O sertão é totalmente diferente, mas nós já fomos mar também. Tem a questão da preservação também do Araripe, é importante trabalhar essas questões.”
Assim que a caixa de Ariel foi colocada na areia e a primeira porta foi abaixada, a população emocionou-se em uníssono. Um menino foi incapaz de segurar a empolgação e gritou um “eita, p***a” ao ver o tamanho de Ariel com os olhos cobertos por um pano, para evitar a sensibilidade à luz. Uma equipe de 12 pessoas da Aquasis levantou os 450 kg na mão e acomodou o animal em duas esteiras na praia.
O restante da equipe embarcou em pequenos barcos em direção à zona de aclimatação, último destino de Ariel, enquanto os tratadores em solo permitiam a aproximação controlada das crianças, para observarem de perto o animal. A viagem de madrugada visava chegar à Icapuí para aproveitar a maré baixa — facilitando o transporte de Ariel — e a baixa incidência solar, para que a peixe-boi não se queimasse.
A zona de aclimatação consiste em uma plataforma flutuante e maleável construída pela Aquasis no mar da Praia de Picos, com uma rede submersa que permite o contato dos animais com o habitat natural de maneira segura. Esse é o último estágio antes da soltura dos peixes-bois, no qual os animais passam seis meses a um ano se acostumando à vida natural longe dos tanques.
Em questão de minutos, Ariel foi transportada por uma balsa e levantada, novamente no braço, pelos tratadores da ONG, surpreendentemente bem equilibrados. Ariel mal parecia pesar e a plataforma mal parecia dobrar-se ao prazer das ondas; eles praticamente andavam no mar.
Um empurrãozinho a mais e Ariel mergulhou nas águas turquesas de Icapuí. Pela primeira vez em 7 anos e três meses, ela sentiu o salgado de onde nasceu e de onde nunca deveria ter saído.
Aplausos cortaram o vento. Na zona de aclimatação, Ariel conhecia agora as fêmeas Rutinha e Flor e o macho Estevão, colegas pelos próximos meses até o momento mais esperado de todo o projeto de conservação: a soltura.
Não sei o que Ariel pensou durante a viagem. Talvez tenha sido meio chato ficar em uma caixa por algumas horas, especialmente para um peixe-boi ativo como ela. Talvez a movimentação tenha soado estranha, e o mergulho na água salgada uma surpresa. No entanto, vê-la golpear as ondas com a cauda pela primeira vez, vê-la furar a superfície aquática para respirar seguidamente, vê-la finalmente em casa; faz acreditar que ela deve estar feliz.
Os abraços, os sorrisos e as comemorações de uma equipe que já devolveu vários animais marinhos ao mar são tão genuínos que, quem sabe, para eles também seja como a primeira vez.
O sono de uma madrugada em claro valeu a pena. É momento de descansar: em um ano, a história de Ariel deve receber novo capítulo, o melhor de todos. Logo, logo, Ariel será totalmente livre.
"Oie! Sou a Catalina, repórter do OP+. O que você achou do conteúdo? Sabia que era tão complexo translocar um peixe-boi? Vamos conversar nos comentários :)"