Para além dos espigões e jangadas, das pranchas e navios, estende-se um Ceará profundo. Ao furar a superfície de ventos fortes e ondas agitadas, a água salgada e relativamente quente invade cada centímetro de pele. Abraça os ouvidos, abafados por bolhas e linguagens aquáticas, e compete com os pulmões demasiadamente continentais. Nesta fronteira, entram os que decifram as cores além do matiz azul, os que ouvem atentamente aos idiomas marinhos e os que entendem a vida submersa como legitimamente cearense, sem tirar nem pôr. Este é o Ceará Azul.
São 249 mil quilômetros quadrados (km²) de mar cearense, maior que a extensão continental do Estado, de 149 mil km². Apesar disso, menos de 1% desse mar é protegido: a única unidade de conservação totalmente marinha do Ceará é o Parque Estadual Marinho Pedra da Risca do Meio (vídeo acima), localizado a 18,5 km do Porto do Mucuripe (Fortaleza), com 33,20 km² de área preservada.
No litoral leste, três unidades de conservação no Icapuí criam um corredor de proteção marinha (veja no mapa abaixo). Uma delas é a Área de Proteção Ambiental (APA) Berçários da Vida Marinha, com 132 km² abrangendo praias, falésias, dunas, manguezais, bancos de algas e recifes, onde vivem animais marinhos ameaçados de extinção. Criado em 2022, o berçário está localizado entre outras duas APAs municipais de Icapuí com características similares: a do Manguezal da Barra Grande e a da Praia de Ponta Grossa.
É justamente no litoral leste onde vivem os peixes-bois marinhos do Ceará, mamíferos aquáticos de até três metros que têm um trabalho importantíssimo nas águas rasas: eles são os jardineiros dos bancos de gramas marinhas, mais conhecidas como capim-agulha.
Forrageando as gramas compridas lentamente, os peixes-bois adubam os campos com fezes e urinas ricos em nutrientes não apenas para o solo, como também para peixinhos que comem o cocô desses mamíferos. Em parte por causa dos peixes-bois, os bancos de grama marinha são excepcionais pradarias para peixes e crustáceos, capazes não apenas de alimentar a vida aquática, como também possibilitar a saúde dela pela filtragem de tóxicos da água, pela captura de carbono e pela oxigenação de todo o ambiente.
>>Confira no episódio 2 desta temporada a história de peixes-bois cearenses e como eles são afetados pela degradação ambiental.
Mas os bancos de capim-agulha são apenas um dos diversos ecossistemas submersos do Ceará. Assim como o continente estadual diversifica-se em caatinga, mata atlântica, carnaubais e tantos outros pequenos-grandes mundos, o marinho encobre paisagens sem fim. Enquanto as mais conhecidas são os manguezais, as praias e os recifes de corais coloridos e vibrantes, há bairros pouco falados e ainda a serem melhor desvendados.
Espalhados por eles, vivem cerca de 400 espécies de peixes marinhos, como meros, pargos, tubarões,
Do grupo dos cnidários, os corais são animais parentes das hidras e das águas-vivas que constituem colônias gigantescas, formando verdadeiros lares para a vida marinha. Emprestando suas cores a partir da simbiose com microalgas (chamadas zooxantelas), as espécies de corais cearenses mais destacadas são a Favia gravida, a Meandrina braziliensis (também conhecida como pedra-de-iemanjá), a Montastraea cavernosa e a Siderastrea stellata.
Durante os dias, as zooxantelas abrigadas pelos corais fazem fotossíntese, enquanto à noite o próprio coral se alimenta. Ao mesmo tempo, peixes, crustáceos e tantos outros organismos aproveitam os recifes de corais para se proteger, comer, cuidar dos filhotes e dormir.
Os tubarões, por exemplo, precisam nadar sem parar para garantir a respiração, que só ocorre quando a água passa pelas guelras. Por isso eles não dormem, mas entram em estágios de descanso quando encontram locais com correntes de água constantes, muitas vezes possibilitadas pela arquitetura de corais. Na foto abaixo, os mergulhadores capturaram um tubarão-lixa (Ginglymostoma cirratum) “dormindo” apoiado nos recifes da Pedra da Risca do Meio:
A costa cearense também abriga um ecossistema peculiar, chamado banco de rodólitos. Os rodólitos são algas especializadas na captura de carbono, formando uma “carapaça” redonda de carbonato de cálcio ao redor delas. Muitas vezes, elas ficam presas a corais, mas também podem ficar soltas, literalmente rolando pelo solo marinho — por isso, em inglês, elas são chamadas de “rolling stones”, ou pedras rolantes.
Além do grande potencial de sequestro de carbono, os bancos de rodólitos unem-se aos recifes de corais como os maiores e mais diversos habitats marinhos. São justamente nesses locais onde moram as lagostas, crustáceos que vivem em tocas e frestas de formações rochosas e são almejados pela gastronomia.
Clique nos textos para conhecer o que define o mar cearense, segundo explicações do professor Marcelo Soares, do Labomar
Apesar de estarem além do campo de visão humana, os recifes e pradarias são constantemente afetados pelo que (e como) produzimos. A vida marinha conhece muito bem a poluição humana: anualmente, mais de oito milhões de toneladas de plástico são descartados no Oceano, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). De todo o lixo que chega ao mar, 80% é plástico — até 2050, a estimativa é que existirá mais plástico no Oceano do que peixes.
Afinal, a poluição será uma das principais responsáveis por matar boa parte da fauna e flora marinha. Por ano, morrem por causa dos plásticos um milhão de aves marinhas, além de cem mil mamíferos e tartarugas marinhos. A mortalidade de peixes é inumerável. Mesmo os sobreviventes não conseguem fugir dos microplásticos; são ao menos 51 trilhões de partículas de microplásticos largadas no Oceano.
É dizer que existem 500 vezes mais partículas de microplástico nos mares do que estrelas em nossa galáxia, acumulando-se nos estômagos marinhos, mas também nos úteros e corações humanos e nas nuvens.
Nem só de lixo composto por plástico prejudica-se o Oceano. A falta de saneamento básico e o escoamento de esgoto diretamente no mar contaminam a água com químicos e excesso de nutrientes. Isso sem contar os derramamentos de óleo, como ocorreu em 2019 na costa nordestina.
Um artigo publicado com pesquisadores do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) em 2020 na revista Science denunciou o impacto do óleo nos recifes de rodólitos, prejudicando a biodiversidade do habitat e desequilibrando a presença de carbono no Oceano. "O óleo está no fundo do mar e se precipita junto a essas algas, prejudicando sua função de berçário da vida marinha e de captura de carbono, pois [esses bancos] podem agir como uma floresta marinha, tendo importante função no combate a mudanças climáticas", explica o professor Marcelo Soares, do Labomar, em entrevista à Universidade Federal do Ceará (UFC).
Ao O POVO+, o biólogo também destaca outra ameaça aos bancos de rodólitos: a mineração. “Há um conflito, porque tem gente que quer explorar esses bancos para mineração. Por serem uma fonte de carbonato de cálcio, o intuito seria minerar para a agricultura e para a nutrição de animais. E o Brasil é um grande país agrícola”, comenta.
Atividades do tipo degradam diretamente o habitat de diversas espécies. Por isso, é urgente a criação e implementação de um Planejamento Espacial Marinho (PEM) brasileiro com base ecológica.
>> No episódio 3, vamos entender o que é o PEM e a Lei do Mar e em que pé andam esses instrumentos legais no Ceará e no Brasil.
Aliado a todas essas bravatas, o aquecimento global intensifica os riscos para a vida marinha. O Oceano é o maior retentor de calor da Terra, responsável por captar mais de 90% do desequilíbrio de energia provocado pelas ações humanas. Por consequência, os mares estão aquecendo rapidamente, favorecendo ondas de calor marinhas drásticas.
Em 2023, mesmo antes do El Niño, a temperatura média global da superfície do mar bateu recordes. Em abril deste ano, ela aumentou quase 0,2ºC, chegando aos 21,1ºC e superando, em 0,1ºC, a máxima registrada em março de 2016, até então o mês mais quente para os oceanos. Vale lembrar que o valor de 21,1ºC é uma média mundial: a depender da região, os termômetros podem ter marcado temperaturas ainda maiores.
No Ceará, onde a água é normalmente mais quente (entre 26ºC e 29ºC na zona superficial), os seres marinhos também sofrem com o calor. O principal indicativo das ondas de calor marinhas é o branqueamento dos corais, fenômeno que ocorre quando as microalgas simbióticas dos corais ficam impossibilitadas de fazer a fotossíntese e o coral as expulsa para tentar sobreviver. Em 2020, o mar cearense passou por mais de sete semanas de calor intenso, com temperaturas entre 29ºC e 30ºC. Para os humanos, um grau de diferença pode parecer pouco, mas basta refletir sobre a quantidade necessária de calor para aquecer toneladas de água.
Três anos depois, o biólogo Marcelo Soares alerta para uma previsão ainda mais drástica: o ano de 2024 vai ser um dos maiores branqueamentos de corais da história. A tendência no primeiro semestre será de um aumento na temperatura superior a 1,5ºC na média. “O coral até se recupera, mas em 2020 a gente começou a ver modalidades mais altas. E se tiver onda de calor todo ano, aí ele não aguenta”, diz. As últimas ondas de calor com branqueamento de corais foram registradas em 1997, 2010 e 2020. “A principal solução é frear o aquecimento global.”
Afastando-se das águas rasas e médias, dando adeus a peixes-bois e corais coloridos, agarrar-se a raias e tubarões para alcançar o próximo destino é inútil: o mar profundo cearense começa a partir dos dois mil metros, onde a pressão é excruciante, o escuro desafia os olhos habituados à luz solar e o frio queima o corpo. O confortável matiz azul fica na superfície, enquanto o abissal exibe às escuras estranhos cidadãos.
No mar profundo, é comum achar peixes transparentes, bioluminescentes e vários vermes marinhos. Há, no entanto, um grupo familiar: os equinodermos. Estrelas, ouriços, bolachas, pepinos, serpentes e lírios do mar espalham-se desde as regiões costeiras às zonas abissais, estendendo corpos invertebrados na caça por algas ou pequenos animais. Em todo o mar cearense, são 54 espécies de equinodermos registradas, muitos dos quais habitam os recifes de corais de águas frias, como são chamados os corais do mar profundo.
Por muito tempo, cientistas ao redor do mundo acreditaram que o abissal (a parte mais funda do mar profundo) era inóspito — um erro quase esperado no momento em que a medida de comparação é a humana —, quando na realidade há milhares de espécies marinhas totalmente adaptadas à vida profunda.
Aos montes, os cidadãos abissais percorrem paisagens titânicas de declives, vales e montanhas. Assim como no continente, a geomorfologia marinha dá sinais das movimentações tectônicas milenares, responsáveis por elevações quase inimagináveis. Se em terra firme a montanha mais alta do Estado é o Pico da Serra Branca (Catunda), com 1.154 metros, no mar o título vai para o Banco do Aracati, com 3,5 mil metros.
Com seus 56 km de comprimento, o Banco do Aracati é parte de uma ampla cadeia de montanhas submarinas de origem vulcânica conectadas a Fernando de Noronha (PE) e ao Atol das Rocas (RN). Apenas essa montanha serve de habitat para incontáveis espécies, desde as abissais até as da superfície: pesquisadores da UFC, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), da Universidade de São Paulo (USP), além de instituições dos Estados Unidos da América e da Alemanha formaram parceria para estudar o Banco do Aracati e compreender a biodiversidade dependente dela.
O que se sabe é que a região abriga espécies marinhas icônicas, como os espadartes, os atuns e os tubarões. Injustiçados pela mídia e retratados como vilões, os tubarões são peixes pré-históricos, existindo há mais de 450 milhões de anos, e são essenciais para o equilíbrio ecossistêmico. Por estarem no topo da cadeia alimentar, tubarões são responsáveis pelo controle populacional de várias espécies de peixes, garantindo o balanceamento em cascata de todo o bioma que ocupam.
Mais velhos que as árvores e os próprios dinossauros, eles são vestígios do passado, assim como a próxima paisagem guardada pelo mar cearense e agitado. Nem sempre tudo esteve totalmente submerso pelo Oceano; se o sertão já foi mar, também é verdade que o mar foi rio, e os paleocanais que rasgam as plataformas continentais são prova disso.
Os paleocanais são a reminiscência dos caminhos percorridos por rios pretéritos, dando pistas sobre a evolução dos sistemas fluviais da região. Dois destacam-se no Ceará, o Canal das Arabaianas e o Canal do Uruaú, cujas cavernas e rochas são lar de esponjas-do-mar, raias, meros, barracudas e cardumes de peixes. Ambas podem ser visitadas por mergulhadores, com profundidades médias de 30 metros.
No Ceará, a Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima (Sema/CE) desenvolve a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da Fauna do Ceará, por meio do programa Cientista Chefe. Já foram publicadas cinco partes da lista, das quais duas envolvem diretamente a fauna marinha: mamíferos e tartarugas. A lista de aves ameaçadas também abrange espécies marinhas.
No entanto, a lista de peixes ameaçados segue no aguardo para a publicação. De acordo com o biólogo Marcelo, cientista-chefe de Meio Ambiente até 2022, o inventário de peixes cearenses foi concluído, mas a lista de ameaçados segue sendo discutida. “A questão dos peixes é mais complexa porque envolve a questão econômica. Por exemplo, às vezes um determinado peixe está em risco de redução de população, mas ele também é muito usado economicamente. Então não é uma coisa simples de classificar”, reflete o pesquisador.
“Quando você olha os vetores que estão fazendo essa população reduzir, você acaba descobrindo essas questões econômicas e sociais. Acaba que como tudo é participativo, às vezes você tem que ter um apoio político para seguir (com a publicação)”, diz. Junto com a divulgação das listas vermelhas, o Estado idealmente já deve pensar em políticas públicas envolvendo as espécies indicadas como em risco.
Além disso, como o mar é de jurisdição federal, o governo Bolsonaro não facilitou o avanço das discussões. Ao mesmo tempo, 2023 foi de mudança de governo e gestores: “A secretária Vilma Freire até agora não retomou essa parte. Avançamos em outras coisas, como os planos estaduais de aves, anfíbios, répteis e mamíferos”, exemplifica Marcelo. Apesar da demora, o pequisador acredita que o livro vermelho de peixes ameaçados avance em 2024.
São tantas as ameaças, mesmo para os habitats mais distantes do continente, que é difícil abranger tudo em parágrafos. Além da crise climática e da poluição, a degradação antropogênica literalmente arranca filhotes de mães. No litoral leste cearense, é comum encontrar peixes-bois recém-nascidos encalhados, ainda com resquícios de cordão umbilical. Pela destruição de áreas de estuários e manguezais, as fêmeas de peixes-bois se vêem na necessidade de parir em águas mais agitadas, resultando no arraste dos neonatos para a costa.
>> No próximo episódio desta segunda temporada do especial Década do Oceano, a ser publicado no dia 21 de dezembro de 2023, contamos as histórias de Tico, Mirim e os filhotes Cora e Ponga: peixes-bois resgatados pela ONG Aquasis que lutam para voltar ao lar.
Esta é a segunda temporada da série de reportagens especiais Década do Oceano, do O POVO+. A primeira temporada aborda, em três episódios, a importância do Oceano para a vida humana, as ameaças ao ecossistema marinho e como as mudanças no mar são sentidas por comunidades tradicionais. Confira as reportagens no site Década do Oceano.
Essenciais à vida no Planeta, os oceanos entram na pauta de alerta e a ONU instituiu a Década do Oceano, que começa em 2021