Moradora de Icó (CE) de 60 anos, ficou conhecida nas redes como Vovó das Comidas. Em vídeos no TikTok para os mais de 230 mil seguidores, a vovó oferecia ao “neto”, chamado Pedrinho, todo tipo de guloseimas: Coca-Cola, sorvete, chocolate, pamonha, maionese…
Nos comentários, seguidores acham uma beleza. Entendem que Pedrinho está feliz, sendo bem tratado e enchendo a pança com comidas deliciosas. O problema é que Pedrinho é um macaco-prego (Sapajus libidinosus) oriundo do tráfico de animais, e a dieta da vovó resultou em desnutrição e colesterol alto.
O macaco-prego foi apreendido pelo Batalhão de Polícia do Meio Ambiente do Ceará no final de fevereiro, após confirmar que o suposto documento de compra legal do animal era falso.
No Brasil, há somente um criadouro legal de macacos-pregos e saguis. Ele está localizado em Santa Catarina, mas a nota fiscal de Avani indicava o nome de um suposto criadouro do Rio de Janeiro. No entanto, a chave de acesso da nota fiscal era de Quixelô (CE).
Segundo a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS/CE), a ação de apreensão e resgate ocorreu após uma denúncia aos policiais militares, informando que alguém na região estaria “criando e comercializando ilegalmente animais silvestres”.
Pedrinho foi recebido pela ONG BiodiverSe, do Cariri cearense, e mais tarde encaminhado ao Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (Cetras) Tangara, do Ibama de Pernambuco, onde passou por exames médicos.
O laudo emitido pelo órgão no dia 28 de fevereiro de 2025 descreve: “Peso: 1,548 Kg. Em exame físico, foi observado baixo escore corporal e desidratação de 8% com perda de elasticidade cutânea. Em exame bioquímico sérico, foi observado alta taxa de Triglicerídeos. HDL e VLDL aumentados.”
Significa que Pedrinho, por mais bem alimentado que parecesse ao público, estava desnutrido, desidratado e com colesterol alto.
Além das imagens de Pedro na mesa de exames, demonstrando as condições da pele, pelos, mãos e arcada dentária, o laudo também anexou prints dos vídeos da Vovó das Comidas. Em uma delas, o animal está com as mãos e a boca sujas de chantilly. Em outra, ela vira uma lata de Coca-Cola na boca de Pedro.
“Em achados de patologia clínica, a hipertrigliceridemia está associada à má alimentação caracterizada pelo consumo de alimentos altamente industrializados e de alto teor calórico, e cujos riscos são AVC e doenças cardiovasculares”, descreve o documento médico.
O conjunto de provas materiais e os exames físicos indicavam que Pedrinho tinha suas liberdades feridas. “Deste modo, conclui-se que o indivíduo estava sob condições de maus-tratos”, determina a médica veterinária responsável.
As cinco liberdades do bem-estar animal
A história de Pedrinho não é um caso isolado. É muito comum macacos resgatados de cativeiros domésticos chegarem aos centros de triagem e reabilitação com desnutrição, colesterol alto e diabetes.
“Muitas vezes o pessoal tem uma visão debilitada do que são os maus-tratos”, reflete o médico veterinário Carlos Vinícius Santana, associado à ONG BiodiverSe e pós-graduando em clínica médica e cirurgia de animais silvestres pelo instituto Ates. “A alimentação é uma das bases da saúde do indivíduo.”
Segundo ele, é principalmente a partir dos anos 2000 que a literatura sobre diabetes e alto colesterol em macacos ganha mais força. Não apenas pelo estudo de silvestres tratados como pets, mas também de primatas que vivem em parques ecológicos e têm contato com humanos.
“E aí o pessoal chega (nos parques ecológicos, vê um macaco) acha bonitinho e dá uma bolacha, um salgadinho, alguma coisa. Então, a gente tem estudos até voltados para essa população de animais, e aí você consegue ver as alterações que são encontradas nesses animais”, descreve Carlos.
Foi o que se percebeu em Foz do Iguaçu (PR), no Parque Natural Municipal do Bosque dos Macacos. Pesquisadores da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (Unila) acompanharam um grupo de 18 macacos-prego (Sapajus sp.) da unidade de conservação, rodeada por casas e construções, para avaliar a dieta deles.
Após 556 horas de observação, os pesquisadores identificaram que os macacos-prego consumiam uma taxa maior de comidas encontradas em ambiente humano (57,5%) em detrimento das encontradas nas florestas (42,4%), “a ponto de serem classificados como dependentes do ambiente antrópico”.
A dieta do grupo consistia principalmente em plantas (69,8%) e em matéria animal (20,6%), mas os alimentos processados ainda corresponderam a 9,5% das comidas. Os resultados foram publicados em junho de 2022 na revista científica American Journal of Primatology.
O consumo de alimentos ultraprocessados — como doces, refrigerantes e biscoitos — foi responsável por aproximadamente 57 mil mortes prematuras de adultos em 2019. É o que indica pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), publicada na revista científica American Journal of Preventive Medicine em janeiro de 2023.
Essas são mortes evitáveis a partir da redução de consumo de ultraprocessados em favor de uma alimentação saudável e balanceada.
Se esse é o efeito em seres humanos, que desenvolveram gradualmente a capacidade fisiológica de digerir essas comidas, imagine o impacto dessa dieta em animais não adaptados.
“Os alimentos ultraprocessados têm grande quantidade de carboidratos e de gorduras. Dependendo da espécie, o organismo animal não vai estar adaptado para digerir aqueles alimentos”, explica o médico veterinário.
“Por exemplo, uma espécie com hábitos mais herbívoros não está acostumada a receber essa quantidade de carboidratos, e aí isso vai causar uma
No caso dos primatas, é quando ocorre o desenvolvimento de doenças de seres humanos, como o sobrepeso, a diabetes e o colesterol alto. Tudo acompanhado da desnutrição.
Aves e répteis silvestres em ambientes domésticos também sofrem os maus-tratos da alimentação inadequada. De acordo com Carlos, é muito comum receber jabutis (das espécies Chelonoidis carbonaria e Chelonoidis denticulata) com piramidismo.
O piramidismo é uma doença metabólica que causa deformação no casco de jabutis. Ela é provocada pela alimentação inadequada, com excesso de proteínas, cálcio, gordura e fósforo.
“(As pessoas pegam os jabutis) e acabam dando de tudo que tem na casa, o almoço vai para os animais: arroz, carne, feijão”, comenta o médico veterinário. “Ele é um animal onívoro, mas com predileções herbívoras. Então imagina o que acontece com um animal desse que vai se alimentando diariamente de arroz, frango…”
Há situações críticas nas quais o animal, em crescimento, fica “preso” no casco deformado que permanece do mesmo tamanho. Nisso, os órgãos e a coluna são comprimidos. “A gente já pegou animais que não conseguiam mais andar, então ficou totalmente inviável para gente fazer a soltura deles”, lamenta Carlos.
Já para as aves, uma doença metabólica recorrente é a hepatite. Papagaios são geralmente alimentados por humanos com uma quantidade inadequada de sementes de girassol, um grão muito gorduroso.
Ocorre que papagaios têm o paladar muito desenvolvido e realmente acham as sementes de girassol gostosas. No entanto, o alto teor de gordura do grão provoca a doença do fígado gorduroso, chamada de lipidose hepática. As aves ficam com manchas amareladas nas penas.
O tratamento em boa parte dos casos é a reeducação alimentar: “É como uma criança que está reaprendendo a comer. Varia de indivíduo para indivíduo, mas acontece muito de alguns animais não conseguirem aceitar as comidas naturais”, cita Carlos.
“Com certeza, esses animais sentem dor (ao desenvolver essas doenças)”, reforça o médico veterinário. “Às vezes, nós mesmos é que não conseguimos detectar a expressão (de dor) daquele animal, né? Os répteis, por exemplo, é muito difícil para a gente identificar visualmente que ele está com dor.”
Ao pegar animais silvestres para cuidar — o que é crime ambiental —, mesmo pessoas bem intencionadas maltratam os bichos. “As pessoas acabam espelhando os seus comportamentos e hábitos no animal”, reflete Carlos, mas o melhor cenário para um animal silvestre sempre será a vida livre.
Perguntei ao médico veterinário qual era a sensação de assistir aos vídeos de macacos-prego comendo biscoitos e bebendo Coca-Cola, sempre com comentários aplaudindo a cena. A resposta foi certeira: agonia.
“Por mais que a gente já tenha essa vivência (de receber animais que sofrem maus-tratos), toda vez dá aquela sensação de agonia. Você fica pensando: ‘Como é que a pessoa consegue fazer isso e achar normal?’. É uma conduta totalmente inadequada, que vai fazer mal tanto para ela, quanto para o animal… Então, para mim, é bem difícil conseguir assistir esses vídeos.”
Assista no OP+ ao vídeo "Operação Papagaio: Comércio ilegal de animais nas feiras de Fortaleza"
Confira o caderno especial Operação Papagaio
Publicado em março de 2015, o caderno especial Operação Papagaio é resultado da apuração do jornalista Demitri Túlio, que, em jornada de jornalismo investigativo, acompanhou, anonimamente, por dois anos a rotina de um traficante de aves da fauna brasileira. O especial foi finalista do Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria nacional Criação Gráfica 2015. Clique nas setas para navegar pelas páginas do caderno especial
No YouTube, maltratar animais é lucrativo: após analisarem 411 vídeos no YouTube com algum tipo de maus-tratos, pesquisadores brasileiros descobriram que o mercado de crueldade animal é rentável para produtores de conteúdos e, por vezes, é financiado por empresas comprometidas com a causa animal.
Por que compartilhar memes de macacos estimula o tráfico?: entenda por que a publicação e compartilhamento de vídeos e memes de macacos com roupas, comendo doces e convivendo com humanos como um animal de estimação estimula a compra e venda ilegal.
O esforço do Ceará para desmantelar o tráfico de animais: apesar de ser tipificado pela Lei de Crimes Ambientais, o tráfico de animais silvestres tem penas baixas para a real periculosidade do crime. Órgãos públicos e instituições do Ceará criam uma rede de inteligência investigativa e técnica para resgatar vítimas do tráfico e prender as quadrilhas criminosas.