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Desnutrição, diabetes e colesterol alto: assim sofrem os macacos "pets"
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Reportagem Especial

Desnutrição, diabetes e colesterol alto: assim sofrem os macacos "pets"

Além dos impactos psicológicos e sociais, macacos tratados como "pets" são vítimas da desnutrição e de doenças adquiridas por alimentação inadequada, como diabetes e colesterol alto — o que também configura maus-tratos

Desnutrição, diabetes e colesterol alto: assim sofrem os macacos "pets"

Além dos impactos psicológicos e sociais, macacos tratados como "pets" são vítimas da desnutrição e de doenças adquiridas por alimentação inadequada, como diabetes e colesterol alto — o que também configura maus-tratos
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Moradora de Icó (CE) de 60 anos, ficou conhecida nas redes como Vovó das Comidas. Em vídeos no TikTok para os mais de 230 mil seguidores, a vovó oferecia ao “neto”, chamado Pedrinho, todo tipo de guloseimas: Coca-Cola, sorvete, chocolate, pamonha, maionese…

Nos comentários, seguidores acham uma beleza. Entendem que Pedrinho está feliz, sendo bem tratado e enchendo a pança com comidas deliciosas. O problema é que Pedrinho é um macaco-prego (Sapajus libidinosus) oriundo do tráfico de animais, e a dieta da vovó resultou em desnutrição e colesterol alto.

Em vídeos compartilhados no TikTok, o macaco-prego é alimentado com Coca-Cola, sorvete, maionese e outros ultraprocessados(Foto: Reprodução / TikTok)
Foto: Reprodução / TikTok Em vídeos compartilhados no TikTok, o macaco-prego é alimentado com Coca-Cola, sorvete, maionese e outros ultraprocessados

O macaco-prego foi apreendido pelo Batalhão de Polícia do Meio Ambiente do Ceará no final de fevereiro, após confirmar que o suposto documento de compra legal do animal era falso.

No Brasil, há somente um criadouro legal de macacos-pregos e saguis. Ele está localizado em Santa Catarina, mas a nota fiscal da cearense indicava o nome de um suposto criadouro do Rio de Janeiro. No entanto, a chave de acesso da nota fiscal era de Quixelô (CE).

Segundo a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS/CE), a ação de apreensão e resgate ocorreu após uma denúncia aos policiais militares, informando que alguém na região estaria “criando e comercializando ilegalmente animais silvestres”.

O macaco-prego foi resgatado em Icó, no interior do Ceará, e encaminhado ao Ibama de Pernambuco(Foto: SSPDS / Divulgação)
Foto: SSPDS / Divulgação O macaco-prego foi resgatado em Icó, no interior do Ceará, e encaminhado ao Ibama de Pernambuco

Pedrinho foi recebido pela ONG BiodiverSe, do Cariri cearense, e mais tarde encaminhado ao Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (Cetras) Tangara, do Ibama de Pernambuco, onde passou por exames médicos.

O laudo emitido pelo órgão no dia 28 de fevereiro de 2025 descreve: “Peso: 1,548 Kg. Em exame físico, foi observado baixo escore corporal e desidratação de 8% com perda de elasticidade cutânea. Em exame bioquímico sérico, foi observado alta taxa de Triglicerídeos. HDL e VLDL aumentados.”

Significa que Pedrinho, por mais bem alimentado que parecesse ao público, estava desnutrido, desidratado e com colesterol alto.

Além das imagens de Pedro na mesa de exames, demonstrando as condições da pele, pelos, mãos e arcada dentária, o laudo também anexou prints dos vídeos da Vovó das Comidas. Em uma delas, o animal está com as mãos e a boca sujas de chantilly. Em outra, ela vira uma lata de Coca-Cola na boca de Pedro.

“Em achados de patologia clínica, a hipertrigliceridemia está associada à má alimentação caracterizada pelo consumo de alimentos altamente industrializados e de alto teor calórico, e cujos riscos são AVC e doenças cardiovasculares”, descreve o documento médico.

O conjunto de provas materiais e os exames físicos indicavam que Pedrinho tinha suas liberdades feridas. “Deste modo, conclui-se que o indivíduo estava sob condições de maus-tratos”, determina a médica veterinária responsável.

 

As cinco liberdades do bem-estar animal

 

A história de Pedrinho não é um caso isolado. É muito comum macacos resgatados de cativeiros domésticos chegarem aos centros de triagem e reabilitação com desnutrição, colesterol alto e diabetes.

“Muitas vezes o pessoal tem uma visão limitada do que são os maus-tratos”, reflete o médico veterinário Carlos Vinícius Santana, associado à ONG BiodiverSe e pós-graduando em clínica médica e cirurgia de animais silvestres pelo instituto Ates. “A alimentação é uma das bases da saúde do indivíduo.”

Segundo ele, é principalmente a partir dos anos 2000 que a literatura sobre diabetes e alto colesterol em macacos ganha mais força. Não apenas pelo estudo de silvestres tratados como pets, mas também de primatas que vivem em parques ecológicos e têm contato com humanos.

“E aí o pessoal chega (nos parques ecológicos, vê um macaco) acha bonitinho e dá uma bolacha, um salgadinho, alguma coisa. Então, a gente tem estudos até voltados para essa população de animais, e aí você consegue ver as alterações que são encontradas nesses animais”, descreve Carlos.

Em vídeos compartilhados no TikTok, o macaco-prego é alimentado com Coca-Cola, sorvete, maionese e outros ultraprocessados(Foto: Reprodução / TikTok)
Foto: Reprodução / TikTok Em vídeos compartilhados no TikTok, o macaco-prego é alimentado com Coca-Cola, sorvete, maionese e outros ultraprocessados

Foi o que se percebeu em Foz do Iguaçu (PR), no Parque Natural Municipal do Bosque dos Macacos. Pesquisadores da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (Unila) acompanharam um grupo de 18 macacos-prego (Sapajus sp.) da unidade de conservação, rodeada por casas e construções, para avaliar a dieta deles.

Após 556 horas de observação, os pesquisadores identificaram que os macacos-prego consumiam uma taxa maior de comidas encontradas em ambiente humano (57,5%) em detrimento das encontradas nas florestas (42,4%), “a ponto de serem classificados como dependentes do ambiente antrópico”.

A dieta do grupo consistia principalmente em plantas (69,8%) e em matéria animal (20,6%), mas os alimentos processados ainda corresponderam a 9,5% das comidas. Os resultados foram publicados em junho de 2022 na revista científica American Journal of Primatology.

 

 

Se humanos podem, por que outros primatas não?

O consumo de alimentos ultraprocessados — como doces, refrigerantes e biscoitos — foi responsável por aproximadamente 57 mil mortes prematuras de adultos em 2019. É o que indica pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), publicada na revista científica American Journal of Preventive Medicine em janeiro de 2023.

Essas são mortes evitáveis a partir da redução de consumo de ultraprocessados em favor de uma alimentação saudável e balanceada.

Se esse é o efeito em seres humanos, que desenvolveram gradualmente a capacidade fisiológica de digerir essas comidas, imagine o impacto dessa dieta em animais não adaptados.

“Os alimentos ultraprocessados têm grande quantidade de carboidratos e de gorduras. Dependendo da espécie, o organismo animal não vai estar adaptado para digerir aqueles alimentos”, explica o médico veterinário.

“Por exemplo, uma espécie com hábitos mais herbívoros não está acostumada a receber essa quantidade de carboidratos, e aí isso vai causar uma dibiose "Desequilíbrio na microbiota intestinal, ou seja, no conjunto de bactérias que vivem no trato gastrointestinal." no animal e pode levar à baixa da imunidade, provocando algumas doenças”, descreve.

No caso dos primatas, é quando ocorre o desenvolvimento de doenças de seres humanos, como o sobrepeso, a diabetes e o colesterol alto. Tudo acompanhado da desnutrição.

 

 

Má alimentação também adoece outros grupos de animais

Aves e répteis silvestres em ambientes domésticos também sofrem os maus-tratos da alimentação inadequada. De acordo com Carlos, é muito comum receber jabutis (das espécies Chelonoidis carbonaria e Chelonoidis denticulata) com piramidismo.

O piramidismo é uma doença metabólica que causa deformação no casco de jabutis. Ela é provocada pela alimentação inadequada, com excesso de proteínas, cálcio, gordura e fósforo.

Na foto, uma tartaruga mediterrânea (Testudo hermanni) com piramidismo. Normalmente, o casco de tartarugas e jabutis são mais "lisos", mas com o piramidismo ficam cheias de elevações anormais(Foto: Kratsjovic / Domínio Público)
Foto: Kratsjovic / Domínio Público Na foto, uma tartaruga mediterrânea (Testudo hermanni) com piramidismo. Normalmente, o casco de tartarugas e jabutis são mais "lisos", mas com o piramidismo ficam cheias de elevações anormais

“(As pessoas pegam os jabutis) e acabam dando de tudo que tem na casa, o almoço vai para os animais: arroz, carne, feijão”, comenta o médico veterinário. “Ele é um animal onívoro, mas com predileções herbívoras. Então imagina o que acontece com um animal desse que vai se alimentando diariamente de arroz, frango…”

Há situações críticas nas quais o animal, em crescimento, fica “preso” no casco deformado que permanece do mesmo tamanho. Nisso, os órgãos e a coluna são comprimidos. “A gente já pegou animais que não conseguiam mais andar, então ficou totalmente inviável para gente fazer a soltura deles”, lamenta Carlos.

Já para as aves, uma doença metabólica recorrente é a hepatite. Papagaios são geralmente alimentados por humanos com uma quantidade inadequada de sementes de girassol, um grão muito gorduroso.

O processo de reeducação alimentar difere entre os indivíduos, mas entre os papagaios há um desafio a mais: eles têm o paladar muito desenvolvido. Na foto, papagaios em reabilitação no Instituto Pró-Silvestre(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR O processo de reeducação alimentar difere entre os indivíduos, mas entre os papagaios há um desafio a mais: eles têm o paladar muito desenvolvido. Na foto, papagaios em reabilitação no Instituto Pró-Silvestre

Ocorre que papagaios têm o paladar muito desenvolvido e realmente acham as sementes de girassol gostosas. No entanto, o alto teor de gordura do grão provoca a doença do fígado gorduroso, chamada de lipidose hepática. As aves ficam com manchas amareladas nas penas.

O tratamento em boa parte dos casos é a reeducação alimentar: “É como uma criança que está reaprendendo a comer. Varia de indivíduo para indivíduo, mas acontece muito de alguns animais não conseguirem aceitar as comidas naturais”, cita Carlos.

“Com certeza, esses animais sentem dor (ao desenvolver essas doenças)”, reforça o médico veterinário. “Às vezes, nós mesmos é que não conseguimos detectar a expressão (de dor) daquele animal, né? Os répteis, por exemplo, é muito difícil para a gente identificar visualmente que ele está com dor.”

Ao pegar animais silvestres para cuidar — o que é crime ambiental —, mesmo pessoas bem intencionadas maltratam os bichos. “As pessoas acabam espelhando os seus comportamentos e hábitos no animal”, reflete Carlos, mas o melhor cenário para um animal silvestre sempre será a vida livre.

Perguntei ao médico veterinário qual era a sensação de assistir aos vídeos de macacos-prego comendo biscoitos e bebendo Coca-Cola, sempre com comentários aplaudindo a cena. A resposta foi certeira: agonia.

Saguis também costumam ser traficados para serem comprados como pets. Na imagem, um sagui em reabilitação no Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (Cetras) do Ibama Ceará(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Saguis também costumam ser traficados para serem comprados como pets. Na imagem, um sagui em reabilitação no Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (Cetras) do Ibama Ceará

“Por mais que a gente já tenha essa vivência (de receber animais que sofrem maus-tratos), toda vez dá aquela sensação de agonia. Você fica pensando: ‘Como é que a pessoa consegue fazer isso e achar normal?’. É uma conduta totalmente inadequada, que vai fazer mal tanto para ela, quanto para o animal… Então, para mim, é bem difícil conseguir assistir esses vídeos.”

 

   

Assista no OP+ ao vídeo "Operação Papagaio: Comércio ilegal de animais nas feiras de Fortaleza"

 

 

Confira o caderno especial Operação Papagaio 

Publicado em março de 2015, o caderno especial Operação Papagaio é resultado da apuração do jornalista Demitri Túlio, que, em jornada de jornalismo investigativo, acompanhou, anonimamente, por dois anos a rotina de um traficante de aves da fauna brasileira. O especial foi finalista do Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria nacional Criação Gráfica 2015. Clique nas setas para navegar pelas páginas do caderno especial

 

 

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No YouTube, maltratar animais é lucrativo: após analisarem 411 vídeos no YouTube com algum tipo de maus-tratos, pesquisadores brasileiros descobriram que o mercado de crueldade animal é rentável para produtores de conteúdos e, por vezes, é financiado por empresas comprometidas com a causa animal.

Por que compartilhar memes de macacos estimula o tráfico?: entenda por que a publicação e compartilhamento de vídeos e memes de macacos com roupas, comendo doces e convivendo com humanos como um animal de estimação estimula a compra e venda ilegal.

O esforço do Ceará para desmantelar o tráfico de animais: apesar de ser tipificado pela Lei de Crimes Ambientais, o tráfico de animais silvestres tem penas baixas para a real periculosidade do crime. Órgãos públicos e instituições do Ceará criam uma rede de inteligência investigativa e técnica para resgatar vítimas do tráfico e prender as quadrilhas criminosas. 

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