Engaiolado, uma vítima. Esticando as mãos entre as grades, o macaco-prego (Sapajus) procura a atenção humana que foi ensinado a recorrer desde pequeno.
Até parece bonitinho, mas é o sintoma de uma história trágica no início, meio e fim: ele é um dos milhares de indivíduos retirados da própria mãe, quase sempre assassinada, pelo tráfico de animais silvestres.
Tudo para ser vendido ilegalmente e viver uma vida afastada dos direitos estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 1978 — os de uma vida digna, livre no seu próprio ambiente natural.
O tráfico de animais é o terceiro mercado ilegal mais lucrativo do mundo, atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. Só no Brasil, ele movimenta pelo menos US$ 2 bilhões, entre US$ 10 bilhões mundiais, por ano.
Como país mais biodiverso do mundo, o Brasil é vítima fulcral do contrabando. De acordo com a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres
Espalhado por 162 países e territórios e afetando cerca de 4 mil espécies de flora e fauna mundialmente, também não há indícios de redução substancial nos números de tráfico. É o que indica o Relatório Global sobre a Vida Selvagem e os Crimes Florestais 2024, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
Em geral, estima-se que de 10 animais traficados, nove morrem na captura ou no transporte. “Eu costumo dizer mais: de 10 animais traficados, nove morrem e um sai traumatizado”, complementa a primatóloga Vitória Nunes, do Instituto Pró-Silvestre.
O nosso jovem macaco-prego é um desses sobreviventes traumatizados. Ele está nos primeiros estágios de reabilitação no Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ceará (Cetras-CE), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Na gaiola com diversos frutos à disposição, ele balança a cabeça aleatoriamente. Ao levantar-se para caminhar, ao descascar a comida… É um dos tiques mais comuns observados por biólogos em macacos que passaram por situações de estresse e de confinamento.
Para os olhos leigos, parece uma mania engraçada. Foi o que achamos, o repórter fotográfico Samuel Setubal e eu, enquanto acompanhávamos o primata; até o alerta do analista ambiental do Cetras-CE Alberto Klefasz.
“É um comportamento estereotipado”, define o biólogo. “O mais típico é o girar de cabeça. Tem também a autocatação, que é quando ele fica se coçando (o que pode gerar feridas), tem a masturbação e tem o autoengancho”, elenca.
O autoengancho ocorre em macacos que passaram por situações especialmente traumáticas. Nesses casos, o animal enrola-se com o próprio rabo, em uma espécie de posição fetal, e isola-se do ambiente.
Além das estereotipias, Alberto explica que os animais de apreensão podem chegar bem magros, com o estado de saúde “debilitado e crítico”. Em macacos tratados como pets, quando não desnutridos, é comum estarem muito gordos e diabéticos.
Eles também tendem a apresentar marcas de corrente e cordas. “Macacos são muito hiperativos, curiosos e inteligentes. Por isso eles tendem a ser presos em gaiola ou em correntes”, lamenta a primatóloga Vitória Nunes.
“As pessoas compram eles filhotinhos, e os filhotes ficam nas costas das mães até os dois anos. Aí o tráfico mata a mãe”, descreve. Nesse período, eles são mais fáceis de manejar, não à toa é mais comum ver filhotes em vídeos, gifs e figurinhas nas redes sociais.
No entanto, à medida que eles crescem e atingem a maturidade sexual, o cenário muda. “Macacos são muito ágeis e tendem a quebrar as gaiolas, e aí vêm os castigos. As pessoas acham que vão adestrar”, diz a especialista.
Os macacos, principalmente os pregos e os saguis (Callithrix), são o terceiro grupo mais traficado no Ceará. Em segundo lugar, répteis e anfíbios. Em primeiro, as aves.
Somente entre 2015 e 2022, o Cetras-CE recebeu 30.565 animais silvestres apreendidos, em sua maioria, do tráfico. Esses são apenas os que foram resgatados pelos órgãos ambientais. O número, portanto, não dá conta da real dimensão de vidas sequestradas e perdidas pelo comércio ilegal.
A apreensão desses animais é só o primeiro passo de uma longa operação para combater o tráfico de animais silvestres.
Ibama, Ministério Público do Ceará (MPCE), Batalhão de Polícia Militar Ambiental da Polícia Militar (BPMA), Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente da Polícia Civil (DPMA), Secretaria de Proteção Animal do Ceará (Sepa) e Instituto Pró-Silvestre (IPS) formam uma teia de inteligência policial, ambiental e técnica para resguardar os direitos do patrimônio brasileiro, uma fauna viva e que também sente dor.
>> Gosta de ler sobre meio ambiente? Acompanhe nossos colunistas: Catalina Leite (meio ambiente e ciência), Fábio Angeoletto (ecologia) e Eliziane Alencar (veganismo).
Por muito tempo, o Ibama e o DPMA articularam operações de apreensão de animais em feiras livres, onde animais silvestres eram, e ainda são, vendidos sem cerimônias.
“Tradicionalmente, a repressão era a polícia militar fazendo batida nas feiras com meia dúzia de gaiolas. Mas isso era enxugar gelo”, define Marcus Amorim, promotor de Justiça do Ministério Público do Ceará (MPCE), especializado em crimes ambientais.
Desde 2022, o MPCE e o DPMA formam a Operação Fauna Livre para combater o tráfico na raiz. “O Ceará é uma rota de tráfico. Estamos fazendo um trabalho de inteligência mais aprofundada para o levantamento de informações”, explica Marcus.
A ideia é chegar até os “cabeças” do tráfico e desarticular a captura e venda desde o começo. Em dois anos de operações e pelo menos dez fases, os órgãos já conseguiram prender dois chefes de quadrilha, responsáveis por buscar animais silvestres em outros estados e, então, anunciá-los em plataformas digitais.
Especialmente durante a pandemia de Covid-19, as redes sociais começaram a substituir as compras presenciais em feiras por transações digitais. O Facebook e a OLX são as principais plataformas utilizadas pelos traficantes.
“Na pandemia, as pessoas compraram muitos pets. E não basta ter um cãozinho fofo, é preciso um animal silvestre. Quão mais diferente o animal, melhor”, descreve o promotor.
Uma busca rápida no Facebook revela grupos públicos explicitamente voltados para a venda de animais, com destaque às aves. Em poucos minutos, encontramos aves das espécies galos-de-campina (Paroaria coronata), bicudo-azulão (Cianoloxya brissonii) e fradinho (Sporophila bouvreuil) ofertadas por, no mínimo, R$ 500.
Entre postagens de perfis reais e anônimos, aves são expostas em fotos e vídeos comprovando a cantoria. Em um dos grupos cearenses, também registramos a venda de um casal de tatus-peba (Euphractus sexcinctus) por R$ 300.
Já um grupo do Rio de Janeiro é mais escrachado. Na capa, um jacaré albino. Mais abaixo, a plataforma indica que a página criada em 25 de setembro de 2024 tem 153 membros.
A postagem principal elenca os preços: um casal de jacaré com 70 centímetros, R$ 3 mil; um casal de jacaré filhote, R$ 1,5 mil; uma paca grande, R$ 2,5 mil; uma jiboia grande, R$ 4 mil. Um casal de saguis custaria R$ 2,5 mil. Nos comentários, usuários perguntam: “Tem iguana”, “Bom dia! Tem gralha azul para vender?”.
Enquanto as aves costumam ser almejadas pela beleza e pelo canto, outros grupos animais são procurados por tendências nas redes sociais.
“Os macacos são muito procurados pelo tráfico principalmente pela exposição deles nas redes sociais”, exemplifica Alberto. Constantemente compartilhados em figurinhas no WhatsApp vestindo roupinhas e com trejeitos considerados pelas pessoas como fofos, as imagens estimulam o público a procurar por macacos como pets — sem saber que os animais nas imagens estão sofrendo maus-tratos.
No Brasil, há apenas um criadouro de primatas autorizado pelo Ibama, localizado no interior de Santa Catarina. Lá, os macacos podem custar até R$ 60 mil e saem com microchip, requisito obrigatório.
Com a constante veiculação da imagem desses primatas como “pets”, o tráfico coopta pessoas que desejam comprar um macaco por vias mais fáceis e baratas. Nesse caso, o comprador também comete crime.
O artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais indica que a pena por “matar, perseguir, caçar, apanhar e utilizar espécimes da fauna silvestre sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente” é de detenção de seis meses a um ano, com multa.
Apesar da legislação ambiental prever o crime, a pena tem se mostrado fraca para desestimular os traficantes. “Essa é uma lei que está desconectada da realidade do tráfico”, pontua o promotor.
A desconexão ocorre por vários motivos. Primeiro, porque não há distinção entre caçador, traficante e comprador; depois, o crime é considerado de “menor potencial ofensivo”. Consequentemente, a pena é muito baixa.
“Ou seja, o tráfico de animais é um negócio altamente lucrativo, com risco baixíssimo e investimento quase zero”, define Marcus Amorim. Mesmo quando os traficantes são capturados, os valores da multa e da fiança são irrisórios considerando o lucro do mercado.
Com a Operação Fauna Livre, o MPCE e o DPMA mudaram a estratégia de enquadramento dos suspeitos. Além do crime de tráfico, as investigações trabalham para agregar mais delitos na denúncia, como associação criminosa (formação de quadrilha), lavagem de dinheiro e maus-tratos.
“Com a associação, já não dá para fazer acordos (com a Justiça)”, explica o promotor. Para isso, investiga-se a vida financeira dos suspeitos, os vínculos entre os envolvidos e analisam-se as mensagens coletadas em aparelhos celulares apreendidos.
“Alguns quebram os celulares na hora da prisão, porque eles sabem que o tesouro está ali”, descreve Marcus. “Tudo está interligado, mas nas operações penais vai o processo um a um. Nós temos também focado nas pessoas que ajudam a vender os animais. Aí também é formação de quadrilha, porque essa pessoa tira uma comissão.”
“Nós já conseguimos apreender veículos, bloquear contas bancárias, sequestrar valores. A gente pode dizer que é um dado muito bom”, analisa o delegado Wilson Camelo, titular da DPMA.
De acordo com o delegado, os presos preventivamente são dois líderes de uma quadrilha especializada em tráfico de animais silvestres: Marcelo Costa da Silva, vulgo “Marcelo Papagaio”, e Francisco Moreira Garcez, vulgo “Malandro”.
Da mesma quadrilha, o MPCE também acusou Francisco Lardivan Gomes da Conceição (“Gabigol”), Luiz John Lennon Silva Matos, José Isaías da Silva Filho (“Magrão”), Danilo Pereira da Silva (“Skol”) e Lincoln Rocha Mendes. Lincolin foi preso em flagrante, em julho de 2022, por manter cerca de 240 pássaros em cativeiro.
A estratégia da Operação Fauna Livre tem se mostrado tão eficiente que foi reconhecida e recomendada como boa prática pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Segundo o promotor Marcus Amorim, é dizer que o DPMA e o MPCE “saíram do lugar comum” e abordaram o tráfico de animais silvestres por sua complexidade.
Enquanto o arcabouço legal brasileiro demora para atender penalmente a real periculosidade do comércio ilegal de animais, os órgãos jurídicos e de fiscalização dão um “jeitinho” para enquadrar as associações criminosas.
“A gente costuma dizer que para trabalhar aqui você só precisa gostar de animal”, reflete o delegado Wilson Camelo. Se de um lado os criminosos organizam-se para retirar animais da natureza, do outro os órgãos e instituições ambientalistas formam redes para resgatar, reabilitar e libertar os sobreviventes do tráfico.
Assista ao vídeo que acompanhou o especial do O POVO Operação Papagaio, do jornalista Demitri Túlio. Durante dois anos, o então repórter especial acompanhou um traficante de papagaios em feiras-livres de Fortaleza
"No próximo episódio, conheça o processo de reabilitação e soltura de aves e outros animais, promovido pelo Cetas-CE e pelo Instituto Pró-Silvestre."