O tráfico só é verdadeiramente combatido quando os animais alcançam o direito à segunda chance. Naquela gaiola próxima à quarentena do Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ceará (Cetras-CE), nosso jovem macaco-prego (Sapajus) vive o começo de um longo processo de reabilitação.
Como é o caso de alguns primatas que passam muito tempo em ambientes domésticos, ele está muito “humanizado” e tem dificuldade de reconhecer outros macacos-prego como da mesma espécie. Se macacos entendem quem são, este em específico desconhece a própria identidade.
Assim como algumas aves almejadas pelo tráfico, os primatas vivem em grupos e são muito inteligentes. Eles dependem da formação de uma família para sobreviverem em vida livre, o que demanda dos técnicos e tratadores do Cetras-CE e do Instituto Pró-Silvestres (IPS) muita técnica e observação para formar os bandos ideais.
“O grupo é fundamental para a sobrevivência deles, cada um tem seu papel”, explica Alberto Klefasz, analista ambiental do Cetras-CE. “Se os animais forem muito mansos, nós não conseguimos devolver para a natureza. Por isso o tempo de reabilitação varia muito. Alguns animais chegam com o comportamento muito alterado”, diz.
Em geral, o tempo médio de estadia de um macaco em cativeiro varia de seis meses a um ano. No caso do jovem macaco-prego, ele passará por várias etapas até encontrar a família com quem descobrirá a vida em liberdade.
O primeiro passo é apresentá-lo a um grupo formado. Para isso, ele é colocado no ambiente do bando, isolado por uma gaiola. “Todo primata é um animal muito agressivo, então precisamos ser cuidadosos”, instrui Alberto.
Depois de um tempo, após observação dos tratadores, técnicos e biólogos, o animal é solto para analisar a reação do grupo. Se positiva, o macaco permanece no recinto para aprender a conviver com os demais. Se negativa, o processo é retomado com outros indivíduos. “É um processo muito dinâmico”, resume o analista ambiental.
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No final de 2024, o fotojornalista Samuel Setubal e eu acompanhamos uma manhã de trabalho no Cetras-CE. Na ocasião, assistimos à transferência de duas fêmeas e um macho de macacos-prego sendo levados para um novo grupo no recinto do IPS. Lá, estarão prontos para uma soltura.
O processo foi rápido e ágil. Com as caixas de transporte bem acomodadas na caminhonete, o tratamento ocorreu cedo, às 8h, para aproveitar o frescor da manhã. Os animais são transportados cuidadosamente e sem muita enrolação — o objetivo é evitar desconfortos e estresses.
“Toda soltura de macaco-prego é experimental”, comenta a primatóloga Vitória Nunes, do IPS. Segundo ela, ainda há muito medo entre os biólogos em realizar solturas de animais vítimas do tráfico, especialmente aqueles com mudanças comportamentais ou com estereotipias, pela incerteza da influência deste animal no ecossistema.
“Mas aí entra a necessidade de uma mudança de paradigma. O que é mais importante agora? A gente não pode querer que uma coisa fique perfeita sem praticar. E a gente não tem tempo de praticar, a gente tá no limite”, alerta, referindo-se à urgência de restaurar as populações de animais silvestres.
Assim como a caça e o desmatamento são vetores de extinção de espécies, o tráfico de animais também influencia diretamente nas populações. Cada animal retirado representa um baque real em toda a cadeia ecológica dos biomas.
“A gente não pode ser protecionista demais e ter a ilusão de que a natureza é intocada”, reflete Vitória. “A gente tem que ser mais corajoso.”
“No mundo ideal, o tráfico de animais silvestres seria cláusula pétrea de crime contra a humanidade”, defende a advogada animalista Karine Montenegro, membro do IPS e coordenadora da Célula de Silvestres da Secretaria de Proteção Animal do Ceará (Sepa-CE).
“É necessário o delegado sair da Lei de Crimes Ambientais e ir para o Código Penal se ele quiser prender um traficante de animais silvestres. Hoje, os criminosos têm muito mais tranquilidade em traficar animais silvestres do que em bater em cachorro. Porque eles sabem que, se bater no cachorro, ele vai descer pro presídio. Agora, se ele traficar 200 filhotes de papagaio, ele vai embora da delegacia antes mesmo dos policiais que apreenderam os animais”, frisa.
Ela relembra o caso recente de 190 aves encontradas pela Polícia Militar do Ceará (PMCE) durante operação à procura de drogas, em Tamboril (CE).
Na busca por entorpecentes, os policiais depararam-se com dezenas de gaiolas e materiais de captura de aves — os pássaros eram recém-capturados e foram encontrados em situação de maus-tratos.
Apesar do suspeito ter confessado que venderia as aves em Fortaleza e ter sido encaminhado para a Delegacia de Polícia Civil de Crateús para os procedimentos cabíveis, ele não foi preso. O crime foi caracterizado como “de menor potencial ofensivo”.
“Ele não passou nem dez minutos na delegacia. O cara riu e disse: ‘É, vão ter uma trabalheira com esses animais’”, narra a advogada. “Nunca se viu tanto traficante enquadrado como organização criminosa no Ceará como agora.”
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O sinal de uma floresta viva e saudável é, justamente, o barulho. É o conjunto de cantos de pássaros, de uivos de mamíferos, de estalar de insetos e da quebra de galhos somados ao som das folhas regidas pelo vento e das árvores crescendo em sintonia.
O tráfico de animais silvestres está emudecendo as florestas, por sua vez substituídas pela algazarra nas bases de reabilitação de animais resgatados. ➤ É assim que se descreve as sedes do IPS: estridentes em cantos de centenas de pássaros sequestrados da natureza.
Periquito-da-caatinga, papagaio, corrupião, trinca-ferro, coleira, tuím, jandaia-verdadeira, arara-vermelha, araracanga, canindé… Enfim. Dê o nome de alguma ave cearense (ou não) e provavelmente o IPS terá alguma experiência com ela.
Assim como os macacos, as aves também costumam chegar do tráfico com estereotipias e sinais de maus-tratos. Na base de reabilitação Atipó, o secretário do IPS Jefferson Moraes aponta para um papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva) com penas manchadas de amarelo: sintoma de hepatite causada pelo excesso de semente de girassol.
Depois de passarem por uma quarentena e por exames médicos à procura de doenças infecciosas, como o fatal
Lá, elas aprenderão a se comportar como pássaros e fortalecerão os músculos das asas. “O tráfico tira isso delas: lembrar que são aves”, lamenta Jefferson. “Aqui, as aves vêm para recintos maiores, comem alimentos mais naturais. É para entender como é a natureza, para entender que voar é isso”, descreve.
Infelizmente, a soltura não chega para todas. Embrenhados nos corredores de papagaios, periquitos e araras, Jefferson nos indica um papagaio com penas amputadas. Nunca poderá voar — portanto, jamais será solto.
No seu trauma, aquele indivíduo ainda cumpre um papel importante. Ele é especialmente arisco e desconfiado com os humanos, o que o torna responsável por ensinar às outras aves que humanos significam encrenca.
“O ótimo líder de bando é o que tem aversão aos humanos”, comenta Jefferson. Nesse aprendizado mútuo, centenas de aves são monitoradas até os técnicos identificarem aquelas prontas para voltar ao lar.
Procuram-se as que estejam voando bem, com comportamentos de sobrevivência e alimentação adequados e baixa interação com as pessoas.
Naquela manhã de novembro de 2024, na soltura do IPS em parceria com o Ibama e a Secretaria de Proteção Animal do Ceará (Sepa-CE), os sortudos eram periquitos-da-caatinga (Eupsittula cactorum), sabiás-laranjeira (Turdus rufiventris), dois gaviões-carijó (Rupornis magnirostris), dois cassacos (Didelphis albiventris) e uma iguana-verde (Iguana iguana).
A operação começou cedo, e nós estávamos lá para acompanhar a soltura dos animais. O ideal é que as solturas ocorram durante a manhã para aproveitar o clima mais ameno possível. No caso da soltura de macacos, elas tendem a ocorrer a partir de fevereiro, quando começa a chover e a Caatinga tem o máximo de recursos possível.
De forma que às 7h30min, na Base de Reabilitação do IPS: Atipó, os membros das instituições já carregavam os carros sob uma leve garoa. De lá, uma viagem de cerca de uma hora para o ponto de soltura.
Nenhum dos endereços pode ser divulgado, pela segurança dos animais e dos tratadores. Segundo Karine Montenegro, advogada animalista, as instituições recebem ameaças diárias dos traficantes.
Os primeiros a serem libertados foram os periquitos-da-caatinga. Não sem uma certa dificuldade: mesmo com as portinholas abertas, os pássaros demoraram para entender que podiam sair.
Então os técnicos do IPS e do Ibama colocaram gravetos saindo das gaiolas, como pontes, e acomodaram dois pedaços de mamão na área externa. O primeiro curioso passou a explorar o pedaço de madeira e, aos poucos, colocou a cabeça pela portinha.
Com certeza, o periquito não sentiu uma grande mudança de paradigma, mas a cena segue simbólica. Depois de sabe-se lá quanto tempo, o primeiro ar da liberdade. Aos pouquinhos, aquela ave convenceu-se de que podia voar. E voou.
As risadas e os sorrisos dos profissionais coroaram o momento. Alguns com décadas de atuação, a sensação de fechar o ciclo segue recompensadora. O dia parece mais azul, o sol parece queimar menos. E as outras aves acompanham o primeiro voo para a vida que nunca deveriam ter perdido.
De lá, seguimos para a soltura dos outros animais. A iguana foi lenta e achou aquele amontoado de seres humanos a encarando meio esquisito. Os cassacos, por outro lado, correram quase apavorados, mostrando dentes e olhando para trás como que conferindo que não estão sendo seguidos.
A equipe mal viu quando o primeiro gavião-carijó saiu da caixa transportadora. Voou para pousar em um galho próximo, observando aquela gente. O segundo, por sua vez, ficou um bom tempo no chão, encarando as técnicas com o bico meio aberto e as asas esticadas. Saiam fora, parecia dizer.
Na volta para o local de soltura dos periquitos-da-caatinga, o analista ambiental do Ibama, Alberto Klefasz, dá um sorriso amarelo. Um dos periquitos foi predado por um falcão-de-coleira (Falco femoralis), avisou. Todos riram desacreditados.
Aí está, a vida seguindo o curso natural. “De cada dez bichos soltos, se dois sobreviverem já é bom”, indica Karine. “É importante, porque os outros periquitos-da-caatinga viram ele ser predado. É um treinamento agonístico”, comenta Alberto.
Com o apoio da comunidade e de armadilhas fotográficas, as instituições acompanham os resultados das solturas.
Todos os animais merecem a chance de ser reabilitados e voltarem para a natureza. Não apenas porque têm um papel ecológico para cumprir, mas principalmente porque são vidas com direitos claros.
No entanto, os direitos dos animais silvestres têm sido feridos por decisões judiciais brasileiras que ordenam a devolução de bichos apreendidos aos seus algozes.
Foi o que ocorreu em agosto de 2024 em Viçosa do Ceará, quando o juiz federal Sérgio de Norões Milfont Júnior, de Sobral (CE), mandou o Ibama devolver um macaco-prego adulto ao homem que o mantinha em ambiente hostil e em condições de maus-tratos.
O caso foi noticiado pelo O POVO e teve repercussão entre os ambientalistas, incluindo o portal de notícias especializado na pauta animal, Fauna News.
Na ocasião, o infrator processou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e pediu a devolução do animal, alegando depressão após a retirada do macaco.
“A gente recebe muita decisão de juizes para devolver os animais”, declara a advogada Karine Montenegro. “A justificativa é que são bichos inaptos, porque estavam em cativeiro.” No entanto, a própria experiência do IPS e do Ibama indica o contrário.
Mesmo aqueles animais com estereotipias são capazes de ter uma vida próspera em natureza.
Karine conta a história de um papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva) que esteve em cativeiro por 20 anos. Nesse tempo, ele foi ensinado a dizer “menininho de papai”, um comportamento atípico que poderia ser considerado inapto para a soltura.
No entanto, as instituições de conservação apostaram nele. Fora essa mania, ele cumpria todos os requisitos para retornar ao habitat natural. Deu tão certo que foi justamente o “menininho de papai” o primeiro a acasalar em vida livre — para a conservação, esse é um momento importantíssimo.
É verdade, ele acabou ensinando os filhotes, primeira geração de vida livre, a falar a famigerada frase. No entanto, eles seguem bem. É a isso que a primatóloga Vitória Nunes se refere ao pedir “coragem” das instituições nas solturas.
A natureza não está intocada. A expansão humana e urbana chegou a todos os espaços, e esperar um indivíduo “perfeito” para a soltura é impedir que centenas, talvez milhares, de animais ocupem seu verdadeiro lugar no mundo. O da liberdade.
Publicado em março de 2015, o caderno especial Operação Papagaio é resultado da apuração do jornalista Demitri Túlio, que, em jornada de jornalismo investigativo, acompanhou, anonimamente, por dois anos a rotina de um traficante de aves da fauna brasileira. O especial foi finalista do Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria nacional Criação Gráfica 2015.
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"Oi, aqui é a Catalina, editora-adjunta do OP+ e repórter de meio ambiente. O que você achou das reportagens? Vamos conversar nos comentários"
Série de reportagens aborda o universo do tráfico de animais silvestres e como instituições se mobilizam para combater as organizações criminosas