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Multiplicando axé: praticantes da umbanda e do candomblé mais do que triplicam no CE em 12 anos
Reportagem Especial

Multiplicando axé: praticantes da umbanda e do candomblé mais do que triplicam no CE em 12 anos

O Censo Demográfico do IBGE mostra que o Ceará saiu de 7.609 praticantes de religiões de matriz africana em 2010 para 27.861 em 2022. Crescimento indica caminho de combate ao preconceito religioso; conheça histórias de cearenses que vivem multiplicando a fé afrobrasileira

Multiplicando axé: praticantes da umbanda e do candomblé mais do que triplicam no CE em 12 anos

O Censo Demográfico do IBGE mostra que o Ceará saiu de 7.609 praticantes de religiões de matriz africana em 2010 para 27.861 em 2022. Crescimento indica caminho de combate ao preconceito religioso; conheça histórias de cearenses que vivem multiplicando a fé afrobrasileira
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Pela dor, amor ou um chamado que atravessa o peito. O número de pessoas que praticam o candomblé e a umbanda mais do que triplicou dentro de um intervalo de 12 anos no Ceará, revelando um caminho — ainda que inicial — de desconstrução do preconceito aos cultos afro-brasileiros.

Dados constam no mais recente Censo Demográfico, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na última semana. Conforme levantamento, a quantidade de pessoas acima de 10 anos no Estado que se declaram praticantes dessas religiões saltou de 7.609 em 2010 para 27.861 em 2022.

Em termos percentuais, eles eram 0,11% da população do Ceará e passaram a representar 0,37% do contingente. No recorte de gênero, 14.036 dos adeptos são homens (50,4%) e 13.826 (49,62%) mulheres, quando índices anteriores eram de 3.810 e 3.799, respectivamente. 

Balanço mostra ainda que em 2022 a umbanda e o candomblé eram a religião de cerca de 1% das pessoas que se declararam como pretos e como indígenas, maior percentual já registrado para esse grupo.

Mudança segue cenário nacional, visto que entre o mesmo período de tempo analisado o número de umbadistas e candomblecistas passaram a ser de 0,3% a 1% da parcela brasileira. Dentro da categoria "Umbanda e Candomble", segundo IBGE, são considerados também outras religiões de matriz africana. 

ParaTodosVerem: Jonas Carlos, Kayo Tabosa e Vera Lucia, filhos da Casa Pai Xangô e Caboclo Pena, com roupas tradicionais estão sentadas em um ambiente religioso de paredes verdes. O homem ao centro segura um cachimbo e está diante de um altar com imagens e velas(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: Jonas Carlos, Kayo Tabosa e Vera Lucia, filhos da Casa Pai Xangô e Caboclo Pena, com roupas tradicionais estão sentadas em um ambiente religioso de paredes verdes. O homem ao centro segura um cachimbo e está diante de um altar com imagens e velas

O aumento do número de praticantes de crenças do porte no Ceará indica um caminho de combate ao preconceito religioso. De acordo com Hilário Ferreira, pesquisador da cultura e história negra no Estado, políticas afirmativas contribuíram para "desconstruir processos de demonização dessas religiões".

Entre iniciativas ele cita a Lei Federal N° 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino básico do Brasil. "Quando as pessoas têm contato (com a educação) elas rompem com a perspectiva de preconceito", pontua o estudioso.

Hilário destaca que ações têm aproximado dos culto afro-brasileiros pessoas de pele branca e de classe média, ao passo em que muitos negros se tornam evangélicos em razão da forte presença de igrejas do tipo nas periferias. Censo apontou que houve crescimento de 27% desses religiosos em 12 anos no Ceará.

Guias de contas são colares usados para mediação entre e o humano e o sagrado(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Guias de contas são colares usados para mediação entre e o humano e o sagrado

Outro fator indicado pelo pesquisador como incentivador do aumento de umbandistas e candomblecistas é o acolhimento que essas religiões proporcionam, abraçando grupos de classes e gêneros diversos. 

Já Joanice Conceição, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), cita a importância midiática para a quebra do preconceito religioso e o disparo de adeptos, frisando que há personalidades públicas que hoje já falam abertamente sobre serem de religiões do tipo. 

Além da representatividade, a docente destaca que há um sentimento coletivo maior de que crimes contra essas crenças não ficarão impune, visto a existência de leis como a nº 7.716/89, que protege a liberdade religiosa. Mesmo reconhecendo o avanço da pauta, ela diz ainda estarmos em um "caminho inicial". 

"Não significa que não tenha, que não haja racismo religioso. Isso tá muito longe de terminar (...) Vai levar um tempo, mas ao mesmo tempo os dados revelam que nós estamos no caminho certo", completa.

 

 

Retratos de uma religiosidade

pelos fotojornalistas Fernanda Barros e FCO Fontenele



 

Aquiraz é a cidade com o maior percentual de adeptos

No comparativo dos municípios do Ceará, Aquiraz, distante 29,07 km de Fortaleza, é o que apresenta o maior percentual de adeptos da umbanda e do candomblé. Em 2010, a região tinha 122 praticantes (0,17% da população total). Em 2022 o número de religiosos subiu para 701 (1% da população).

Outras cidades da Região Metropolitana (RMF) também registraram um aumento de praticantes dessas crenças. Caucaia, por exemplo, tinha 562 umbandistas e candomblecistas em 2010 (0,17% do contingente do município), enquanto 12 anos depois o número era de 1.913 (0,63% da população local na época).

Disparo é observado ainda no Eusébio, onde índice foi de 93 para 222 praticantes das religiões de matriz africana dentro do período de tempo analisado, com o percentual populacional indo de 0,20% a 0,35%.

Conforme a docente Joanice Conceição, doutora e mestre em Antropologia, o aumento de adeptos dessas religiões em locais metropolitanos pode ser associado a distância que eles ficam do centro urbano e também à proximidade com matas e rios, considerando a conexão que cultos do tipo têm com a natureza.

"Acredito que quanto mais distante os templos tiverem do (centro) urbano eu acho que eles (praticantes) ganham mais liberdade, serão menos atacados. Quando você vai pra rua colocar uma oferenda, você vai morrendo de medo (...) de ser até preso", diz a docente.

ParaTodosVerem: Graça Silva de óculos e chapéu preto está em um ambiente com paredes verdes, vestindo roupas brancas e colares coloridos. Atrás dela, há um altar com muitas imagens religiosas, flores e velas acesas(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: Graça Silva de óculos e chapéu preto está em um ambiente com paredes verdes, vestindo roupas brancas e colares coloridos. Atrás dela, há um altar com muitas imagens religiosas, flores e velas acesas

Foi esse sentimento livre que levou Graça Silva, 51, a montar seu barracão (espaço físico onde são realizados as práticas religiosas e os rituais) há cerca de 30 anos. Ela foi iniciada na umbanda ainda criança e chegou, em tempos difíceis e ainda claros em sua mente, a usar as matas para as sessões.

"Eu passei por tanta coisa que se eu fosse fraca eu não estaria aqui", conta. Hoje, a "mãe Graça" acolhe os filhos que precisam de orientação, cura ou mesmo só amor na sua residência, a Casa Pai Xangô e Caboclo Pena, na vila Machuca, em Aquiraz. 

ParaTodosVerem: Mãe Graça vestida com roupas tradicionais, colares e chapéu sopra fumaça de um cachimbo em um ambiente verde. Ao lado, há um altar com velas acesas, conchas e imagens religiosas(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: Mãe Graça vestida com roupas tradicionais, colares e chapéu sopra fumaça de um cachimbo em um ambiente verde. Ao lado, há um altar com velas acesas, conchas e imagens religiosas

Com as guias coloridas (colares ritualísticos) sobre o peito e coberta de tecido branco, ela diz que espaço foi o primeiro do tipo na região e lança um olhar forte que atravessa e preenche o barracão. Olhar de quem muito resistiu para sobreviver e levar sua fé e missão adiante.

Graça trata os filhos com um carinho e cuidado materno e diz que nos últimos anos tem espalhado mais esse amor: o número de frequentadores da casa teve aumento. Em contrapartida, ela alerta que existem pessoas que montam terreiros sem respeitar o processo de aprendizado, que é constante. 

ParaTodosVerem: Pai Virgílio sorri usando roupa estampada colorida, colar religioso e um chapéu branco. Ele segura um rosário nas mãos, com imagens de entidades ao fundo(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS ParaTodosVerem: Pai Virgílio sorri usando roupa estampada colorida, colar religioso e um chapéu branco. Ele segura um rosário nas mãos, com imagens de entidades ao fundo

Virgilio Fernandes, 47, também diz ter percebido um maior número de pessoas procurando sua casa nos últimos anos, o Templo Mãe Cassiana, no bairro Parque Albano, em Caucaia. No local, onde se cultua em espaços distintos a umbanda e o candomblé, chegam pessoas de todas as idades, grande parte jovens.

Até ter o espaço, ele foi marcado por diversas violências, como o preconceito. No entanto, elas não arrancaram o riso de seu rosto. Pai Virgilio, como é conhecido, despertou para a mediunidade ainda menino e foi taxado como "louco" pela família, chegando a tomar remédios. 

No início da adolescência, contudo, entendeu que não havia nada de errado consigo e virou umbandista, se encontrando no candomblé anos depois. 

ParaTodosVerem: Pai Virgílio está sorrindo na entrada de uma casa, vestindo roupa estampada africana, colar religioso e chapéu branco. Ele segura uma grande oferecenda de pipoca(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS ParaTodosVerem: Pai Virgílio está sorrindo na entrada de uma casa, vestindo roupa estampada africana, colar religioso e chapéu branco. Ele segura uma grande oferecenda de pipoca

Ele enfrentou várias barreiras para trabalhar a sua espiritualidade. Quando adulto, por exemplo, começou a tentar alugar uma casa para montar seu terreiro, mas quando sabiam o propósito os donos negavam o aluguel. A muito custo conseguiu abrir os primeiros barracões e chegou a ter um espaço em um sítio em Caucaia, mas em 2021 dois indivíduos entraram no local e fizeram todos os presentes de reféns.

"Quando eles chegaram pra me abordar eles diziam assim: 'Eu estou aqui em nome de Jesus, olha aqui a bíblia, pra te repreender'", conta, revelando que, além dele, sua religião também esteve sob a mira da arma. 

Mesmo com o episódio, que classifica como um "massacre psicológico e emocional", ele hoje mantém o templo em Caucaia e segue resistindo com seus filhos, que em números e em fé são cada vez maiores. "Eu tenho muita seriedade no que faço, porque eu amo o que faço", destaca.

 

 

Procura por cura e acolhimento

Pais e mães de santo são, na hierarquia da umbanda e do candomblé, autoridades espirituais máximas, também chamados de Babalorixá (pai) e Ialorixá (mãe).

Religiões compartilham de elementos próximos, mas a primeira atua com entidades como exus e pombagiras, enquanto a segunda foca no culto aos orixás. Ambas possuem a prática de cura, mediada pelo sobrenatural e por médiuns e sacerdotes.  

Jonas Carlos, 30, procurou a Casa Pai Xangô e Caboclo Pena há cerca de três anos, em busca desse refúgio espiritual. "Eu me sentia muito inferior às outras pessoas, e foi aqui (no barracão) que encontrei a solução dos meus problemas (...) Quando eu cheguei na porta é como se eu tivesse visto seu Zé Pelintra (entidade) ali, me acolhendo", conta o funcionário público, que enfrentou o preconceito familiar por ter saído da religião evangélica para a umbanda, chegando a ouvir que iria para o "inferno" por isso.

No início, ele teve medo de assumir o que era, mas hoje abre a boca para dizer que é umbandista. No mesmo barracão, outra história de cura se cruza com a dele: Vera Lucia, 46, há dois anos chegou no local carregando a filha, que sofria de uma condição sem diagnóstico médico. Naquele dia, a pequena foi curada em uma sessão e ambas iniciaram na umbanda. 

"Minha filha renasceu aqui, aí eu disse que a partir daquele dia meu canto é aqui (...) E aqui cada dia mais as coisas vão melhorando pra mim", conta, dizendo que encontrou seu lugar. 

ParaTodosVerem: Hamilton Oliveira está sentado em um ambiente com paredes amarelas, usando roupas brancas, guias coloridas e um turbante, enquanto conversa com alguém à esquerda, fora do enquadramento(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS ParaTodosVerem: Hamilton Oliveira está sentado em um ambiente com paredes amarelas, usando roupas brancas, guias coloridas e um turbante, enquanto conversa com alguém à esquerda, fora do enquadramento

Hamilton Oliveira, 19, também chegou a um terreiro por meio da "dor". Quando criança, foi levado ainda por sua mãe para um barracão para solucionar os problemas suscetíveis de saúde que tinha. Hoje, iniciado em umbanda e no candomblé, ele é filho do Templo Mãe Cassiana, sua segunda família. 

Apesar da pouca idade, já carrega dores causadas pelo preconceito. Uma delas, por exemplo, foi causada por um homem que chegou para "pregar a palavra de Deus" no ônibus onde ele estava e puxou a guia do jovem, perguntando aos passageiros se eles acreditavam que "aquilo era caminho". "Apesar disso, minha fé sempre foi maior do que tudo", destaca, firme de quem é. 

 

 

Jovens abraçam crenças e influenciam os demais

Crenças afro-brasileiras têm atraído jovens, que influenciam outros. Joana Oliveira, 24, por exemplo, iniciou na umbanda ainda na infância e dentro dela desenvolveu sua mediunidade.

Encontrou o candomblé anos depois, onde se reconheceu. Hoje ela toca tambor nas sessões, atividade que normalmente é dada aos homens. Diz sofrer preconceitos, mas transforma críticas em força para ser inspiração.  

ParaTodosVerem: Joana Oliveira sorri enquanto toca um tambor com uma baqueta e a mão. Ela usa turbante laranja, óculos e roupa branca com detalhes rendados. Está em um espaço colorido com plantas e objetos decorativos ao fundo(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS ParaTodosVerem: Joana Oliveira sorri enquanto toca um tambor com uma baqueta e a mão. Ela usa turbante laranja, óculos e roupa branca com detalhes rendados. Está em um espaço colorido com plantas e objetos decorativos ao fundo

"Foi natural demais, eu sempre me identifiquei muito com o tambor (...) O candomblé é matriarcal, mulheres trouxeram o candomblé da África para cá. Eu busco muito trazer esse resgate das mulheres pra dentro da religião. Eu influencio muitas mulheres por meio de vídeos", conta. 

Foi a internet, aliás, que ajudou a aproximar Arthur Cruz, 19, da umbanda. Ele conta que desde os 15 anos de idade passou a sentir curiosidade sobre a religião e usou as redes sociais para entender mais sobre ela. Dois anos depois ele passou a frequentar um terreiro e desde então nunca mais deixou de ir.

Jovem aponta que os meios virtuais podem ajudar a quebrar a visão de demonização que existe sobre essas religiões, pois deu mais visibilidade e espaço aos barracões. "Quebrou o preconceito, mas também trouxe algum fator de consequência pra gente, por que se baseiam muito na religião pelo que veem na internet, e nem tudo que é mostrado na internet é o que acontece aqui dentro", pondera. 

ParaTodosVerem: Kaio Tabosa, vestido de branco e com guias coloridas, sopra fumaça de um cachimbo em direção a uma vela acesa. Ele está diante de um altar com imagens e objetos religiosos. O ambiente é iluminado por velas e tem paredes verdes(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: Kaio Tabosa, vestido de branco e com guias coloridas, sopra fumaça de um cachimbo em direção a uma vela acesa. Ele está diante de um altar com imagens e objetos religiosos. O ambiente é iluminado por velas e tem paredes verdes

Arthur agora também influencia, principalmente os colegas que possuem curiosidade sobre essas religiões. Foi depois que ele se iniciou na umbanda, inclusive, que seu amigo, Kayo Tabosa, 19, resolveu ir visitar o mesmo terreiro.

"Na época eu vim por curiosidade. Ele (Arthur) me falava de tudo que acontecia aqui e eu ficava incrédulo", lembra o jovem. A visita foi o bastante para redescobrir a fé que achava ter perdido.

"Eu tava praticamente sem rumo, eu tava só vivendo, não tinha fé em nada, tomava remédios (...) Não acreditava em Deus", desabafa, ganhando brilho nos olhos que um dia já foram tomados por tristeza.

 

 

Como denunciar casos de intolerância

Toda pessoa que sentir a sua crença ser discriminada publicamente, individualmente, nas redes sociais ou que seja impedido de praticar sua fé podem registrar ocorrências presencialmente na sede da Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou Orientação Sexual (Decrim), que funciona de segunda a sexta-feira, das 8 às 17 horas, na rua Valdetário Mota, 970, Papicu, Fortaleza.

Registro pode ser feito também em qualquer outra delegacia da Polícia Civil, ou por meio da Delegacia Eletrônica (Deletron), no site www.delegaciaeletronica.ce.gov.br.

Informações podem ser repassadas ainda para o Disque 100, serviço de proteção dos direitos humanos do Governo Federal. O sigilo é garantido.

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