Era manhã de sábado, véspera do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. Nas redes sociais, Filipe Garcia Martins Pereira (@filgmartin), então apenas apoiador do candidato azarão Jair Messias Bolsonaro, escreveu:
“O @ehomath e a página Bolsonaro Zuero é um dos muitos ‘unsung heroes’ (heróis desconhecidos) do processo que nos trouxe até aqui. A eleição de amanhã vai ter um gostinho particularmente especial para quem viveu essa história desde o começo”.
O @ehomath e a página Bolsonaro Zuero é um dos muitos "unsung heroes" do processo que nos trouxe até aqui. A eleição de amanhã vai ter um gostinho particularmente especial para quem viveu essa história desde o começo. https://t.co/IoPtg5BbyH
— Filipe G. Martins (@filgmartin) October 7, 2018
A deferência não é trivial. Deletado logo depois da vitória do ex-capitão nas urnas, o perfil no Twitter “@ehomath”, um ativo defensor de Bolsonaro e incansável produtor de memes cuja especialidade eram as queixas contra o feminismo e ataques ao PT e nomes do partido, é atribuído ao cearense José Matheus Sales Gomes, 27 anos – o “Math” da arroba a quem Martins agradecia de público, como o militar que reconhece os feitos de bravura de um subordinado no decorrer da batalha.
Durante todo aquele ano e mesmo antes disso, @ehomath havia colaborado para mobilizar a tropa bolsonarista no front, distribuindo conteúdo que ajudava a catalisar a imagem do postulante como a de alguém cujas opiniões eram incorretamente descoladas. Um dos seus trabalhos, por exemplo, foi a versão em japonês do entrevero no qual o ainda deputado diz à também parlamentar Maria do Rosário (PT-RS), em 2003, que não a estupraria “porque ela não merece”, chamando-a de “vagabunda”.
Publicado nas redes em outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turnos, o vídeo fez sucesso entre os cerca de 60 mil brasileiros que moravam no Japão. Lá, Bolsonaro foi campeão de votos em Tóquio (Oizumi, Ueda e Joso), Nagoia (Takaoka, Hiroshima, Suzuka e Toyohashi) e Hamamatsu (Shizuoka), abrindo larga vantagem em relação a seu rival direto, o petista Fernando Haddad, e chegando à vitória em 28 de outubro.
O caso é citado frequentemente como uma mostra da eficácia do rótulo que Matheus lhe pespegara e que, convertido em estratégia de campanha pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), acabou por se tornar bem-sucedido: Bolsonaro era da zoeira, sem papas na língua e autêntico, predicados que funcionavam como munição na artilharia das plataformas digitais.
Daí nasceu o “Bolsonaro Zuero”, outro perfil mantido pelo cearense nos anos que antecederam à campanha de 2018, quando Matheus ainda não sonhava em despachar no terceiro andar do Palácio do Planalto, com um status diferente do que havia tido até aquele momento, um privilégio de que nem todos os ministros da Esplanada podem gozar.
Hoje assessor especial da Presidência, com salário bruto de R$ 13.109,33 mensais, mais os auxílios, o jovem que morava em um bairro popular de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, é apontado como um dos integrantes do chamado “gabinete do ódio”, como se convencionou chamar a máquina de guerra digital montada dentro do Governo, segundo denunciaram ex-aliados do chefe do Executivo ouvidos em inquérito que corre no Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar a disseminação de “fake news” contra a Corte.
Outros três cearenses também fariam parte da linha de frente desse time de ataque: Mateus Matos Diniz (@risemateus), 26, natural de Fortaleza, assessor especial vinculado à Secretaria de Comunicação da Presidência, um “olavista” precoce que se enamorou das ideias do guru em meio ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) e se notabilizou pelo engajamento a favor do afastamento da petista.
Guilherme Julian Freire (@guijulian10), 28, assessor do deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ), conhecido como Hélio “Negão”, fundador da organização conservadora Endireita Fortaleza e um dos principais articuladores do bolsonarismo na Capital.
E José Hemrique Cardoso Rocha, 20, o caçula do grupo, também morador de Caucaia, colega de gabinete de Julian na Câmara dos Deputados e mais um “endireitista” – Cardoso chegou a participar da cerimônia de posse de Bolsonaro em Brasília, em janeiro de 2019, usando máscara do presidente norte-americano Donald Trump.
Divulgado em maio passado, trecho do seu testemunho registra que “é do conhecimento do depoente que Matheus Sales, Mateus Matos Diniz e Tercio Arnaud Tomaz, todos assessores especiais da Presidência da República, são os integrantes principais do chamado ‘gabinete do ódio’”, que “coordena nacional e regionalmente a propagação de mensagens falsas ou agressivas”.
Para tanto, continua Freire, o grupo promove a “atuação interligada de uma grande quantidade de páginas nas redes sociais, que replicam quase instantaneamente as mensagens de interesse do ‘gabinete’”.
“Essa organização conta com vários colaboradores nos diferentes estados, a grande maioria sendo assessores de parlamentares federais e estaduais.”
Heitor Freire (PSL-CE) em depoimento ao inquérito das Fake News no STFEmbora postagens de apoio a Bolsonaro assinadas pelo quarteto cearense alvo da investigação remontem a 2013, o gabinete do ódio, tal como descrito por Freire e os também parlamentares Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP), só ganharia feitio de projeto a partir de 2015, quando a popularidade de Jair Bolsonaro seria catapultada a outro patamar.
E tudo começou em Fortaleza, segundo relatos ouvidos pela reportagem. Especificamente, no saguão do aeroporto da capital cearense, onde o deputado do baixo clero filiado ao PP teve uma recepção digna de chefe de Estado. Aos gritos de “Bolsonaro zuero, orgulho brasileiro” e “fora, Dilma”, jovens o saudaram e o puseram nos ombros, como se acolhessem um medalhista olímpico que aportasse em terra natal.
Ali nascia uma das marcas da campanha de Bolsonaro na escalada rumo à cadeira de presidente: as festivas chegadas em salões de desembarque de boa parte do país. Nessas ocasiões, um adjetivo se tornaria popular para se referir ao político cuja vida parlamentar era marcada por um vazio de projetos e trajetória controversa, além de um sem número de domicílios partidários: “mito”.
Naquele 14 de agosto de 2015, quando Bolsonaro punha os pés em solo fortalezense pela primeira vez, ao menos um dos representantes do gabinete do ódio estava presente ao ato na entrada do aeroporto: Guilherme Julian, que logo depois fundaria o Endireita, passo fundamental no propósito de organizar as forças conservadoras que ganhavam dinamismo na esteira do impeachment.
Foi aí que a ficha caiu: o sucesso do ex-militar nas urnas dali a três anos passaria por uma ampla mobilização nas redes sociais, uma nova forma de ação que tinha elementos do escracho, característica do humor cearense, e referências da estética “vaporwave”, uma das marcas da “alt-right”, a direita alternativa dos Estados Unidos cujo avanço se devia principalmente ao processo de desrecalque do discurso politicamente incorreto, do qual derivam Trump e o próprio Bolsonaro.
É nesse ponto que entram Matheus, Hemrique, Guilherme e Mateus. Já fortes isoladamente na Internet, eles seriam recrutados por Carlos Bolsonaro, um a um, para dar forma ao plano de conduzir aquele parlamentar do “centrão” em quem ninguém apostava um tostão até o cargo mais alto da República do Brasil.
Neste episódio você leu sobre os passos do grupo de jovens cearenses a partir do qual se originou o "gabinete do ódio'. Veja o conteúdo dos próximos episódios.
Como quatro cearenses chegaram à linha de frente da máquina de guerra digital de Bolsonaro