No momento em que a pandemia chegou ao Ceará, as distribuidoras de medicamentos "foram pegas desprevenidas" e houve temor de desabastecimento. Isso exigiu que a distribuição de produtos fosse ainda mais rápida e eficiente. Este depoimento marca o início do relato de Ernani Rios, proprietário da Riosfarma Distribuidora e presidente do Sindicato do Comércio Atacadista de Medicamentos, Perfumaria, Higiene Pessoal e Correlatos do Estado do Ceará (Sincamece).
Ernani conta que a logística do setor é bem diferente de outros segmentos. Já é usual que os pedidos de farmácias e hospitais sejam entregues de forma imediata em Fortaleza (CE) e com entrega de até 24 horas no Interior. Com o aumento da demanda e mantendo essa média de tempo na pronta-entrega, as distribuidoras não demitiram e houve casos de mais contratações.
Ainda assim, houve momentos de apreensão. Uma corrida a farmácias levou a logística ao limite. "Houve dificuldade na distribuição. O segmento passou por momentos de insegurança muito grande com produtos, como máscaras cirúrgicas", diz Ernani. A dificuldade com estoque também foi outro fator desafiador: "O setor foi pego desprevenido, até porque a doença chegou de uma hora para outra e não se sabia bem como tratar".
Isso fez com que tratamentos alternativos e receitas milagrosas - mesmo sem comprovação científica - vendessem muito no varejo, demandando ainda mais as distribuidoras. No Ceará, por exemplo, o presidente da Sincamece diz que distribuidores de cloroquina viram as demandas "subirem para o céu", com aumento médio de 80% nos pedidos, somente com azitromicina a alta foi superior a 100%.
Esta demanda desmedida por alguns produtos fez com que a oferta ficasse escassa e pessoas com necessidade de uso ininterrupto de alguns medicamentos fossem impactadas. A solução para controlar a distribuição foi acordar com as redes de farmácias limitar o repasse dos fármacos por CNPJ para que os remédios relacionados ao tratamento da Covid-19 chegassem a todos os pontos de venda e hospitais.
"O que aconteceu foi a falta de alguns produtos e precisamos ratear e limitar a distribuição deles. Se isso não acontecesse, corríamos o risco de ficar com uma rede de farmácias com determinado produto e nas demais, sem", ressalta.
Para o coordenador do Centro de Estudos em Transportes, Logística e Mobilidade Urbana da Fundação Getúlio Vargas (FGV Transportes), Marcus Quintella, este planejamento de distribuição deve ser pensado mais amplamente: o foco agora deve ser quando a vacina for desenvolvida. Na sua análise, é preciso prever como vai se comportar a logística nacional durante a "operação de guerra" necessária para fazer a vacina chegar aos mais longínquos locais do Brasil.
"É certo que a vacina chegará. Precisamos de planejamento para atender os mais de 5 mil municípios no Brasil. Atender as capitais é um desafio, mas menor do que o Interior, onde começamos a ver as dificuldades logísticas e mesmo isso não pode impedir a vacina de chegar a todos", complementa.
E-commerce deve continuar a crescer pós-pandemia
Pesquisa da CNT projeta mudanças no transporte
Uma parcela da cadeia logística que ganhou importância com o crescimento do e-commerce: a chamada corrida "last mile" ou última milha - deslocamento final da mercadoria até chegar ao cliente. É o que aponta o levantamento da CNT "Transporte em Movimento".
O presidente da Câmara Setorial de Logística da Agência de Desenvolvimento do Ceará (CSLOG-Adece) e diretor institucional da Federação das Empresas de Transporte de Cargas e Logística do Nordeste (Fetranslog-NE), Marcelo Maranhão, destaca que está acontecendo uma adaptação para atender os chamados por cargas de última milha. Ele ainda ressalta que, até então, esse transporte era realizado por motoqueiros ligados a aplicativos de logística, "beneficiando muitos trabalhadores que haviam saído do mercado de trabalho formal".
Na avaliação de Maranhão, a posição do e-commerce e do delivery é irreversível e isso beneficia o setor. "É uma nova realidade. E as grandes redes se prepararam para isso, vão continuar esse sistema e transformaram as lojas físicas em estoques".
O doutor em Logística pela Aix-Marseille Université e professor da Escola de Negócios da Faculdade CDL nas áreas de Logística e Economia, Igor Pontes, ressalta que o desenvolvimento do "last mile" fez com que o tráfego de caminhões pesados circulando dentro de Fortaleza diminuísse e a movimentação das cargas de entrega fosse mais ágil, por meio de motocicletas e bicicletas, por exemplo.
No entanto, esse crescimento impõe desafios. Ele lembra que, no início da pandemia, nem os grandes empresários conseguiram dar resposta aos consumidores, o que acarretou em atrasos nas entregas. "Não conseguiram manter um padrão mínimo". No entanto, a evolução foi rápida e aconteceu durante a própria crise do novo coronavírus.
Essa adaptação, avalia Igor, proporcionou às pessoas a possibilidade de obedecer a rigidez necessária do isolamento social. Mas há problemas nesse sistema utilizado pelos apps mais populares: ele não é profissionalizado e os principais atores, os motociclistas, pedem melhores condições de trabalho.
"Há um desafio do âmbito social e ambiental, pois, quanto mais cresce, mais entregas precisam acontecer. As pessoas pagam por comodidade, estimulando um contingente de pessoas em trabalhos não regulamentados. Quem consome desse modelo, acaba financiando essa ação predatória dos apps. Motociclistas querem segurança para trabalhar", analisa.
O volume de hortigranjeiros comercializado nas unidades da Central Estadual de Abastecimento do Ceará (Ceasa-CE) de janeiro a junho chegou a 311 toneladas, número 3,75% maior ante igual período do ano passado. Somente no entreposto de Maracanaú, que abastece a Região Metropolitana de Fortaleza, o crescimento foi de 2,48%.
O analista de Mercado da Ceasa-CE, Odálio Girão, comenta que, quando a pandemia fechou as fronteiras estaduais, houve temor de desabastecimento, mas a efetividade dos operadores logísticos não permitiu que qualquer produto faltasse ou que o transporte impactasse no preço. Se houve variação de valores foi por fatores climáticos e de produção.
"Sobre questionamentos de aumento de frete, de faltar produto no mercado e risco de desabastecimento, a resposta é que não passamos por isso porque o nosso permissionário é prevenido e possui câmaras frias que podem armazenar muitos produtos, conservando a qualidade e o preço", diz.
Odálio ainda afirma que as mercadorias continuam chegando pelos diferentes modais, principalmente o rodoviário, vindas de outras regiões do Brasil. Outras originalmente do mercado internacional foram impactadas pelo fechamento das fronteiras internacionais. Por transporte aéreo e marítimo, a Ceasa-CE recebia do Mercosul, Estados Unidos e Europa, principalmente.
Já o presidente da Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores de Produtos Industrializados (Abad), Emerson Luiz Destro, relata que a distribuição de produtos como arroz, feijão, enlatados, além dos de higiene e limpeza não pararam nos últimos meses. Para garantir o abastecimento dos pontos de venda, foi importante a parceria entre indústrias, agentes de distribuição e pequenos varejistas.
Segundo dados da Abad, em maio, a situação já caminhou para um novo estado de normalidade, com a valorização do pequeno e médio varejo, principais clientes do setor. Como saldo, os dados de junho mostram que o primeiro semestre atípico foi melhor ante 2019, com crescimento de 2,2% em termos nominais. "Para nós, a pandemia apenas reforçou a importância da atuação do setor para manter e ampliar o papel de destaque do varejo de vizinhança".
"Devido a sua grande capilaridade e capacidade logística, os agentes de distribuição complementam o sistema de distribuição da indústria, que de outra forma não conseguiriam atender a todos os estabelecimentos do pequeno comércio nem chegar a localidades distantes dos centros produtores ou de difícil acesso", complementa o presidente da Abad.
O movimento de pessoas iniciado todos os dias às 3 horas não parou na Ceasa-CE durante a pandemia. Mas diminuiu. Porém, isso não quer dizer que menos negócios foram feitos: a novidade lançada durante a quarentena no maior polo de fornecimento de alimentos para o varejo cearense foi o serviço de delivery.
Realizado a partir de contato, prioritariamente, no Whatsapp, o serviço permitiu que empresários da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) conseguissem abastecer suas prateleiras com os produtos da Ceasa, mesmo não indo presencialmente buscar os produtos. O negócio é feito totalmente online.
O analista de mercado da Ceasa-CE, Odálio Girão, explica que o serviço foi idealizado pelos próprios atacadistas da Ceasa, que viram a necessidade de atender aos varejistas, distantes até 30 km do local. Laranjas, peras, uvas, bananas, melancias, melões entre outros são produtos que podem ser entregues por meio do delivery. A entrega é em caminhões fretados.
"Os pequenos se reinventaram de imediato para não perderem clientes que não podiam ultrapassar o limite de Fortaleza, mas que precisavam receber o produto, para não faltar no ponto de venda", complementa Odálio.
Análise preditiva
Marcelo Almeida é doutor em Transportes pela Universidade Nacional de Brasília (UnB) e especialista em Gestão pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), atua como Pesquisador e Coordenador de Projetos do Grupo de Pesquisa GesConPP, da FACE/UnB)
O movimento de mercadorias e pessoas sempre foi objeto de estudo. A origem, do transporte e logística, remonta às guerras no início da civilização e, seus estágios de evolução e modernização coincidem com eventos de profunda crise. Nesse sentido, com a crise sanitária provocada pelo Covid-19, não será diferente.
No caso atual, houve ruptura das cadeias globais, com impacto severo na integração logística. Enquanto isso, internamente, interpretações distintas sobre a classificação de produtos e serviços essenciais, induziram às restrições de circulação e criaram percalços operacionais, descontinuando atividades de apoio ao transporte. Esses entraves consistiram nos principais desafios enfrentados pelo setor.
Em que pese à dificuldade inicial vivenciada pelos brasileiros, no acesso aos medicamentos e equipamentos de saúde, decorrente do desequilíbrio entre oferta e demanda, a situação foi contornada. A sociedade brasileira não experimentou a falta de combustíveis, alimentos e produtos de higiene, demonstração de superação do setor de transporte, àquelas barreiras.
O transporte rodoviário responde por 65% da movimentação de cargas, entre a primeira e a última milha. As medidas restritivas de isolamento, para contenção da expansão de contágio do vírus, trouxeram reflexos à distribuição física. Evidência dessa situação foi o incremento no uso de: aplicativos para pedidos (delivery), rastreadores de mercadorias e as vendas de bicicletas e motos.
Das lições aprendidas com a pandemia destacam-se: o crescimento do e-commerce; o reequilíbrio entre eficiência e resiliência; valorização das redes nacionais de produção e abastecimento; regulação de produtos de interesse dos governos e, o incremento da IA e machine learning nas operações logísticas.
Nos últimos anos, o ambiente VICA vinha proporcionando a inovação e automação da logística de transporte. A pandemia do Covid-19 fez impulsionar os planos de continuidade de negócios e acelerar o processo de transformação digital, colocando-a em outro patamar, frente ao “novo normal”.
Confira todos os episódios do especial
EPISÓDIO 1 - Como a logística mudou com a pandemia do novo coronavírus
EPISÓDIO 2 - A organização da logística para evitar desabastecimento na pandemia
EPISÓDIO 3 - A movimentação cargas que chegam via mar foi intensificada na pandemia
EPISÓDIO 4 - O setor aéreo teve de se adaptar para atender a demanda na crise de Covid-19
A logística de transporte ganhou uma nova conotação nesta pandemia. Esta série de reportagens mostra como o segmento vem sendo uma ponte para levar insumos voltados ao combate do novo coronavírus.