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De gentrificação a racismo ambiental: como a expansão imobiliária afeta a luta por moradia
Reportagem Seriada

De gentrificação a racismo ambiental: como a expansão imobiliária afeta a luta por moradia

Em Fortaleza, efeitos das mudanças climáticas não são iguais para todos: com menos poder político e econômico, além da exclusão dos lugares de tomada de decisão, grupos étnicos vulnerabilizados acabam expostos a fenômenos ambientais nocivos
Episódio 5

De gentrificação a racismo ambiental: como a expansão imobiliária afeta a luta por moradia

Em Fortaleza, efeitos das mudanças climáticas não são iguais para todos: com menos poder político e econômico, além da exclusão dos lugares de tomada de decisão, grupos étnicos vulnerabilizados acabam expostos a fenômenos ambientais nocivos
Episódio 5
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Quando bolhas imobiliárias sobrevalorizam uma região e limitam o acesso à moradia a pessoas com maior poder aquisitivo, ocorre um movimento de saída dos antigos moradores do bairro agora supervalorizado.

Essa “expulsão” ocorre porque eles não conseguem acompanhar o aumento progressivo do aluguel ou dos serviços ao redor. Isto é, alguns processos de modificação da cidade levam ao encarecimento do custo de vida, o que aprofunda disparidades sociais.

“Devido a esse comércio de terras, essas populações acabam em áreas bastante vulneráveis”, alerta o professor do departamento de Geografia da UFC, Jeovah Meireles.

Doutor em Geografia pela Universidade de Barcelona, Jeovah Meireles é professor do curso de Geografia da UFC há 28 anos(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Doutor em Geografia pela Universidade de Barcelona, Jeovah Meireles é professor do curso de Geografia da UFC há 28 anos

“Lugares inundáveis, com problemas de baixo saneamento básico, acessibilidade, qualidade ambiental. Ocupam áreas de bacias hidrográficas, onde há um maior risco de enchentes e inundações”, exemplifica.

Coordenador dos processos que levaram à criação das unidades de conservação da Sabiaguaba, Meireles acompanha comunidades que passam por processos de gentrificação: “Retiradas desses lugares historicamente ocupados, como a Comunidade da Boca da Barra da Sabiaguaba, as populações ali do Serviluz e do Titanzinho, para dar lugar a projetos de polos gastronômicos, edifícios, estacionamentos, etc”.

As vítimas da falta de moradia, mobilidade, serviços de coleta de lixo e saneamento básico ou bom atendimento na área da saúde têm cor no Brasil: é a população não branca (negros, quilombolas, indígenas, ribeirinhos e periféricos) que sofre e é submetida sistematicamente a situações de degradação.

Racismo ambiental é como se denomina o fenômeno que segrega grupos étnicos em lugares com baixa oferta de serviços públicos e periferias das grandes cidades(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Racismo ambiental é como se denomina o fenômeno que segrega grupos étnicos em lugares com baixa oferta de serviços públicos e periferias das grandes cidades

Com menos poder político e econômico, além da exclusão dos lugares de tomada de decisão, esses grupos étnicos vulnerabilizados acabam expostos a fenômenos ambientais nocivos (como poluição do ar, contaminação da água, enchentes e inundações) — um conceito que recebe o nome de racismo ambiental.

“Estamos falando de um País de base étnico-racial autoritária, racista. Então a gente sabe que essas questões também pesam na seleção e produção dos espaços, e como eles são ideologicamente concebidos, inclusive pelo mercado imobiliário”, analisa o arquiteto e urbanista Marcelo Capasso.

Membro do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab), ele sobreleva que em torno de um terço da população fortalezense vive na informalidade em termos de habitação, “obrigada a morar em áreas informais exatamente porque não tem condições materiais de se inserir no mercado imobiliário formal, porque os preços estão muito além das possibilidades materiais dessas pessoas”.

Foto aérea do Canal do Lagamar(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Foto aérea do Canal do Lagamar

Na avaliação de Capasso, que é doutorando em Geografia, esses são processos herdados e consolidados, reforçados pela forma como a legislação urbanística é agenciada: “Como por exemplo as áreas ambientalmente frágeis, elas são exatamente ocupadas pela população pobre, não porque ela desconheça, mas porque são áreas que o governo historicamente fecha os olhos para ocupação irregular”.

Em contraponto, ocupações de alta padrão também se instalam em áreas inadequadas à urbanização no sentido geográfico, a exemplo de edificações em encostas, empreendimentos à beira-mar, loteamentos em entornos de parques e áreas verdes, muitas vezes em dissonância aos aspectos legais.

“Não é falta de planejamento ou de instrumentos, é a forma como eles são agenciados. Ou seja, quem tem o poder de agência sobre os instrumentos que são mobilizados pelos arranjos institucionais de Estado e como eles vão sendo mobilizados exatamente para permitir que determinadas coisas aconteçam, como no caso dos superprédios”, destaca.

Lagoa poluída no Parque do Cocó. Na foto: Vista aérea do Parque do Cocó(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Lagoa poluída no Parque do Cocó. Na foto: Vista aérea do Parque do Cocó

“Muitos autores dizem que a produção de favelas e assentamentos precários é entendida de forma positiva para certos grupos sociais porque é uma forma de amenizar a pressão por políticas públicas”, complementa o geógrafo Alexandre Queiroz.

“Se você deixa as populações resolverem da forma que podem, elas não vão pressionar por prioridades no orçamento, para mudar o jeito de pensar a cidade, o lugar de viver e como ele está sendo constituído. É um termo em francês que se chama laissez-faire, deixar fazer”, coloca.

Na análise do professor, “a cidade é um produto coletivo, não é só das construtoras, da classe média, dos mais ricos. Ela existe porque há produção de riquezas, mas também porque há dimensão da vida, da reprodução, da arte. Então tem de ser apropriada, de acordo com a lei, numa perspectiva de justiça social. Não se pode produzir uma cidade onde os bônus são apropriados por poucos e os ônus são impactados só entre os mais pobres”.

Imagem aérea do viaduto do Cocó (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Imagem aérea do viaduto do Cocó

Motivado pelas observações cotidianas dessas transformações nos cenários das praias da Capital, o artista plástico cearense Diego de Santos produziu mais de 30 obras que conceberam a exposição “Praia e Capital”.

“A moradia sempre foi uma questão para mim, logo esteve presente desde sempre em minha pesquisa artística. Tenho abordado esse tema em suas diferentes camadas, mas sobre o mercado imobiliário, especificamente, foi uma escolha que se deu por muitos motivos”, versa.

“Um deles é a minha percepção sobre a exploração de recursos naturais, como a terra, o vento e o mar, que vem alterando drasticamente a paisagem nos últimos anos. Quando a moradia deixa de ser pensada como direito para ser tratada como mercadoria, o seu entorno entra no ‘catálogo de valores’”, ilustra.

Para dar vida às reflexões sobre a expansão imobiliária em territórios habitados pelos povos do mar, o artista fez uso, dentre outras linguagens, de faixas de ráfia, intervenções comumente utilizadas para a propaganda de imóveis em diferentes pontos da cidade.

“As faixas são proibidas por lei, mas estão lá desde sempre. Só isso já pode levantar discussões sobre a capitalização da terra e moradia. Além disso, elas permanecem onde são colocadas até que o tempo se encarregue de um destino para elas. É um material plástico que polui”, realça.

“Então antes mesmo das edificações sobre a natureza, os dispositivos que seduzem nosso olhar movido pelo desejo de morar perto da natureza ou até mesmo pela realização do sonho da casa própria, já iniciam a degradação”, observa.

Ao comentar sobre o processo criativo das obras, Diego conta que coletava as faixas arrebentadas pelo vento, que se transformavam em tufos de fitas coloridas: “Quando percebi que o vento boicotava a publicidade, pois não se podia mais ler os anúncios, vi que poderia propor uma espécie de parceria e desenvolver algo a partir dali”.

“Usei as tiras coloridas das faixas em desenhos que falam sobre o impacto da expansão imobiliária, as faixas desfiadas em fotografias que comentam a ausência de políticas sociais na construção de moradias, e as madeiras das faixas em arapucas que ironizam os slogans das faixas (‘sem entrada’, ‘sem burocracia’, ‘pronto para construir’, etc.)”, frisa.

 

 

É possível aliar crescimento e desenvolvimento sem atingir o meio ambiente?

 

O conjunto de funções ambientais existentes em áreas verdes com a Sabiaguaba e o Cocó, quando preservado, resulta na melhoria da qualidade de vida e prepara a sociedade para minimizar os efeitos dos extremos climáticos.

Seja pela captura de CO² pelos manguezais, a recarga de aquíferos através das dunas, a conservação de fauna e flora nativas ou dos ventos que amenizam a temperatura da cidade, essas regiões devem estar resguardadas por leis que assegurem sua preservação em meio ao desenvolvimento da Capital.

De acordo com o professor Jeovah Meireles, esse debate, além de possível, é extremamente necessário: “É uma cidade litorânea que está sendo ocupada principalmente em setores onde estão serviços ecológicos fundamentais para enfrentar as consequências previstas pelo relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC)”.

Centro Gastronômico da Sabiaguaba abre licitação para o controle do estacionamento (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Centro Gastronômico da Sabiaguaba abre licitação para o controle do estacionamento

Segundo o pesquisador, caso contrário, as perdas estão relacionadas, dentre diversas outras consequências, com a diminuição da biodiversidade, problemas de impermeabilização do solo e a recarga dos aquíferos, que têm relação direta com a manutenção das lagoas da cidade.

“O Plano Diretor deve levar em conta outras UCs que devem todas ser regidas, administradas e monitoradas num grande mosaico de UCs para enfrentar a especulação imobiliária”, orienta.

Além disso, para Meireles, “alguns procedimentos administrativos, como leis, resoluções, devem ser revistas, principalmente aquelas que de certa forma afrontam esses sistemas ambientais”.

 Trilhas no Parque do Cocó após fortes chuvas em abril deste ano de 2023(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Trilhas no Parque do Cocó após fortes chuvas em abril deste ano de 2023

Na avaliação de Patriolino Dias, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado do Ceará (Sinduscon-CE), é possível, sim, aliar a demanda impulsionadora do desenvolvimento urbano em uma cidade densamente ocupada como Fortaleza sem prejuízos ao meio ambiente

“Desde que haja uma abordagem equilibrada, com planejamento adequado, regulação eficiente e uma alocação estratégica dos recursos arrecadados através das outorgas onerosas, priorizando as necessidades sociais e a preservação ambiental, promovendo melhorias sociais e urbanas”, pondera.

No que diz respeito a instrumentos urbanísticos que podem contribuir para essa construção, Patriolino menciona as outorgas onerosas: “Uma das grandes vantagens é que elas podem gerar recursos financeiros para o Poder Público aplicar em áreas vulneráveis do ponto de vista ambiental, requalificar áreas degradadas, direcionar para obras de interesse social, infraestrutura urbana, transporte público e espaços públicos de lazer, garantido uma cidade mais inclusiva e equilibrada”.

Patriolino Dias aposta em localização privilegiada de novo empreendimento (Foto: Fábio Lima)
Foto: Fábio Lima Patriolino Dias aposta em localização privilegiada de novo empreendimento

Dias afirma que o Sindicato, preocupado com as questões urbanísticas da cidade e com o cumprimento das legislações, tem presença assídua nas reuniões da Comissão Permanente de Avaliação do Plano Diretor (CPPD), instância deliberativa da Seuma em que projetos são discutidos e avaliados.

Opinião compartilhada por Robson Bizarria, diretor do Sindicato dos Corretores de Imóveis do Ceará (Sindimóveis), que vê a outorga onerosa como uma saída para o controle a organização da expansão da Capital.

“É uma constante e sem dúvida alguma não é um projeto embrionário e exclusivo de Fortaleza. Já ocorre em São Paulo há muitos anos e irrefutavelmente serviu para reorganizar as cidades que, em alguns casos, possuem áreas improdutivas sem relevante valor financeiro por serem impedidas para construção”, indica.

“Atualmente ao invés de possuírem aspectos de abandono que serviam apenas para prejudicar o embelezamento local e possuindo até riscos à segurança dos moradores e transeuntes, hoje essas áreas dão lugar a um novo panorama comercial ou residencial”, comenta.

Para Bizarria, as outorgas são uma via de mão dupla, “buscando auxiliar a Prefeitura e suas devidas responsabilidades com o meio ambiente e ampliar os investimentos e crescimento da zona urbana”.

Dessa forma, no ponto de vista do diretor, nasce um divisor de águas para a cidade, “fazendo um efeito que posso dividir em quatro partes: Ganha a administração pública; ganha o investidor; a sociedade de modo geral, haja vista que, a área será melhor valorizada e ganha a cidade, tornando-a mais embelezada, organizada, produtiva e respeitando e se adequando ao equilíbrio com o meio ambiente”.

O administrador e corretor de imóveis Sérgio Porto acredita que “esse tipo de legislação e esse tipo de discussão da sociedade civil com a classe política, quer seja legislativo ou executivo, possibilita que os empreendedores e incorporadores façam projetos desafiadores que moldam a nova face de Fortaleza”.

Antônio Sérgio Porto, Presidente da Secovi para o Caderno Customizado Secovi(Foto: 04 19)
Foto: 04 19 Antônio Sérgio Porto, Presidente da Secovi para o Caderno Customizado Secovi

Para ele, que discorda do termo “especulação”, são movimentos que oportunizam que o litoral cearense cresça: “Pois se tem um eixo de desenvolvimento e crescimento, mas é algo que tem de ser feito com inteligência, sustentável”.

Presidente do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis do Estado do Ceará (Secovi-CE), Porto cita as Operações Urbanas Consorciadas (OUCs) que também são instrumentos que fomentam essa relação.

“O One, que possibilitou um contato maior com aquele parque que tem frente, o shopping Riomar Papicu, são investimentos pesados e ficou uma beleza aquelas áreas”, discorre.

“Shopping center, você morar ao lado de um é uma maravilha. Morar em um conjunto de prédios habitacionais que tem uma torre comercial, você trabalha lá, almoça no shopping, compra a roupa lá, vai ver um filme lá, sua vida tá toda resolvida lá, então você quer morar perto e aí valoriza aquela área. São áreas que vão se descobrindo”, finaliza.

"Olá! Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários :) até a próxima!"

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