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Feito à mão: força e riscos da autoconstrução nas periferias de Fortaleza
Reportagem Seriada

Feito à mão: força e riscos da autoconstrução nas periferias de Fortaleza

Brasil se ergue sob moradias precárias em regime de autoconstrução e dados acendem alerta para necessidade de uma arquitetura acessível e segura às comunidades periféricas. Um direito que quase ninguém conhece. Arquitetura ainda vista como luxo. Falta vontade política
Episódio 4

Feito à mão: força e riscos da autoconstrução nas periferias de Fortaleza

Brasil se ergue sob moradias precárias em regime de autoconstrução e dados acendem alerta para necessidade de uma arquitetura acessível e segura às comunidades periféricas. Um direito que quase ninguém conhece. Arquitetura ainda vista como luxo. Falta vontade política Episódio 4
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Num país desigual como o Brasil, a maioria das moradias é feita com o que se tem à mão: tempo apertado, improviso e necessidade. Desamparadas pelo poder público e impossibilitadas de acessar o mercado imobiliário formal, as famílias brasileiras encontram na autoconstrução "Processo de construção da casa (própria ou não) por seus moradores, que podem ser auxiliados por parentes, amigos, vizinhos ou por profissional remunerado (geralmente pedreiros/mestres de obra)" a única forma de se erguer.

Seja em regime de mutirão, coletivamente, ou de maneira individual com o auxílio de pedreiros e mestres de obras, há muita gente que entorta as costas entalhando vigas e telhados sem amparo técnico algum. A autoconstrução é realidade de 82% das obras no País, segundo o levantamento “Como o Brasil constrói”.

Sem arquiteto, engenheiro, planta ou projeto, essa prática é o que há décadas sustenta o crescimento das cidades brasileiras, principalmente nas periferias urbanas.

Casas simples no bairro Siqueira, na periferia de Fortaleza. O tamanho e a divisão seguem o mesmo padrão na maioria dessas construções(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Casas simples no bairro Siqueira, na periferia de Fortaleza. O tamanho e a divisão seguem o mesmo padrão na maioria dessas construções

As construções ou reformas começam com o dinheiro suado do 13º salário, FGTS, empréstimo ou da economia feita com muito sacrifício — e continuam por anos, já que as condições são limitadas.

A casa surge aos pedaços, por etapas, pois depende de investimento financeiro e está sempre em modificação: seja porque a família aumentou ou porque ainda não há o básico.

Em Fortaleza, onde quase metade da população vive em assentamentos precários, não seria diferente: a autoconstrução também prevalece. Mas não é preciso adentrar becos e vielas para notar isso — basta sair da área nobre e observar quando as construções começam a ficar rarefeitas.

Assentamentos precários em Fortaleza

 

A paisagem da Cidade é marcada por puxadinhos, triplex que desafiam a gravidade e obras feitas à mão e com pouco.

O que sustenta esse tipo de construção, porém, é também o que a torna frágil. A falta de orientação técnica coloca em risco quem mora nessas casas: instalações elétricas precárias, ausência de ventilação, pisos escorregadios, pouca entrada de luz natural, saneamento improvisado, escadas inseguras, rachaduras.

As consequências podem se manifestar de diversas formas: de doenças e acidentes domésticos até problemas psicológicos.

Grupo Serviluz em Cores se reúne para pintar a casa de moradores do Titanzinho(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Grupo Serviluz em Cores se reúne para pintar a casa de moradores do Titanzinho

Isso inclui doenças respiratórias causadas pelo excesso de umidade e proliferação de mofo, ou pelo contato direto com a terra, pela falta de saneamento básico ou de ventilação.

São condições que pioram quando se observa desde a superlotação de cômodos até ruídos da vizinhança, altas temperaturas e baixa qualidade de água e ar.

As diretrizes de habitação e saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) são precisas: melhores condições de moradia podem salvar vidas, prevenir doenças, aumentar a qualidade de vida, reduzir a pobreza e ajudar a mitigar as mudanças climáticas.

 

A OMS recomenda uma série de medidas para reduzir os riscos à saúde decorrentes de moradias precárias — o que inclui mudanças no ambiente já construído e introdução de empréstimos e subsídios.

De acordo com a OMS, moradias saudáveis estão se tornando cada vez mais importantes devido a mudanças como o crescimento urbano, o envelhecimento populacional e a crise climática.

Entre os efeitos de melhorias em condições habitacionais básicas — como banheiro próprio, interno e dispondo de água aquecida — estão a diminuição de sintomas de depressão, ansiedade, transtornos mentais e melhora do rendimento das crianças na escola.

Áreas de risco em comunidade do Serviluz: cenário de alerta. Segundo a OMS, moradias saudáveis reduzem risco à saúde das pessoas(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Áreas de risco em comunidade do Serviluz: cenário de alerta. Segundo a OMS, moradias saudáveis reduzem risco à saúde das pessoas

Mas a questão não é simplesmente conforto. Exemplo prático: um ambiente com boa iluminação natural possibilita tanto a economia de energia elétrica quanto a melhora de humor, saúde e aumento da energia vital em seus ocupantes.

Além disso, é preciso levar em conta a ocorrência de acidentes domésticos e a sua relação com aspectos da edificação.

Dados do Ministério da Saúde levantados pela Central de Dados do O POVO+ apontam que, entre 2020 e 2023, quase 1.600 crianças e adolescentes de 0 a 15 anos morreram vítimas de acidentes domésticos evitáveis como quedas, choques elétricos, intoxicações e afogamentos.

Estudo da OMS aponta que recursos como banheiro próprio e água aquecida estão associados à redução de sintomas de depressão, ansiedade, transtornos mentais, além da melhoria do rendimento das crianças na escola(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Estudo da OMS aponta que recursos como banheiro próprio e água aquecida estão associados à redução de sintomas de depressão, ansiedade, transtornos mentais, além da melhoria do rendimento das crianças na escola

Soluções construtivas como evitar a exposição da fiação elétrica, melhorar definição do layout e organização interna (como evitar móveis próximos a janela ou armazenar produtos tóxicos em locais fora do alcance dos pequenos) poderiam ter evitado muitos desses óbitos ou internações graves.

O problema não está só na falta de dinheiro, mas na ausência do Estado. A Lei da Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (Athis), sancionada em 2008, garante o direito ao acompanhamento de arquitetos e engenheiros para famílias de baixa renda.

Mas essa política pública ainda é subaplicada em quase todo o País. Na prática, a maioria segue construindo sem orientação, enfrentando sozinha os desafios que deveriam ser coletivos.

Além do conforto, moradias saudáveis, com boa iluminação natural, contribui para economia de energia e para a redução de acidentes domésticos(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Além do conforto, moradias saudáveis, com boa iluminação natural, contribui para economia de energia e para a redução de acidentes domésticos

É preciso compreender a moradia como mais do que um teto. Ela estrutura a vida de uma pessoa, interfere em sua saúde, dignidade e perspectiva de futuro. Deve oferecer segurança, identidade, descanso. Precisa dar conta da complexidade da vida cotidiana.

Em um país onde a maior parte das moradias é feita por quem nunca teve acesso à arquitetura formal, no entanto, essa idealização esbarra no concreto cru da desigualdade.

 

 

Assentando os tijolos da autoconstrução

Você já parou para pensar no impacto que a sua casa tem na sua vida? Já percebeu que, para além de um simples espaço físico, o lugar de onde você sai e para onde você volta todos os dias tem influência direta no seu bem-estar?

Testemunha de dias cansados e noites agitadas, abrigo de pensamentos, anseios e discussões — a casa é refúgio físico, mas também psicológico. Guardiã de identidades, ela te lembra diariamente quem você é.

Mas enquanto, para alguns, o principal dilema é reorganizar o layout da cozinha para fazer caber uma cristaleira, para muitos a prioridade é simplesmente conseguir um teto sem goteiras que proteja a família em noites de chuva.

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Há, portanto, casas que acolhem, curam e oferecem descanso. E outras, pelo contrário, que adoecem corpos e esgarçam vínculos. Talvez seja aí onde reside a diferença entre casa e lar.

Morar com dignidade — em espaço seguro, iluminado e adequado — influencia diretamente a saúde física e emocional dos moradores. A casa onde se vive interfere na forma como se trabalha, se estuda, se sonha.

Em “A arquitetura da felicidade”, o filósofo Alain de Botton ilustra: “Um quarto feio pode coagular vagas desconfianças quanto ao que está faltando na vida, enquanto outro ensolarado, revestido com pedras calcárias cor de mel, é capaz de dar sustentação às nossas maiores esperanças”.

 

 

Pedreiro: com experiência prática, ele é quem sustenta a autoconstrução no dia a dia

 

Quantos e quais materiais comprar? O que precisa ser feito primeiro? Posso construir até onde no meu terreno? É seguro subir mais um andar? Onde colocar tomadas, lâmpadas e encanações? Como garantir que a casa não vai alagar? Posso ampliar depois? Na ausência do projeto técnico, é comum que o próprio pedreiro ou mestre de obras, com sua experiência, ajude o cliente a tirar essas e outras dúvidas, visualizar e organizar o que precisa ser feito.

 

Francisco Cristiano da Silva Freitas aprendeu a construir observando os tios assentarem tijolos. Era menino ainda, servente na lida pesada do canteiro, mas já sentia que ali havia algo mais do que cimento e reboco. Havia dignidade. Havia futuro.

Hoje, aos 39, atende por Cristiano Construções — nome que virou marca e compromisso. Das vigas ao acabamento, há 23 anos na construção civil, ele se tornou mestre do ofício que tanto ama.

“Comecei com incentivo dos meus tios, que eram pedreiros. Fui aprimorando e aperfeiçoando até me tornar uma referência nessa profissão que tanto respeito”, conta.

Francisco Cristiano da Silva Freitas é autodidata, aprendeu a construir vendo o trabalho dos tios pedreiros e hoje tem seu negócio(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Francisco Cristiano da Silva Freitas é autodidata, aprendeu a construir vendo o trabalho dos tios pedreiros e hoje tem seu negócio

Cristiano é da linha de frente da autoconstrução que abriga vidas, rotinas e descansos, que sustenta o crescimento de Fortaleza feito à mão e com pouco.

Trabalha onde o asfalto hesita em chegar, onde a planta da casa muitas vezes se desenha no chão de barro ou na ponta do dedo sobre a parede ainda crua.

“Me procuram pessoas de todo tipo: classe baixa, média, alta. Mas a maioria é humilde e quer melhorar o que tem: uma reforma no banheiro, uma cozinha mais ajeitada, um segundo andar, uma calçada nova.”

Cristiano presta serviço para as várias classes sociais, mas reconhece que sua principal clientela são pessoas humildes que quer reformar o bannheiro ou uma calçada nova(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Cristiano presta serviço para as várias classes sociais, mas reconhece que sua principal clientela são pessoas humildes que quer reformar o bannheiro ou uma calçada nova

Não raro, ergue lares inteiros com famílias morando dentro. Um triplex foi seu maior desafio. “Eles não tinham pra onde ir. Moravam na casa enquanto eu construía. Foi incrível. No final, consegui entregar tudo com sabedoria e inteligência de Deus, né? Graças a Ele, deu certo.”

Às vezes, o cliente chega com projeto assinado por arquiteto e engenheiro. Outras vezes, não. “Aí sou eu que desenho o rascunho, escuto a ideia, entendo a realidade da pessoa. A gente vai adaptando, fazendo mudanças, até ficar do gosto do cliente. Tem que ser com eficiência.”

Para ele, o valor da casa não está no número de andares ou no tipo de acabamento, mas no suor que a ergue. “Uma casa boa pra se morar é aquela que você olha e diz: ‘Essa é minha’. Trabalhei, lutei, conquistei. Com esforço, noites mal dormidas, trabalhando até tarde. Esse é meu teto.”

Segundo Cristiano, os serviços são feitos, em sua maioria, com a família morando porque não tem para onde ir(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Segundo Cristiano, os serviços são feitos, em sua maioria, com a família morando porque não tem para onde ir

Um dia, Cristiano precisou reformar uma casa que o tempo e as fissuras já ameaçavam, mas que a memória mantinha de pé: “Tinha sido construída pelo pai do cliente, que era mestre de obra e já tinha falecido. O filho não queria demolir de jeito nenhum. Então, fiz reforços, pilares, vigamentos. Mantive a originalidade. Foi desafiador. Essa reforma já tem nove anos. Até hoje, o cliente me agradece.”

Se existisse um programa que trouxesse arquitetos e engenheiros para trabalhar junto com os moradores e com os pedreiros, Cristiano acredita que seria bem-vindo — e necessário. O mestre de obras acredita na parceria entre prática e teoria.

“Trabalhar com arquiteto e engenheiro é sempre muito bom. Eles trazem o conhecimento técnico. A gente executa. Juntos somos mais fortes pra entregar o melhor.”

Quando o cliente não tem projeto feito por engenheiro ou arquiteto, o próprio Cristiano desenha depois de conversar e entender o desejo e a realidade do cliente(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Quando o cliente não tem projeto feito por engenheiro ou arquiteto, o próprio Cristiano desenha depois de conversar e entender o desejo e a realidade do cliente

O jovem pedreiro percebe que a profissão tem ficado escassa mesmo diante de uma demanda cada vez maior. Por isso, a quem quiser seguir seus passos, ele deixa um recado: “Sejam responsáveis, deem o melhor. Essa área está escassa, mas se renova todo mês, todo ano. E é uma profissão que pode colocar você no patamar de muitos profissionais de outras áreas. Um dia de cada vez, um passo de cada vez. Façam o nome de vocês. Tempo é o que a gente tem. Entreguem qualidade.”

Para saber o que pensam os engenheiros sobre essas obras populares feitas de maneira informal em Fortaleza, O POVO+ buscou o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea/CE) e levou alguns pontos sobre a realidade da autoconstrução de moradias nas periferias de Fortaleza.

O engenheiro civil Fernando Galiza, presidente do Crea/CE, explicou que o Conselho atua na fiscalização de obras e serviços realizados por profissionais registrados, o que é “uma forma de combater o exercício ilegal da profissão” e de “evitar a ocorrência de riscos estruturais que podem levar a acidentes fatais e prejuízos gerais, independente da natureza econômica da construção”.

Galiza salientou, também, que o Crea/CE fornece apoio logístico ao Escritório de Tecnologia Social da Universidade Federal do Ceará (Etecs/UFC), projeto de extensão que promove assistência técnica para pessoas de baixa renda e que será mais conhecido no segundo episódio dessa série de reportagens.

 

 

“Assim como se automedicam por falta de acesso ao médico, também constroem por conta própria por não conseguirem arquiteto”

 

Por trás de cada parede erguida com sacrifício, mora a ausência do Estado. Conselheiro do CAU-CE, Rérisson Máximo analisa como a autoconstrução molda o cenário urbano do Ceará — e por que é urgente democratizar a arquitetura.

 

Essa forma de construir — sem a presença de arquitetos ou engenheiros — não é exceção entre os cearenses, como explica Rérisson Máximo, arquiteto, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e conselheiro estadual do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Estado (CAU/CE).

“O Ceará segue a realidade do restante do País, onde predomina a autoconstrução da moradia. No entanto, o Nordeste em geral apresenta aspectos particulares acerca do problema habitacional que dão dimensões características à região”, diz.

Na Capital, a precariedade tem endereço certo: nas comunidades urbanas, loteamentos irregulares e áreas de risco. Rérisson lembra que assentamentos precários abrigam 41% da população de Fortaleza — e são, em sua maioria, construídos sem qualquer assistência técnica.

Além de arquiteto e urbanista, o conselheiro estadual do CAU/CE, Rérisson Máximo, é técnico em edificações pelo IFCE, onde atua como professor do eixo de infraestrutura, construção civil e meio ambiente(Foto: Rérisson Máximo/Acervo pessoal)
Foto: Rérisson Máximo/Acervo pessoal Além de arquiteto e urbanista, o conselheiro estadual do CAU/CE, Rérisson Máximo, é técnico em edificações pelo IFCE, onde atua como professor do eixo de infraestrutura, construção civil e meio ambiente

Dados recentes da Fundação João Pinheiro, instituição responsável pelo cálculo do déficit habitacional "O déficit habitacional no Brasil refere-se à falta de moradias adequadas para a população, incluindo famílias sem teto e aquelas que vivem em condições precárias. Ele é calculado considerando não apenas a falta de moradias, mas também a inadequação de lares existentes, como habitações precárias, coabitação (onde várias famílias dividem o mesmo espaço) e o ônus excessivo com aluguel. " no Brasil em parceria com a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, mostram que o Nordeste é a segunda região com maior número proporcional de habitações precárias e inadequadas — aquelas com problemas estruturais, de saneamento e de regularização fundiária.

“A baixa renda da população e a ausência de políticas públicas de assistência técnica distanciam moradores de favelas e comunidades urbanas de profissionais da engenharia e da arquitetura e do urbanismo”, afirma Rérisson.

O preço da ausência do Estado aparece na saúde das pessoas e na própria estrutura das cidades. Casas com fundações mal executadas, sem ventilação adequada, com pouca iluminação e saneamento precário são fontes constantes de insegurança e de adoecimento.

“Construir por conta própria, ainda que seja a forma mais presente nas nossas cidades, traz inúmeros riscos para os moradores. O resultado, muitas vezes, são edificações com baixa qualidade construtiva que podem representar, inclusive, risco estrutural”, alerta o conselheiro.

E os impactos vão além da parede mal acabada ou do piso irregular. A precariedade construtiva se infiltra nas relações urbanas e no acesso a direitos básicos.

“Em favelas e comunidades urbanas, onde predomina a autoconstrução, as vias de acesso às casas, por vezes estreitas e irregulares, impedem ou dificultam a implantação de redes de infraestrutura de saneamento e o acesso a serviços públicos como a coleta de lixo e ambulâncias.”

Ele comenta sobre a Lei Federal nº 11.888/2008, que garante às famílias com renda de até três salários mínimos o direito à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de suas casas.

Construções e reformas feitas por profissionais legalmente habilitados

“Infelizmente, a Lei da Assistência Técnica ainda não ‘pegou’. E isso não é algo apenas no Ceará, mas uma realidade em todo o país. O principal entrave é a ausência de políticas públicas em habitação que busquem regulamentá-la. Mas é preciso também entender que política pública só se faz com financiamento”, explica.

Outro obstáculo é a falta de informação — tanto por parte dos gestores quanto da população. “Há um grande desconhecimento desta lei por parte de gestores públicos e mesmo por segmentos da sociedade civil, o que impede inclusive que estes possam cobrar as prefeituras e os governos estaduais pela implementação da lei e pela garantia dos direitos que ela apresenta.”

Para a maioria da população, arquitetura ainda é percebida como um serviço inacessível, elitizado. Essa barreira cultural tem raízes profundas.

Quem você contratou para sua obra?


“Historicamente, a arquitetura e o urbanismo no Brasil estiveram muito ligados às grandes obras e ao atendimento das demandas da população de maior renda. As universidades, por muito tempo, formaram profissionais voltados para atender principalmente a classes mais abastadas ou a projetos governamentais de grande porte”, observa o arquiteto.

No dia a dia das famílias em situação de vulnerabilidade, o desafio é conseguir o mínimo para reformar ou ampliar a casa: “A precariedade é tamanha que quase não sobra recursos financeiros para comprar uma porta, uma janela, um milheiro de tijolos e algumas sacas de cimento.”

Nesse contexto, o acesso a um arquiteto parece um luxo impensável — mesmo quando não é. “Contratar um profissional da arquitetura e do urbanismo não é caro como muitas vezes se pensa que é.”

Você considera moradias precárias um problema de saúde pública?


A solução, para o conselheiro do CAU-CE, passa por um caminho evidente: implementar a Athis — sigla para Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social — como política pública, com financiamento estável e execução ampla.

“O CAU e outras entidades defendem a implementação da Lei de Assistência Técnica como uma espécie de SUS (gratuito, público e acessível) para construção de espaços habitacionais e urbanos.”

Essa política, além de garantir o direito das famílias, ampliaria o campo de atuação de arquitetos e urbanistas, que hoje ainda concentram suas atividades em áreas como interiores e edificações de alto padrão, sobretudo nas capitais.

 

“No Ceará, predominam profissionais atuando na Capital e com arquitetura e interiores. Esses dados têm sido utilizados inclusive para que o CAU-CE possa pensar em ações no sentido de ampliar a atuação profissional em outros campos com demanda, mas que não têm sido atendidas, como é o caso da Athis.”

O Conselho já atua com editais de apoio a projetos de Athis, promove debates públicos e tem dialogado com prefeituras e universidades.

“Em 2024, foram destinados cerca de R$ 120 mil para duas ações em Fortaleza. É um recurso limitado, mas que tem sido importante inclusive como forma de mostrar ao poder público e também para a sociedade civil como podemos pensar em uma política pública de assistência técnica para habitação.”

Especialista alerta que o problema da moradia está para além da falta de dinheiro,  mas na ausência do Estado(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Especialista alerta que o problema da moradia está para além da falta de dinheiro, mas na ausência do Estado

Para mudar essa realidade, Rérisson defende que é preciso mudar também a forma de formar. “É preciso que as universidades e faculdades passem a entender a temática da habitação social e da assistência técnica como campo de atuação profissional e uma demanda social significativa.”

“Assim como as pessoas se automedicam por falta de acesso ao médico, elas também constroem por conta própria por não conseguirem contratar um arquiteto”, compara.

Hoje, poucas instituições formam profissionais preparados para atuar em territórios vulneráveis. A criação de residências técnicas em Athis — ainda inexistentes no Ceará — poderia ser um caminho para atrair recém-formados e gerar impacto social concreto.

Uma lei de 2008 garante o direito ao acompanhamento de arquitetos e engenheiros para famílias de baixa renda, porém é subaplicada(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Uma lei de 2008 garante o direito ao acompanhamento de arquitetos e engenheiros para famílias de baixa renda, porém é subaplicada

Para o conselheiro, o desafio da moradia é grande demais para ser enfrentado por um ator só. “O problema da moradia é amplo e complexo e por isso deve envolver diversos sujeitos no seu enfrentamento.”

O poder público precisa agir. A sociedade civil precisa cobrar. E a arquitetura, finalmente, precisa cumprir sua função social — não apenas como técnica, mas como ferramenta de cidadania.

 

  

“Arquitetura para todos”: como tornar a assistência técnica uma política pública real no Brasil

Num país onde mais de 13 milhões de famílias vivem em moradias inadequadas, com problemas que vão da falta de banheiro à estrutura comprometida, a arquitetura segue sendo vista, por muitos, como artigo de luxo — um serviço reservado a poucos.

Na outra ponta dessa percepção, está a luta por uma arquitetura pública, acessível e transformadora, como defende a arquiteta e urbanista Jeanne Versari, coordenadora da Câmara Temática de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (Athis) do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR).

“Esse distanciamento histórico entre a arquitetura e as classes populares tem várias nuances”, aponta Jeanne. Ela menciona o processo acelerado de urbanização das periferias brasileiras nas décadas da industrialização, um movimento descrito pela professora Ermínia Maricato como a “urbanização dos baixos salários”.

A arquiteta e urbanista Jeanne Versari é conselheira federal pelo Paraná no Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), onde também atua como coordenadora da Câmara Temática de Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (Athis). Versari ainda é pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (Labhab), da FAU/USP(Foto: Jeanne Versari/Acervo pessoal)
Foto: Jeanne Versari/Acervo pessoal A arquiteta e urbanista Jeanne Versari é conselheira federal pelo Paraná no Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), onde também atua como coordenadora da Câmara Temática de Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (Athis). Versari ainda é pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (Labhab), da FAU/USP

Foram famílias que, nos finais de semana, ergueram com as próprias mãos as casas que hoje sustentam a vida de boa parte da população urbana do país.

Sem apoio técnico, projetaram o essencial a partir do improviso e da urgência. A formação dos arquitetos, por sua vez, também reforçou o abismo: “Historicamente, o ensino de Arquitetura e Urbanismo desconsidera os projetos de espaços cotidianos. Isso elitizou a formação e perpetuou a crença de que todos os graduados atuam com obras do zero — o que, na prática, é muito distante da realidade.”

O desafio, portanto, é estrutural. E exige articulação entre formação profissional, orçamento público e valorização das iniciativas que já atuam nos territórios.

A Lei 11.888/2008, que garante o direito à assistência técnica gratuita para famílias de baixa renda, é um marco nesse caminho. Mas, passados 15 anos, sua aplicação ainda é pontual e frágil.

Para Jeanne, o principal gargalo está na ausência de financiamento contínuo. “Sem previsão orçamentária, não é possível ter uma política pública efetiva”, alerta.

A regulamentação da lei nos estados e municípios é outro passo urgente. E, segundo a arquiteta, isso deve acontecer antes de qualquer tentativa de reformulação da legislação federal.

“Temos uma lei abrangente. Nosso desafio é fazer com que ela chegue, de fato, para quem precisa.” Essa chegada, muitas vezes, se dá pelas mãos das Organizações da Sociedade Civil (OSCs), que atuam diretamente com melhorias habitacionais.

Uma pesquisa feita pelo CAU/BR em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelou que há pelo menos 617 OSCs atuando com Athis — um número muito superior ao que constava em registros oficiais.

Projeto para mapeamento das Assistências Técnicas para Habitações de Interesse Social (Athis) está sendo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil(Foto: Ascom CAU-BR)
Foto: Ascom CAU-BR Projeto para mapeamento das Assistências Técnicas para Habitações de Interesse Social (Athis) está sendo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil

“Dar visibilidade a essas organizações é fundamental para estruturar uma política de melhorias habitacionais com orçamento e alcance direto nos territórios.”

Para o CAU, essas OSCs compõem o que chamam de “economia popular da arquitetura”. E não se trata apenas de um reconhecimento simbólico.

Jeanne defende que é preciso transformar esse ecossistema de saberes e práticas em política pública consolidada, com financiamento, formação continuada e parcerias estáveis.

Uma visão mais ampla e social aponta para a compreensão da moradia nao apenas como um teto, mas como um mecanismo de dignidade , segurança, identidade, descanso(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Uma visão mais ampla e social aponta para a compreensão da moradia nao apenas como um teto, mas como um mecanismo de dignidade , segurança, identidade, descanso

Um dos esforços em curso nesse sentido é o projeto “Arquitetura e Urbanismo para Todos”, que até o fim de 2025 lançará um curso nacional online voltado à capacitação de OSCs e gestores públicos para a implementação da Athis.

Mesmo entre arquitetos recém-formados, o interesse pela habitação social vem crescendo. Segundo Jeanne, a curricularização da extensão universitária tem aproximado estudantes das realidades periféricas e, junto com ela, ganham corpo os trabalhos de conclusão de curso voltados à moradia popular. Mas a mudança precisa ser mais profunda.

“As diretrizes curriculares em vigor até recentemente sequer mencionavam a palavra ‘habitação’. Um incentivo concreto seria a estruturação de residências técnicas Brasil afora, com bolsas e capacitação em parceria entre universidades e governos.”

Para a arquiteta e urbanista Jeanne Versari, a principal dificulade para a aplicação da lei que garante o direito à assistência técnica gratuita para famílias de baixa renda é a falta de financiamento contínuo. Ela diz que sem previsão orçamentária, não é possível ter uma política pública efetiva(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Para a arquiteta e urbanista Jeanne Versari, a principal dificulade para a aplicação da lei que garante o direito à assistência técnica gratuita para famílias de baixa renda é a falta de financiamento contínuo. Ela diz que sem previsão orçamentária, não é possível ter uma política pública efetiva

Athis, afinal, é mais do que política habitacional. Para Jeanne, ela é também uma política de saúde pública, de justiça social e de adaptação climática.

“A relação entre saúde e habitação é direta. Cuidar da saúde da casa é cuidar da saúde do morador. E prevenir novas doenças.” Ao deixar de investir na assistência técnica, o País corre o risco de aprofundar desigualdades, reforçar moradias precárias e comprometer a cidadania.

“Por outro lado, se a arquitetura brasileira assumir sua função social, poderá se reconectar com as necessidades reais da população. ATHIS é uma ferramenta de transformação social concreta e necessária.”

Em um Brasil onde ainda se constrói com esforço, suor e cimento, o que falta é um Estado que enxergue — e financie — o poder transformador de uma arquitetura feita à mão, mas com direito garantido em lei.

 

 

No próximo episódio

 

Melhorias habitacionais podem proporcionar dignidade e conforto para pessoas que não podem pagar por serviços de arquitetura e engenharia em suas construções ou reformas. Na próxima reportagem dessa série sobre autoconstrução, conheça projetos que tornam essa solução possível e acessível, aliando a experiência de pedreiros com a necessidade de intervenção técnica que diminui riscos e assegura qualidade de vida.

 

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  • Textos e recursos digitais Karyne Lane
  • Edição O POVO+ Fátima Sudário
  • Identidade visual Camila Pontes
  • Imagens Fernanda Barros, Samuel Setúbal, Júlio Caesar
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