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Pan-Amazônia: países chegam à COP16 com grandes desafios na gestão transnacional da floresta
Reportagem Seriada

Pan-Amazônia: países chegam à COP16 com grandes desafios na gestão transnacional da floresta

Há décadas países amazônicos mantêm um tratado de cooperação, mas nos planos de ação não existem metas ou objetivos claros de gestão colaborativa
Episódio 4

Pan-Amazônia: países chegam à COP16 com grandes desafios na gestão transnacional da floresta

Há décadas países amazônicos mantêm um tratado de cooperação, mas nos planos de ação não existem metas ou objetivos claros de gestão colaborativa
Episódio 4
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As cidades de Tabatinga e Letícia parecem ser um só município, mas estão em países diferentes. A primeira pertence ao Brasil e a outra à Colômbia, mas a única divisão entre elas é uma linha imaginária na avenida da Amizade (no Brasil), transformando-a na Carrera 6 (na Colômbia). Já a oeste da avenida, a divisão geopolítica imaginária está em algum lugar do rio Amazonas, e do outro lado se chega ao Peru.

 

 

A fronteira Brasil-Colômbia-Peru é apenas uma em terras amazônicas. Ao todo, nove países compartilham o bioma como parte de seus territórios. São 7.004.120 km² de terra, sem considerar a extensão da bacia hidrográfica. O Brasil tem a maior parcela da floresta (60,3%), seguido do Peru (11,3%) e da Colômbia (6,95%).

A conservação do bioma é vista pelo mundo como um dos pontos fundamentais para a proteção da biodiversidade e para o combate à crise climática. O desafio é grande - pela extensão territorial e por questões diplomáticas.

A cooperação transnacional pela proteção da Amazônia será um dos pontos a serem discutidos na Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP16 de Biodiversidade), que será realizada entre 21 de outubro e 1º de novembro na cidade de Cali, na Colômbia.

 

 

Historicamente, os países já articularam acordos voltados para a gestão unificada do bioma, muitos por meio da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que foi criada em 1995 para implementar os objetivos do Tratado de Cooperação Amazônica, assinado em 1978.

Apenas a Guiana Francesa não faz parte da organização, que se propõe “ser um fórum permanente de cooperação, intercâmbio e conhecimento, guiado pelo princípio de redução das assimetrias regionais entre os Países Membros”.

Um desses acordos é a Declaração de Belém, voltada para a gestão sustentável da bacia amazônica, aprovada em 2023, cujo texto promete “novo impulso à agenda comum de cooperação (...) adaptando-a às novas realidades regionais e globais, para garantir a conservação, a proteção e a conectividade ecossistêmica e sociocultural da Amazônia".

A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica reúne oito países amazônicos, menos a Guiana Francesa(Foto: Divulgação/OTCA)
Foto: Divulgação/OTCA A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica reúne oito países amazônicos, menos a Guiana Francesa

 

 

Expectativas para a COP16 de Biodiversidade

O principal pilar da COP16 de Biodiversidade será o Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, instituído durante a COP15, em 2022, em Montreal (Canadá). O marco estabelece quatro objetivos gerais para 2050 e 23 metas para 2030, substituindo as Metas Aich, além de estabelecer instrumentos de implementação e indicadores de monitoramento para impedir e reverter a perda de biodiversidade até 2030.

Por meio dele, os países se comprometem a garantir uma biodiversidade valorizada, conservada e restaurada até 2050, levando em consideração não apenas fauna e flora, mas também a etnobiodiversidade.

 

Até a COP16 os países devem entregar novas Estratégias Nacionais e Planos de Ação para a Biodiversidade (NBSAPs, na sigla em inglês) alinhadas às metas do marco global, o que a maioria, incluindo o Brasil, ainda não fez.

No começo de setembro deste ano, a OTCA promoveu um encontro para discutir as pautas da COP16, e estabeleceu como prioridades abordar a conservação da biodiversidade, o uso sustentável de seus componentes e o compartilhamento justo dos benefícios gerados pelos recursos genéticos. Outro tópico destacado foi a necessidade de reforçar a fiscalização e as políticas públicas para combater o desmatamento, assim como adquirir financiamento para essas iniciativas.

Porém, nas NBSAPs mais recentes dos três países com maior parcela do bioma, não há previsão clara de uma gestão transnacional. Cada um estabelece estratégias próprias para a conservação da Amazônia.

 

 

O Brasil, na NBSAP de 2017, traz com maior destaque a criação de unidades de conservação (de acordo com o plano, 30% para a Amazônia, em comparação a 17% entre os outros biomas) e demarcação de terras indígenas. A Colômbia, no plano de 2017, propõe conservação e preservação aliadas a programas voltados para a segurança alimentar e para o fomento das economias rurais, criando planos regionais de negócios verdes relacionados com a Gestão Abrangente da Biodiversidade e seus Serviços Ecossistêmicos (Gibse).

O plano do Peru mais atual é uma versão ainda mais defasada, publicada em 2015, e aposta na valorização dos saberes indígenas e tradicionais para o desenvolvimento de tecnologias de desenvolvimento sustentável. O documento não define de maneira concreta como se daria esse estímulo.

Bráulio Dias é doutor em Zoologia pela Universidade de Edimburgo(Foto: Maria Leonor de Calasans/IEA)
Foto: Maria Leonor de Calasans/IEA Bráulio Dias é doutor em Zoologia pela Universidade de Edimburgo

Na avaliação de Bráulio Dias, diretor de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil (MMA), os países amazônicos têm avançado significativamente nos acordos para a gestão transnacional do bioma, principalmente por meio da OTCA. Na COP16 de Biodiversidade, espera, serão firmados outros tratados relacionados à biodiversidade, aos recursos pesqueiros, aos conhecimentos tradicionais e à proteção dos povos e terras indígenas.

“Essas parcerias são essenciais. Não basta um país tentar proteger se os outros não o fizerem”, destaca Dias. A questão dos recursos hídricos, um dos focos da Declaração de Belém, é exemplo disso: a maior parte das nascentes dos rios amazônicos se dá nas regiões andinas. Se Colômbia e Peru, por exemplo, falham na conservação da Amazônia, os efeitos de secas históricas como as vividas no Norte brasileiros nos últimos dois anos serão cada vez piores.

Apesar das experiências políticas positivas entre os países amazônicos, o diretor afirma que ainda não existe um “cenário de maior efetividade dos acordos”. Há uma ampla demanda por capacitação técnica, implementação política e financiamento para traduzir as ações do papel na prática.

A reportagem contatou todos os ministérios de Meio Ambiente dos países amazônicos para saber quais as expectativas de acordos entre eles na COP16 de Biodiversidade. Dos nove, apenas o Peru retornou, atestando o desejo de encontrar “coincidências de gestão e de resultados conjuntos para as ações destacadas nas três convenções do Rio: biodiversidade, mudanças climáticas e desertificação”.

O Ministério do Ambiente do Peru (Minam, na sigla em espanhol) afirma estar interessado em articular mais recursos e mecanismos financeiros para os países em desenvolvimento, “e assim cumprir com as metas do marco mundial”. “Esperamos contar com decisões globais que permitam priorizar a restauração e conservação dos bosques amazônicos”, conclui em nota.

 

 

Pauta ambiental só avança com combate à violência

A bióloga e conservacionista colombiana Liliana Dávalos, do Panel Científico por la Amazonía (SPA, na sigla en inglês), reforça que qualquer esforço para restaurar e conservar a Amazônia deve estar acompanhado do combate ao crime organizado. O tráfico de drogas e de animais, a grilagem, o garimpo e a madeira ilegal são fortes vetores de desmatamento e utilizam-se estrategicamente das fronteiras para escoar produtos e evitar o alcance do Estado.

Pensando nisso, a OTCA propôs em agosto de 2023 a criação do Centro de Cooperação Policial Internacional da Amazônia (CCPI-Amazônia), projeto coordenado pela Polícia Federal do Brasil e que reúne oficiais dos oito países amazônicos (menos Guiana Francesa), além de agentes dos Estados Unidos e da União Europeia.

O CCPI-Amazônia terá sede em Manaus e ainda não está em funcionamento. De acordo com a PF, o prédio encontra-se em fase de locação e estruturação, “incluindo a instalação de móveis e equipamentos necessários para sua operação”.

Em nota, a PF explica que o orçamento previsto para o projeto de criação do CCPI-Amazônia é de R$ 16.386.500, valor que “não contempla o apoio operacional ou logístico a ser fornecido às demais unidades policiais ou ações integradas”. O contingente policial permanente será de 20 policiais federais, além de representantes da Força Nacional de Segurança Pública e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), cujos quantitativos específicos ainda não foram definidos.

Rio Amazonas visto de cima.(Foto: (c)NEIL PALMER PHOTOGRAPHY)
Foto: (c)NEIL PALMER PHOTOGRAPHY Rio Amazonas visto de cima.

“Também farão parte do contingente nove representantes de forças policiais dos países amazônicos e nove representantes das secretarias de segurança pública dos estados da Amazônia Legal”, diz o órgão.

Um dos focos iniciais do CCPI será o rastreio de ouro ilegal, vetor central os conflitos enfrentados pelo povo indígena Yanomami. A demanda global por cocaína também se reflete em crimes na Amazônia, e a preocupação de Dávalos é que o financiamento e o contingente policial sejam insuficientes para desarticular os conflitos. “É muito dinheiro nas mãos do tráfico”, reflete a bióloga. “E não há polícia suficiente no mundo para patrulhar a Amazônia. Então nós precisamos saber como os governos vão traduzir os financiamentos na prática.”

Se os governos amazônicos agirem separadamente, as organizações criminosas podem simplesmente atravessar as “fronteiras fluidas” e continuar articulados em “networkings de tráfico”.

Ambientalistas colombianos e brasileiros são as vítimas que mais aparecem no ranking mundial da Global Witness 2024 de violência contra defensores de meio ambiente. No topo, a Colômbia registra 79 mortes de lideranças ambientais em 2023, seguida do Brasil, com 25 assassinatos; a maioria indígenas e negros.

“O futuro da Amazônia está sendo assassinado”, frisa Liliana. Sem celeridade e financiamento para combater a violência nas fronteiras, o cenário de ameaça à vida e à natureza tende a piorar.

Ainda, enfrentar o crime organizado é também sobre oferecer oportunidades de emprego e vida dignas para a população. “Você não pode lutar com balas o fato de que não existem oportunidades. Isso é reflexo de uma falha da economia (baseada no extrativismo)”, pontua a pesquisadora.

 

 

Parcerias técnico-científicas avançam

Em outubro, Cali sediará a apresentação da Rede Amazônica de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade, formada por nove institutos científicos relevantes do Brasil, da Colômbia, do Equador, da Bolívia e do Peru. “É um sonho antigo criar um instituto para a Amazônia (internacional)”, comenta Henrique Pereira, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e professor titular da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

A Rede Amazônica de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade reúne nove instituições de pesquisa amazônicas.(Foto: Divulgação/RedAmazonia)
Foto: Divulgação/RedAmazonia A Rede Amazônica de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade reúne nove instituições de pesquisa amazônicas.

Segundo o pesquisador, o Brasil sempre será o destaque da pauta amazônica por deter a maior parcela do bioma; também por isso, os estudos científicos sobre o bioma concentraram-se do lado de cá da fronteira.

Como explica a professora Liliana Dávalos, por muito tempo a Amazônia foi vista pelos países latinoamericanos como um espaço periférico e selvagem, próprio para o extrativismo. Não é à toa que as capitais de praticamente todos os países amazônicos estão fora do bioma.

Para ela, o Brasil é um dos países mais avançados na percepção de biodiversidade cultural e social da região habitada há pelo menos 13 mil anos, mas nas últimas décadas isso tem mudado. A América Latina finalmente voltou o olhar para o bioma e concentrou esforços na compreensão dele — a questão, agora, é padronizar e integrar estes conhecimentos.

Imagem de satélite do Delta do Amazonas entre os estados do Pará e do Amapá na região norte do Brasil.(Foto: ESA, CC BY-SA IGO 3.0)
Foto: ESA, CC BY-SA IGO 3.0 Imagem de satélite do Delta do Amazonas entre os estados do Pará e do Amapá na região norte do Brasil.

“Nós queremos promover uma integração entre as pesquisas dos países. Precisamos padronizar nossa linguagem geobotânica, por exemplo, fazer um mapa de vegetação”, explica Pereira. “A verdade é que a biodiversidade da Amazônia é uma grande desconhecida”, ri o professor, comentando das descobertas quase diárias de novas espécies de seres amazônicos pelos cientistas do Inpa.

“Esse é um dos momentos mais favoráveis para o surgimento da Rede e a coalizão dos países amazônicos”, reflete. Colômbia e Brasil, nas figuras dos presidentes Gustavo Petro (Colômbia Humana) e Luís Inácio Lula da Silva (PT), “estão impulsionando a nova onda” de acordos amazônicos.

“Isso tem a ver com soberania científica também”, afirma. Um dos objetivos da Rede é garantir a capacitação dos cientistas amazônicos e o Brasil assume liderança no tema: a própria presidente executiva do Instituto de Investigações da Amazônia Peruana (iiap), Carmen Dávila, uma das instituições da Rede, foi formada pelo Inpa. “O Brasil é uma referência e isso chama atenção dos nossos parceiros. E nós também reconhecemos neles essa capacidade instalada.”

Para a COP16 de Biodiversidade, a Rede quer levar um dossiê estratégico sobre o cenário da biodiversidade amazônica e as ameaças a ela. Já organiza-se um encontro entre a Rede e a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica), no intuito de integrar as ciências ocidentais aos saberes indígenas na construção do conhecimento sobre a biodiversidade amazônica.

Este artigo foi produzido com o apoio de Climate Tracker América Latina e FES Transformação

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