Imagine que você precisa atravessar uma avenida movimentada, mas não há faixas de pedestre, nem passarelas. Na verdade, a avenida sequer tem um semáforo e a velocidade dos carros ultrapassa os 100 km/h. Mesmo assim, você precisa atravessar.
Esse é o dilema que animais silvestres enfrentam diariamente ao tentarem transitar pelo Ceará. A diferença é que nós sabemos quantos pedestres acabam vítimas da ausência de passagens: entre 2013 e 2023, o DataSUS aponta que 3.130 pedestres morreram após atropelamento de algum tipo.
É dizer que, em média, 313 pessoas morrem por ano no Ceará porque foram atingidas por algum veículo, mesmo com a existência de diversos mecanismos para evitar acidentes — semáforos, faixas de pedestre, passarelas, limite de velocidade…
Já para a fauna cearense, o número de atropelamentos é tão inexistente quanto os corredores ecológicos (CEC). Eles seriam o equivalente às passarelas humanas, conectando as unidades de conservação (UCs) do Estado e garantindo o trânsito seguro da fauna e flora silvestre.
Grandes faixas conservadas, sem nenhuma quebra ou obstáculo construído por humanos no caminho.
Corredores que facilitam a chegada de algumas espécies mesmo com obstáculos, por ex., copas de árvores interligando parques urbanos.
No Ceará, o único corredor existente é o CEC Rio Pacoti, unindo a Área de Preservação Ambiental (APA) do Rio Pacoti e a APA da Serra do Baturité. Criado em fevereiro de 2000, ele cobre 19.405 hectares das margens do rio e atravessa os municípios de Aquiraz, Itaitinga, Pacatuba, Horizonte, Pacajus, Acarape e Redenção.
Como não existe um arquivo oficial com o formato do corredor ecológico, criamos um mapa traçando uma trajetória aproximada que interliga as APAs e cruza os municípios citados
Ele foi criado com o objetivo de proteger as matas ciliares do Rio Pacoti, já que as APAs não exigem a obrigatoriedade de
Digo oficial porque, de alguma maneira, essas passagens de fauna existem por si só. Desde que ainda ocorram áreas verdes e corpos d’água conectando os fragmentos maiores de floresta, a fauna e flora terá como se locomover. No entanto, o corredor ecológico é uma estratégia de gestão que obriga a conservação desses espaços.
Sem essa oficialização, o mais comum é que a expansão urbana ocupe essas regiões e cerque ainda mais a fauna. Até mesmo a expansão agropecuária pode prejudicar a locomoção de algumas espécies, a depender do tipo de cultivo e de criação. “É o nível de permeabilidade que vai sendo diferente (nesses casos)”, explica a cientista ambiental Lígia Costa, mestranda de Análise e Modelagem de Sistemas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Nós temos que pensar que o processo de urbanização e a expansão agrícola vão continuar”, alerta Lígia. “Nós precisamos priorizar a questão hídrica, já que os rios podem ser ambientes focais de conexão. O básico seria conservar nossas matas ciliares”, analisa.
Para existir corredor, é preciso ter unidade de conservação. Ao todo, o Ceará tem 117 unidades de conservação, das quais 39 são estaduais, 12 são federais, 18 são municipais e 48 são privadas. “Eu, particularmente, acho que o Ceará tem poucas unidades de conservação”, opina Lígia. “Se comparar com o Piauí, eles têm UCs enormes. Então acho que falta interesse em criar mais UCs.”
Ainda que o Estado tenha uma centena de unidades, a representatividade de ecossistemas delas é desproporcional. Apesar de o bioma cearense ser a Caatinga, existe uma variedade de ambientes, como os manguezais, as serras, a caatinga do cristalino (aquela que costumamos pensar quando se fala no bioma), os carnaubais… Todos espaços com plantas e bichos diferentes.
“O Ceará continua com um cenário crítico de subdivisão do bioma. Algumas regiões não têm nenhuma proteção, como os carnaubais… As mais protegidas continuam sendo as regiões de serra. A caatinga não tem quantidade de proteção expressiva”, indica o cientista ambiental Vladimir Gomes, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente e especialista em Cidades Sustentáveis.
Ao mesmo tempo, as categorias das UCs cearenses permitem muitas atividades dentro dos limites estabelecidos, no caso das unidades de uso sustentável. No papel, a categoria preconiza o uso racional dos recursos, mas na prática há uma expansão de monoculturas — especialmente no Araripe e na Ibiapaba — e outras atividades de impacto ambiental.
Considerando o tamanho das unidades cearenses, a distribuição espaçada que praticamente ignora o sertão e os tipos de proteção, trabalhar para o estabelecimento de corredores ecológicos deveria ser uma das estratégias prioritárias do governo. Vale lembrar que os corredores podem ser delimitados no ato de criação das UCs ou posteriormente, durante a elaboração e revisão dos planos de manejo.
Em nota, a Secretaria de Meio Ambiente do Ceará (Sema) afirma que está planejando “o reconhecimento de mosaico de unidades de conservação que estão próximas, sobrepostas ou justapostas para expandir as ações de conservação para além dos limites das UCs”.
Nesse caso, é provável que as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) cumpram um papel importante, porque podem servir justamente como “trampolins” ou mesmo pontos de interligação para um corredor contínuo.
“As espécies precisam de um lugar dinâmico”, simplifica a cientista ambiental Lígia. Assim como os seres humanos transitam pelas cidades para alimentação, socialização, para trabalhar ou mesmo para lazer, o mesmo é verdadeiro para as espécies de fauna e flora.
Cada espécie terá uma extensão necessária para viver bem, seja para reprodução, para alimentação ou troca genética. Assim garante-se a sobrevivência da espécie, especialmente porque existe um “backup genético” dos bichos — imagine se um grupo de animais ilhados contrai uma doença e todos morrem? Na ausência de outros grupos pela região com diversidade genética, é o fim da espécie.
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Mas quando os animais e as plantas ficam ilhados em fragmentos de habitat rodeados por áreas antropizadas, começa o cerco. Infelizmente, com o tamanho das UCs cearenses e a ausência de corredores ecológicos eficazes, as próprias unidades podem isolar as espécies. Não é preciso ir muito longe: em Fortaleza, o Parque Estadual do Cocó é um ótimo exemplo.
Com 1.155,2 hectares, o Cocó é o maior parque urbano do Norte e Nordeste, mas as condições de preservação de algumas partes da unidade e a influência direta do entorno urbano impedem a circulação adequada das espécies. Se o Cocó continuar ameaçado pela especulação imobiliária, a biodiversidade que deveria ser protegida corre cada vez mais risco de sumir.
É o que preocupa quando o assunto são os soins. Em diversos momentos, o grupo de soins que vive no Parque Estadual do Cocó, especificamente a região do bairro homônimo, contraiu herpes por causa do contato com os humanos que oferecem comida aos animais. Entre novembro de 2021 e janeiro de 2022, ano da última grande infecção, 14 soins morreram por herpes.
Prever um corredor ecológico que possibilite o trânsito dos soins do Parque do Cocó até outras áreas protegidas de Fortaleza é essencial para evitar que outras epidemias do tipo tenham efeitos cada vez mais perigosos para a manutenção da espécie. “A gente sempre precisa pensar que no meio urbano a dinâmica de conservação é diferente por conta da influência humana”, explica Lígia Costa, cuja monografia analisou corredores ecológicos em Fortaleza.
“Se o soin tiver um corredor tipo trampolim vai ajudar muito, porque você também pode fornecer às espécies esses pequenos fragmentos que sejam de alimento para eles, evitando que tenha um contato ali com o ser humano”, destaca a pesquisadora.
Em cidades grandes, é a arborização urbana que mais auxilia na criação de corredores ecológicos. Cada copa de árvore nativa vira um ponto de descanso para diversas espécies, principalmente aves. Se Fortaleza fosse mais urbanizada, sem podas inadequadas de árvores, todos se beneficiariam — inclusive os humanos.
Além disso, focar na ampla preservação do Rio Cocó é outra estratégia. “Os corpos hídricos de Fortaleza servem como trampolins, mas vão perdendo eficiência à medida que vão tendo obstáculos”, pontua Vladimir Gomes.
Visitante assíduo do Parque Estadual do Cocó, o repórter, cronista e editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO Demitri Túlio coleciona fotos de animais silvestres do Cocó que tentam atravessar a avenida Sebastião Abreu. Com trânsito intenso e constante, a avenida registra vários atropelamentos de animais, especialmente répteis e anfíbios. Na região, não há forma de travessia segura para os animais.
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Praticamente qualquer estrada é um obstáculo. A clínica Bicho do Mato, especializada no tratamento de animais silvestres, já recebeu um cágado atropelado dentro do Parque do Cocó.
Com fraturas na carapaça, o animal aquático foi tratado emergencialmente com antiinflamatório, analgésicos e antibióticos, passando depois por um procedimento de reparo da carapaça, no qual os veterinários usaram resina e brackets de aparelho odontológico para unir a carapaça.
O bichinho ficou estável, mas perdeu a capacidade de flutuação. Apesar de estar em um ambiente de proteção integral, ele foi atropelado e nunca mais poderá voltar à natureza. “A questão é que a estrada sempre é um segmentador de corredores ecológicos”, resume o professor Alex Bager, coordenador do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas da Universidade Federal de Lavras (UFLA).
Para as futuras estradas que podem surgir, a solução é prever desde o início a criação de passagens para a fauna. Os estudos para o licenciamento ambiental do projeto devem analisar a fauna local e estabelecer pontos de travessia, como túneis.
“Para isso, é preciso ter uma cerca de condução”, estabelece Alex. “É tipo um funil que vai conduzir os animais a usar esse túnel para atravessar. Se só botar a passagem, sem nada conduzindo, não funciona para nada.”
As rodovias existentes também podem ser readequadas. Existindo pontos em que a estrada é mais elevada, é possível cortar os túneis em uma obra que sequer exige o fechamento da via.
Para isso, é preciso esforço para levantar dados que auxiliem a criação de corredores ecológicos e garantam a verdadeira conservação da biodiversidade cearense. “O monitoramento de fauna é muito pouco”, lamenta Lígia Costa, “e a gente precisa entender o que queremos conservar.”
“Eu vejo um processo lento. As pessoas ainda não entendem que existe essa necessidade (de criar corredores ecológicos) e um efeito das mudanças climáticas na migração das espécies”, diz, apontando outro fator que tensiona a relação da fauna e flora com as áreas que habitam. Até mesmo as plantas precisam migrar para regiões com climas mais adequados para sua sobrevivência.
“Eu trabalhei uma época com modelos climáticos e cactos, e a gente viu que cactos endêmicos da Caatinga, diante de cenários de mudança climática, iam migrar de um ambiente semiárido para ambientes mais frios, próximos a costas ou da Mata Atântica. Então existe esse processo de migração.”
Em caso de atropelamento de animais silvestres, ligue para o Corpo de Bombeiros (193) ou para a Polícia Militar (190).
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