Com metas ambiciosas estabelecidas pelo Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal para 2030, os países chegam à COP16 de Biodiversidade com a seguinte pergunta: onde está e de onde virá o dinheiro para implementá-las?
Os países mais biodiversos do mundo — majoritariamente da zona tropical — também são aqueles com menos recursos para investir na preservação e conservação. Eles chegam ao evento em Cali (Colômbia) dispostos a discutir sobre financiamento ambiental e possibilidades para evitar mais dívidas externas para os países em desenvolvimento.
“Fazer conservação tem custo”, destaca Bráulio Dias, diretor de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil (MMA). Segundo o representante do Brasil na COP16, o principal desafio do País é justamente ter recursos para implementar ações de conservação e preservação, especialmente aquelas que envolvem pesquisas científicas.
“A situação é mais grave na Amazônia. A Amazônia Legal é quase 50% do Brasil e recebe menos de 3% de recursos para pesquisa”, aponta. Um dos objetivos brasileiros é garantir a ampliação de recursos financeiros para restaurar áreas degradadas, seja por mecanismos de financiamento mistos, seja pela regulamentação de mercados de crédito de biodiversidade (em modelo parecido com os créditos de carbono) ou emissão de bônus verdes.
Na primeira plenária da COP16 de Biodiversidade, o negociador brasileiro André Corrêa do Lago falou em nome dos 20 países megabiodiversos e externou a preocupação com a baixa destinação de recursos para a biodiversidade.
A Convenção de Diversidade Biológica (CDB), organizadora das conferências de biodiversidade, reconheceu o déficit de financiamento de 700 bilhões de dólares. Na meta 19 do Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, as partes comprometeram-se a mobilizar pelo menos 200 bilhões de dólares anuais até 2030 para implementação das estratégias nacionais de biodiversidade.
“Os fundos são claramente insuficientes e fazem com que muitos projetos não possam ser implementados”, sustentou a delegada Gillian Guthrie, da Jamaica, e porta-voz do grupo da América Latina e do Caribe. “Os nossos países têm que mobilizar recursos para a biodiversidade e ao mesmo tempo para combater a pobreza e a inequidade”, criticou.
O Brasil também pediu para que o financiamento ambiental “não seja sinônimo de dívida externa para os países em desenvolvimento”, como tem sido até o momento. Ocorre que os financiamentos ambientais e climáticos, em sua maioria, funcionam como empréstimos.
Em 2023, os países em desenvolvimento acumulam 30% dos 97 bilhões de dólares em dívida pública mundial. Essa parcela duplicou desde 2010, quando os países em desenvolvimento tinham 16% da dívida mundial, como aponta um relatório do Zero Carbon Analytics.
Só na América Latina e no Caribe, 81% do financiamento climático recebido entre 2016 e 2020 foram em forma de empréstimos. Recursos como o Fundo Amazônia são raros, até porque países em desenvolvimento não estão autorizados a receber doações, explica María Marta Di Paola, pesquisadora do Zero Carbon Analytics.
“Mais de 50% dos financiamentos vêm de empréstimos comerciais, de empresas”, destaca Laura Kelly, diretora do grupo de pesquisa Shaping Sustainable Markets do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED, na sigla em inglês). O empréstimo em si não é necessariamente ruim, mas o cenário de crises econômicas e ambientais vividas pelos países em desenvolvimento tem os impedido de seguir com um pagamento equilibrado.
Em 2024, a previsão é que, em média, 8,4% do produto interno bruto (PIB) de 144 países em desenvolvimento seja consumido pelo serviço de dívida externa.
Cria-se, então, um ciclo vicioso de dívida e crise climática, diz María di Paola. Para pagar a dívida, os países precisam de moeda estrangeira. Para isso, precisam exportar — o que, para o sul global, significa investir mais em extrativismo, como as monoculturas, a mineração e a exploração de petróleo.
Essa exploração resulta na vulnerabilidade ambiental dos países, pois a biodiversidade entra em colapso. As enchentes no Rio Grande do Sul são um exemplo disso: a destruição de matas ciliares para a expansão do agronegócio e para a ocupação urbana retirou a proteção dos municípios. O que vem depois do desastre? O dinheiro para reparar, recompensar e reconstruir estados inteiros.
“Essas são crises interconectadas: a climática, a de biodiversidade e a econômica”, frisa María di Paola.
“Empréstimos não são necessariamente uma coisa ruim se eles forem investidos em algo que dê retorno ”, destaca Laura. “Mas muitos empréstimos estão sendo destinados para os impactos da crise climática, ou seja, para adaptação e mitigação. Os países estão continuamente reinvestindo em reestruturação”, analisa.
Enquanto os países em desenvolvimento exigem mais financiamento e a criação de fundos que possibilitem a implementação das metas de biodiversidade e climáticas, os países desenvolvidos tentam evitar promessas de mais investimentos. Nesse sentido, a Colômbia propõe uma conversa aprofundada sobre a possibilidade de trocas de dívida por natureza.
Chamado de debt swap em inglês, as trocas de dívida por natureza são uma ferramenta na qual um ente privado ou público compra parte da dívida de um país em troca de alguma ação ambiental. Nesse caso, a dívida é revertida para a moeda nacional — “no entanto, as pressões inflacionárias implicam maior demanda da moeda nacional”, pontua María di Paola.
Em 1987, a Bolívia protagonizou a primeira troca de dívida por natureza do mundo. A organização não governamental (ONG) Conservação Internacional (IIS, em inglês) adquiriu 650 mil dólares da dívida externa boliviana de 4 bilhões de dólares. Em troca, a Bolívia deveria criar três áreas de conservação que abarcavam 1,5 milhões de hectares perto da Estação Biológica e Reserva da Biosfera de Beni, além de estabelecer um fundo de operações de 250 mil dólares para gerir a área.
“O governo boliviano atrasou em desembolsar os fundos na moeda local e surgiram disputas sobre o uso de terras de conservação adicionais, conhecidas como áreas de amortização, pois as decisões não foram baseadas em acordos entre os grupos ecologistas locais, o governo e as comunidades locais”, descreve María em relatório.
O acordo com a IIS também restringia atividades tradicionais das comunidades indígenas na região, porque eram consideradas pela ONG como prejudiciais para a conservação dos bosques. Em outras experiências de trocas de dívida por natureza, a preocupação com a soberania nacional sobre o próprio território e o silenciamento de comunidades tradicionais nas discussões afetaram a aceitação à ferramenta.
Até mesmo o Brasil rechaçou o modelo em 1989, quando o presidente José Sarney declarou que os países estrangeiros não tinham direito a ditar como proteger a Amazônia: “A Amazônia é nossa… Afinal de contas, está em nosso território”.
De qualquer maneira, não são todos os países aptos para uma troca de dívida por natureza. É preciso que o país tenha uma dívida insustentável, ao mesmo tempo em que exista equilíbrio fiscal. “É complexo encontrar essa situação na América Latina”, reflete a pesquisadora.
Para os que se encaixam, o IIES tem trabalhado em um novo modelo de troca de dívida por natureza. Com o acompanhamento do IIES, Cabo Verde fez um acordo de troca de dívida com Portugal, principal credor do país africano. A principal diferença é que são os governos devedores, em conjunto com as comunidades locais, que indicam quais serão as ações ambientais/climáticas de investimento da troca.
Além disso, os fundos deixam de ser geridos pelas organizações internacionais que compraram a dívida e passam para uma abordagem programática dentro do sistema do país devedor. O intuito é garantir a soberania dos países em desenvolvimento e um investimento sensível às demandas locais.
“A troca de dívidas por natureza é um dos temas do G20. Eles apoiarem isso como uma ferramenta em potencial envia uma mensagem poderosa”, afirma Laura Kelly.
Do ponto de vista de María di Paola, uma das melhores opções seria o perdão das dívidas externas. “Para mim, essa é a questão. Mas é um pouco difícil de levar a cabo”, pondera. “Qualquer tipo de perdão de dívidas significa que o credor não receberá o dinheiro de volta”, concorda Laura.
“O parlamento do Reino Unido tem feito um inquérito sobre o assunto. Mas (os financiamentos ambientais e climáticos) não são sobre ajudar países”, reflete a diretora. Afinal, os países desenvolvidos precisam de um mundo ambientalmente equilibrado para continuar produzindo e comprando dos países em desenvolvimento.
A COP16 de Biodiversidade continua até o dia 1º de novembro, em Cali, na Colômbia. As discussões sobre financiamento ambiental e trocas de dívida por natureza ainda são iniciais, mas com certeza terão tensões entre os países em desenvolvimento e os desenvolvidos.
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