"Algumas pessoas pensam que sou um verdadeiro gênio".
Com provocações, insultos e tuítes debochados, Donald Trump escreveu um capítulo singular na história americana.
Tanto é verdade que a eleição desta terça-feira, 20, onde buscará, aos 74 anos, um segundo mandato, se apresenta como um verdadeiro referendo sobre sua pessoa, sobre um estilo de presidência completamente novo.
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Ao mesmo tempo sintoma e multiplicador dos medos e fraturas dos Estados Unidos, este presidente "showman" sempre se recusou, uma vez instalado na Casa Branca, a assumir o papel de conciliador, em uma ruptura assumida com os seus antecessores.
Mesmo no auge da pandemia de Covid-19, que ceifou mais de 226.000 vidas nos Estados Unidos, quando o país buscava uma liderança estável e tranquilizadora, ele rejeitou obstinadamente qualquer demonstração de empatia.
Durante quatro anos, os americanos testemunharam, com entusiasmo, angústia ou medo, o espetáculo sem precedentes de um presidente que chegou ao poder com um estrondo e sem restrições impostas.
A guinada autoritária ou colapso econômico anunciado por alguns em 8 de novembro de 2016, dia da eleição surpreendente, não ocorreu.
As instituições frequentemente desafiadas provaram sua força e uma série de indicadores - começando com os números do emprego - foram bons por muito tempo antes do impacto devastador do coronavírus.
"Me divirto"
Mas em um mandato repleto de escândalos que contrasta fortemente com seu antecessor Barack Obama, o septuagenário manchou a função presidencial, atacou juízes, legisladores e funcionários e alimentou tensões raciais.
Além das fronteiras, ele intimidou os aliados dos Estados Unidos, exibiu um fascínio perturbador por líderes autoritários de Vladimir Putin a Kim Jong Un e desferiu um golpe brutal na mobilização contra a mudança climática.
Propenso a exageros, a face triunfante do populismo desenfreado, o homem que, segundo o escritor Philip Roth, usa "um vocabulário de 77 palavras" fez com que seus admiradores e críticos perdessem o senso de medida.
O 45º presidente dos Estados Unidos também sofreu a desgraça de um impeachment no Congresso, que permanecerá uma mancha indelével em seu mandato.
"O show é Trump, e há atuações com ingressos esgotados em todos os lugares. Eu me divirto fazendo isso e continuarei a me divertir".
A frase, tirada de uma entrevista que o magnata do mercado imobiliário concedeu à revista Playboy em 1990, poderia ter sido pronunciada ontem. E aplicada a cada um de seus dias à frente da maior potência do mundo.
Dotado de verdadeiro talento na tribuna, capaz de incendiar multidões nas arquibancadas de campanha, o bilionário com o cabelo loiro peculiar conseguiu a proeza de se posicionar como porta-voz dos "esquecidos" e dos "deploráveis", para citar a expressão desdenhosa de sua rival democrata em 2016, Hillary Clinton.
Mostrando verdadeiro talento político, Trump capturou as ansiedades de uma América predominantemente branca e bastante envelhecida, que se sentia desprezada pelas "elites" da Costa Leste e pelas estrelas de Hollywood da Costa Oeste.
Este grande consumidor de hambúrgueres e Coke Diet, que se tornou conhecido dos grandes americanos graças ao reality show "O Aprendiz", aplicou implacavelmente uma regra simples: ocupar o espaço a qualquer custo.
Desprezo pela ciência, estimativas, falsidades: suas declarações forçaram a equipe de verificadores de fatos do Washington Post a criar uma nova categoria, "Pinóquio sem limite", para alegações falsas ou enganosas repetidas mais de 20 vezes.
Da ala oeste da Casa Branca, onde os escritórios presidenciais estão concentrados, Trump cavou a lacuna entre dois Estados Unidos: vermelho (republicano) e azul (democrata).
Longe de apelar, como Abraham Lincoln em 1861, para "a parte luz em cada um de nós", ele brincou incansavelmente com o medo.
Desde o anúncio de sua candidatura em 2015, ele usa o fantasma dos imigrantes ilegais "estupradores" e "criminosos". E durante a campanha de 2020 se apresentou como o único fiador da "ordem pública" contra a ameaça da "esquerda radical".
Em um país que adora momentos de unidade nacional, por mais breves que sejam, Trump raramente tenta encontrar o tom para curar feridas, mesmo depois de um desastre natural ou tiroteio violento.
Ele usou seus ataques brutais à mídia, que chamou de "desonesta", "corrupta" e "inimiga do povo", para jogar ainda mais um lado do país contra o outro.
E, pode-se destacar, Trump foi o único presidente da história americana cuja popularidade nunca ultrapassou a marca de 50% durante seu governo.
Seus oponentes e apoiadores concordam em um ponto: Donald Trump, de fato, cumpriu algumas de suas promessas de campanha.
Conforme havia anunciado, ele descartou uma série de tratados ou pactos duramente negociados, entre os quais se destaca o Acordo de Paris assinado por quase todos os países do planeta na tentativa de limitar o temido aquecimento global.
Mas essa fidelidade aos compromissos da campanha foi assumida pela demolição.
Em relação às iniciativas, o balanço é mais enxuto. Na questão do programa nuclear iraniano, por exemplo, ele rompeu o difícil acordo negociado por seu antecessor, aumentou a pressão sobre Teerã até a remoção do poderoso general iraniano Qasem Soleimani, mas nunca apresentou uma estratégia real.
O grande plano de paz para o Oriente Médio, confiado a Jared Kushner, seu genro e conselheiro, nunca se concretizou.
No entanto, ele pode se orgulhar de patrocinar a normalização das relações do estado hebreu com três países árabes: Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Sudão.
A morte em outubro de 2019 do líder do grupo jihadista do Estado Islâmico (EI) Abu Bakr al-Baghdadi durante uma operação dos EUA na Síria, sem dúvida, permanecerá um marco em sua presidência.
Sua maior audácia, pela qual sonhava em voz alta com o Prêmio Nobel da Paz, não teve o resultado esperado. Houve duas cúpulas com o líder norte-coreano Kim Jong Un, abraços e cumplicidades durante uma visita histórica à zona desmilitarizada, "química" e cartas "magníficas", mas o esforço foi em vão. Nada mudou na questão central da desnuclearização.
Na complexa e mutante geopolítica do século 21, Trump pessoalmente mirou em Justin Trudeau, Emmanuel Macron, Angela Merkel e Theresa May. O aviso mais contundente não veio de seus oponentes políticos, mas de Jim Mattis, chefe do Pentágono. Em sua carta de demissão, esse general lembrou ao presidente dos Estados Unidos uma regra simples da diplomacia: "Trate os aliados com respeito".
Em um cenário político sem precedentes que nenhum conservador havia previsto, Trump, com sua capacidade de eletrificar sua base eleitoral, colocou no bolso o Partido Republicano, que inicialmente o subestimou ou até mesmo o ignorou.
Algumas vezes, legisladores do "Grand Old Party" (GOP, ou Grande Partido Antigo, o nome do partido Republicano) expressaram desacordo, como, por exemplo, por sua atitude extraordinariamente conciliatória em relação a Putin em Helsinque em 2018.
Com o tempo, no entanto, prevaleceu a convergência. Para desgosto de algumas vozes dissidentes, como a do ex-senador John McCain, que, antes de sua morte em agosto de 2018, alertou para tentação do "nacionalismo vacilante e falacioso".
Trump sempre operou sob um princípio simples: ou se está a favor ou contra ele, sem meio termo.
O ex-chefe do FBI, James Comey, demitido pelo presidente, evocou em suas memórias um presidente que sujeita seu ambiente a um código de lealdade que o lembrava da atitude dos chefes gangster observada no início de sua carreira como procurador.
Nascido no Queens, Nova York, educado na escola militar, Donald J. Trump ingressou na empresa da família após estudar Administração.
Ao contrário do que propaga, não é um "self-made man".
Após a Segunda Guerra Mundial, seu pai, Fred Trump, descendente de um imigrante alemão, já havia construído um império na cidade de Nova York, construindo prédios para a classe média em bairros da classe trabalhadora.
Quando o New York Times revelou recentemente que Donald Trump pagou apenas 750 dólares em imposto de renda federal em 2016 e que muitas de suas empresas acumularam prejuízos, sua imagem como empresário de sucesso foi manchada novamente.
Pai de cinco filhos com três mulheres diferentes, um avô de dez, Trump nunca parou de elogiar publicamente Melania, a ex-modelo eslovena que se tornou "magnífica primeira-dama".
Entretanto, as revelações sobre seus supostos casos extraconjugais, particularmente com a estrela pornô Stormy Daniels, e as alegações de agressão sexual dirigidas contra ele, colocam em xeque seu elogio aos valores familiares repetidos a cada encontro com cristãos evangélicos.
Contando com um círculo familiar próximo, mas também sempre colocando seus "instintos" em primeiro lugar, Donald Trump, cuja queda foi anunciada mil vezes, sobreviveu a todos os escândalos. Como se, de tanto acumular, não o afetassem mais.
Joe Biden sofreu profundas perdas pessoais e viu suas primeiras ambições políticas obstruídas, mas o veterano político democrata espera que sua promessa de unificar os Estados Unidos o leve à presidência, após quase meio século em Washington.
Não é comum que os perfis dos dois candidatos à presidência dos Estados Unidos sejam tão diferentes, mas na disputa de 2020 a personalidade amigável de Biden, com sua origem modesta, se opõe à personalidade exultante de Trump, um empresário que nasceu em um círculo de privilégios mas que insiste ser o candidato 'outsider'.
Em sua longa ambição de chegar à Casa Branca, que começou há décadas e inclui duas tentativas infrutífera, este político otimista com base eleitoral em Delaware afirma que pode mudar o estado de espírito dos Estados Unidos, passando da "raiva e suspeita à dignidade e respeito".
"As divisões em nosso país estão aumentando e nossas feridas se tornam mais profundas", afirmou Biden na terça-feira na Geórgia.
Ele também questionou se o processo passou do ponto de não retorno e se o coração dos Estados Unidos virou pedra.
"Eu não acredito, me nego a acreditar nisso. Eu conheço este país, conheço as pessoas e sei que podemos nos unir e curar esta nação", completou.
Aos 77 anos, Biden lidera as pesquisas a poucos dias das eleições deste 3 de novembro e está perto de tornar-se a pessoa mais velha a assumir a presidência dos Estados Unidos.
Se vencer, ele vai herdar um país afetado por uma pandemia que avança e provocou mais mortes que em qualquer outro país, assim como uma presidência que considera manchada pelas "mentiras" de Donald Trump.
Em caso de derrota para um presidente impopular como Trump, isto significaria que é um "péssimo" candidato, em suas próprias palavras.
Além disso, a derrota encerraria uma carreira política marcada pelo esforço.
Biden entrou para a política nacional aos 29 anos, quando conseguiu uma surpreendente eleição como senador por Delaware em 1972.
Mas apenas um mês depois uma tragédia abalou sua vida, quando sua primeira esposa, Neilia Hunter, e sua filha de um ano morreram em um acidente de carro quando saíram para comprar uma árvore de Natal.
Seus dois filhos ficaram gravemente feridos, mas sobreviveram ao acidente. O mais velho, Beau, morreu vítima de câncer em 2015.
As tragédias ajudaram a cimentar a empatia com a opinião pública americana.
Suas habilidades são polivalentes. Da mesma forma que sorri em um auditório lotado de estudantes universitários, Biden é capaz de conectar-se com operários de áreas em crise econômica ou expressar duras críticas aos rivais.
Esta habilidade foi cerceada em 2020, quando a crise do coronavírus freou a campanha presencial e o deixou confinado em casa, local do qual saiu poucas vezes nas últimas semanas.
Ele não tem a mesma força que durante os oito anos em que foi vice-presidente de Barack Obama e, apesar de conservar o sorriso de comercial, seus passos são mais lentos.
Os críticos e os próprios democratas questionaram durante a campanha se a sua propensão a gafes seria um destaque durante a campanha contra Trump.
O presidente de 74 anos explora o tema e o chama de "Joe, o dorminhoco". Também o acusa de sofrer uma deterioração cognitiva.
Biden tentou responder os ataques e, em um momento de frustração depois que o presidente o interrompeu diversas vezes no primeiro debate da campanha, questionou exasperado: "Cara, você não vai se calar?".
Quando foi eleito pela primeira vez, era um dos senadores mais jovens no Capitólio, onde passou décadas antes de ser o vice-presidente de Obama por oito anos.
A mensagem de Biden se articula em grande medida em associação com seu estilo moderado durante o governo de Obama, mas durante a campanha prometeu que como presidente adotará posturas mais progressistas nas áreas da mudança climática, justiça racial e alívio da dívida estudantil.
Mas Biden quase não conseguiu a designação democrata. Apesar de ter iniciado a disputa como favorito, muitos o descartaram por ser considerado velho, muito moderado e sua campanha parecia destinada ao desastre após as primeiras votações das primárias, vencidas por Bernie Sanders.
Mas com a primária da Carolina do Sul e o apoio dos eleitores negros, Biden retornou à disputa.
A disputa marcou um grande contraste com sua tentativa de 1988, quando desistiu das primárias depois da vergonha provocada pela descoberta de que havia plagiado um discurso.
Na tentativa de 2008 também foi mal e recebeu menos 1% dos votos no caucus de Iowa, que marca o início da corrida.
Naquele ano foi escolhido como candidato a vice de Obama, para quem passou a ser o "guerreiro feliz dos Estados Unidos".
Após a vitória, Obama o designou coordenador da recuperação da profunda recessão que afetava o país.
Os dois discordavam sobre a guerra no Afeganistão e Biden foi contrário ao aumento do número de tropas.
Em seus 30 anos no Senado, Joe Biden foi conhecido pelas alianças improváveis e, assim como Trump, por sua propensão a sair do roteiro.
Suas escolhas durante a longa carreira provocaram críticas dos democratas, incluindo de sua candidata a vice, Kamala Harris, que recordou durante as primárias a oposição do senador a um sistema contra a segregação nas escolas que consistia em levar crianças negras para colégios predominantemente brancos.
Também foi muito criticado por ajudar na redação de uma lei de 1994 que muitos democratas acreditam que provocou a detenção de uma quantidade desproporcional de cidadãos negros. Recentemente Biden reconheceu que esta iniciativa foi um erro.
Outros episódios no Senado também jogaram uma sombra sobre sua campanha, como o apoio à guerra do Iraque em 2003 e seu papel na audiência de confirmação do juiz da Suprema Corte Clarence Thomas em 1991, quando foi questionado sobre a maneira como abordou as acusações assédio sexual contra o magistrado.
No ano passado, uma polêmica sobre sua tendência de tocar as mulheres também abalou a campanha.
Biden pediu desculpas e prometeu levar em consideração no futuro o "espaço pessoal" das mulheres.
Sua narrativa pessoal e suas histórias familiares estão conectadas de tal maneira como seu discurso político que se transformaram em parte de sua imagem.
O acidente de 1972 em que perdeu a esposa e a filha mais nova, e no qual os filhos Beau, de 4 anos, e Hunter, de 2 anos, ficaram gravemente feridos passou a integrar sua mitologia, depois que prestou juramento como senador do hospital em que as crianças se recuperavam.
Em 1975 Biden conheceu a segunda esposa, Jill Jacobs, uma professora com quem se casou dois anos depois. O casal tem uma filha, Ashley.
Beau tentou seguir os passos do pai na política e foi eleito procurador-geral de Delaware, mas faleceu vítima de câncer cerebral em 2015, quando tinha 46 anos.
Seu outro filho Hunter, um advogado que se dedica ao lobby, tem outra trajetória.
Ele recebeu um salário elevado como parte da diretoria de uma empresa de gás ucraniana quando o pai era vice-presidente, o que rendeu acusações de corrupção.
As pressões de Trump para que a Ucrânia investigasse Biden renderam um processo "impeachment" ao presidente na Câmara de Representantes, que terminou com a absolvição no Senado.
Hunter não recebeu nenhuma acusação, mas Trump cita a questão sempre que possível.
Joseph Robinette Biden Jr nasceu em 20 de novembro de 1942 e cresceu em Scranton, Pensilvânia, em uma família de origem irlandesa muito católica.
Seu pai era um vendedor de carros e na década de 1950 perdeu o emprego. A família se mudou para o estado vizinho de Delaware quando Joe tinha 10 anos.
"Meu pai sempre dizia: 'Campeão, quando alguém te acerta, você tem que ficar de pé de imediato", conta Biden.
Em Delaware ele se tornou um cidadão local. Quando era jovem trabalhou como salva-vidas em uma piscina em um bairro negro, onde aprendeu sobre as injustiças que afetam esta comunidade, o que despertou seu interesse pela política.
Biden estudou na Universidade de Delaware e na Faculdade de Direito de Syracuse.
Sempre demonstrou orgulho de sua origem operário e de ter superado a gagueira. Até hoje dá conselhos aos jovens que sofrem deste distúrbio.
Joe Biden aponta com frequência a esposa Jill, de 69 anos, como uma figura importante de sua campanha e recentemente recordou como assumiu a criação de seus dois filhos.
Ao falar sobre a dor provocada pela morte de Beau, admitiu que é um pesar que "nunca se vai". A tragédia o impediu de tentar a candidatura à presidência em 2016.
Ele ainda costuma parar para cumprimentar os bombeiros que encontra ao lembrar que foram eles que salvaram a vida de seus meninos.
Em 1988 os bombeiros o salvaram quando o levaram par o hospital depois que sofreu um aneurisma.
Alguns afirmam que o estado era tão grave que um padre foi chamado para administrar a extrema-unção.
Todos os domingos Biden comparece à paróquia de São José em Wilmington.
No cemitério da localidade foram sepultados os seus pais, sua primeira esposa, sua filha e Beau, sob uma lápide decorada com uma pequena bandeira americana.
Em janeiro, Biden destacou a grande influência de Beau em sua vida.
"A cada manhã eu levanto e pergunto: Ele estaria orgulhoso de mim?", contou.
Série aborda os múltiplos cenários políticos dos Estados Unidos nas eleições de 2020