A disputa eleitoral nos Estados Unidos vem se acirrando na medida em que o pleito, marcado para o início de novembro, se aproxima. Muita coisa mudou desde as prévias na chamada Superterça, no início de março. De lá para cá, o país e o mundo passaram por uma avalanche de episódios que serão determinantes para o resultado do pleito.
Não bastasse a pandemia da Covid-19, que já matou mais de 160 mil pessoas no país até os primeiros dias de agosto, podem ser mencionados o assassinato de George Floyd e os protestos antirracistas que o seguiram e a tensão das relações com a China, maior rival americano na economia global.
A pandemia, sem dúvidas, é o fator que mais influenciou na transfiguração do cenário eleitoral, em especial para o grupo governista. O efeito do coronavírus na realidade política dos EUA está claramente expresso na queda de popularidade do presidente, Donald Trump.
Com aprovação na casa dos 54% em março, o índice despencou para 33% em meados de julho segundo pesquisa ABC News/Ipsos. Paralalelamente, 67% da população disse desaprovar o desempenho do presidente durante a crise sanitária.
Com esses números, pode-se dizer que a essa altura do campeonato (agosto) Trump corre contra o tempo. Nenhum presidente americano conseguiu a reeleição com os números de aprovação que ele tem atualmente. O panorama é preocupante para ele, mas não significa dizer que o atual mandatário está fora do jogo.
Se a curto prazo houver melhora na aprovação, Trump pode se recompor a tempo de vencer o pleito. Entre os fatores que pesariam numa eventual recuperação da imagem presidencial estão, por exemplo, a melhora de indicadores econômicos ou a obtenção de uma vacina contra o coronavírus antes da eleição.
Contudo, vale ressaltar que a ocorrência dos fatores supracitados impacta na configuração das eleições. A pandemia deve provocar também a necessidade de aumento expressivo do sistema de votação por correio. Atualmente, cerca de 25% dos eleitores escolhem os candidatos dessa forma, mas algumas projeções apontam que número pode subir para até 80%.
Sabendo estar com popularidade em baixa e tentando tirar proveito da situação, Trump tem repetido o discurso de sugestão para o adiamento das eleições, fato que não ocorreu nem na época da Guerra Civil dos EUA (1861-1865). Tentando ganhar tempo com a postergação do pleito, o presidente vem apontando, sem provas, possibilidade de fraude nos votos por correio.
No fim de julho, Trump, que sempre menosprezou as consequências epidemiológicas da Covid-19 e só passou a utilizar máscara em público meses após o início da pandemia, foi ao Twitter e questionou: "Porque não adiamos as eleições até que as pessoas possam votar com segurança?", escreveu.
A data da eleição nos EUA está expressa na Constituição do país e para eventual alteração precisaria passar por aprovação do Congresso. Ou seja, não depende da caneta do ocupante do Salão Oval da Casa Branca.
With Universal Mail-In Voting (not Absentee Voting, which is good), 2020 will be the most INACCURATE & FRAUDULENT Election in history. It will be a great embarrassment to the USA. Delay the Election until people can properly, securely and safely vote???
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) July 30, 2020
Tradução: "Com voto por correspondência universal (não voto em ausência, que é bom), as eleições de 2020 serão as mais imprecisas e fraudulentas da história das eleições. Será um grande constrangimentos para os EUA. Adiar as eleições até que as pessoas possam votar apropriadamente e seguramente?"
Carlos Gustavo Poggio, PhD em Relações Internacionais com foco de pesquisa em política dos EUA e professor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), explica que o aumento da demanda de votação por correio pode gerar confusões. “Imagine o que vai precisar de gente para contar esses votos. Em alguns estados, as assinaturas nos votos precisam ser conferidas cédula por cédula”, explica pontuando que essa é uma dificuldade adicional para previsões de quem logrará êxito.
Nunca houve essa dimensão do ponto de vista do desafio logístico ou do ponto de vista de se o voto por correio pode beneficiar um ou outro candidato.
Carlos Gustavo Poggio, sobre a possibilidade de voto pelo correio nos EUAEm relação à popularidade do presidente, Poggio diz que “se Trump ganhar, tendo os números que tem hoje, será uma vitória inédita na história dos Estados Unidos”. O que de fato se confirma pela tendência histórica de que qualquer aprovação abaixo de 45% já limita as chances de reeleição. “Porém não podemos esquecer que a vitória de Trump em 2016 também era inesperada e que há uma tendência de presidentes serem reeleitos nos EUA”.
A ampla cobertura da imprensa sobre ações de Trump em 2016, tida como ponto favorável a ele mesmo que pela abordagem negativa (falem bem ou falem mal, mas falem de mim), pode ser um outro problema neste ano.
O excesso de atenção em Trump faz com que as pessoas se esqueçam de Joe Biden, o candidato pelo Partido Democrata, e transformem a eleição em disputa de movimentos pró-trump e anti-trump. Tornando o ex-vice-presidente americano (2009-2017) uma espécie de figura imaginária.
Ao perceber essa tendência, democratas têm utilizado esses maiores holofotes em Trump como estratégia para proteger Biden, que sabidamente não possui capacidade oratória avantajada como a do atual presidente ou mesmo democratas de outrora, como Barack Obama, de quem foi vice por oito anos.
“Pesquisas recentes indicam que quando perguntam ao eleitor se ele votará em Biden ou no Trump, dois terços dos que optam por Biden afirmam que o estão fazendo por serem contra Trump. Então quanto mais o Trump fala e aparece, mas o Biden conta com esse apoio”, explica Poggio.
Por outro lado, Trump usa a força que tem nas redes sociais para tentar reverter o placar. Principalmente em estados com predominância de votos em republicanos que estão criticando a atual gestão.
Em de 5 de julho, Trump atacou Biden ao divulgar vídeo do que chama de “ObamaGate”, teoria da conspiração que alega que o ex-presidente Barack Obama teria utilizado aparato estatal para prejudicar Trump. Entretanto, sem provas.
DRAIN THE SWAMP! pic.twitter.com/68M4sN7LLD
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) August 5, 2020
É indissociável da figura do democrata Joe Biden a participação na gestão de Barack Obama, avaliada internamente como um governo de estabilização da economia e retomada do emprego após a crise de 2008. Além, claro, das questões de representatividade.
Biden tem apoio popular fomentado nisso. No que diz respeito a comunidades negras e latinas, o ex-vice-presidente seria uma espécie de representação da continuidade do governo Obama. Para além disso, ele atrai eleitores moderados e é visto como uma pessoa com boas relações no Congresso.
Negativamente pesa a tendência de que Biden não deve trazer novidades, por se tratar de mais um democrata branco e representante do establishment. Além disso, caso eleito, ele seria o presidente mais velho a assumir o cargo, com 78 anos a serem completados apenas 17 dias após a eleição. Dessa forma, a candidatura passa mais uma ideia de tentativa de reaver a estabilidade política do que de praticar mudanças efetivas.
Fato é que a próxima eleição trará consigo o aumento da polarização. Na prática, ao utilizar-se de discursos contra minorias, minimizar a pandemia e atacar a China, Donald Trump tentar demarcar força ao eleitorado conservador, branco, masculino e do interior, por exemplo.
Opositores, por sua vez, veem a postura presidencial, na maioria dessas questões, como problemática. Ou seja, o que para alguns pode ser visto como posicionamento reprovável, para outros é estratégia de campanha.
Na última terça-feira, 11, Joe Biden anunciou, nas redes sociais, a senadora pela Califórnia, Kamala Harris, 55, como a sua companheira de chapa. A escolha tem peso político, já que Harris agrupa experiência na vida pública como ex-procuradora-geral da Califórnia, e simbólico pela força que o debate antirracista ganhou no cenário eleitoral com recente onda de protestos após o assassinato de homens negros pela polícia.
I have the great honor to announce that I’ve picked @KamalaHarris — a fearless fighter for the little guy, and one of the country’s finest public servants — as my running mate.
— Joe Biden (@JoeBiden) August 11, 2020
Filha de imigrantes de origem indiana e jamaicana, Kamala será a primeira mulher negra e a primeira asiática-americana a concorrer à vice-presidência dos Estados Unidos. A origem indiana também pesa favoravelmente já que a comunidade indo-americana é grande. Além disso, ela será apenas a quarta figura feminina a aparecer nas cédulas de votação em um pleito presidencial no país. Suas predecessoras foram Geraldine Ferraro (1984) Sarah Palin (2008) e Hillary Clinton (2016) que disputou como cabeça de chapa.
.@KamalaHarris is the daughter of proud immigrants—a mother from India and a father from Jamaica—who raised her to take action.
— Joe Biden (@JoeBiden) August 12, 2020
That’s exactly what this moment calls for: action. And we hope you’ll take action with us: https://t.co/K3mVwfTxXJ pic.twitter.com/MZLAx9IN6C
Precisa ser considerado o fato de que, nos EUA, a pandemia impôs consequências socioeconômicas mais graves às comunidades negra e de imigrantes do que ao restante da população. Sabendo disso, os democratas apostam na possibilidade de ter a figura de mulheres, negros e imigrantes representada em uma única pessoa. Ao mesmo tempo em que a atuação de Trump é vista como falha por estes grupos. É um movimento político que teoricamente garante musculatura à candidatura da oposição.
Kamala Harris também critica a postura do governo brasileiro há mais de um ano. Em 2019, ela disse que Trump não deveria buscar um acordo comercial com Brasil "até Bolsonaro reverter suas políticas catastróficas" para Amazônia. Especialistas apontam que posição contrária da chapa democrata ao governo brasileiro resulta da estratégia de Bolsonaro de se aproximar de Trump, não dos EUA.
As the Amazon burns, Brazil’s Trump-like President who let loggers and miners destroy the land isn’t acting. Trump must not seek a trade deal with Brazil until Bolsonaro reverses his catastrophic policies and addresses the fires. We need American leadership to save our planet.
— Kamala Harris (@KamalaHarris) August 24, 2019
President Bolsonaro has actively encouraged the Amazon fires and rejected help from the G7 to combat them. Trump just pledged his full support to Bolsonaro.
— Kamala Harris (@KamalaHarris) August 27, 2019
At a time when the planet depends on American leadership, Trump has failed.
A China tornou-se questão central na eleição deste ano. O país asiático é visto como um problema, inclusive por democratas. Pesquisa do Pew Research Center apontou aumento do sentimento anti-China nos EUA. Atualmente, segundo o instituto, 73% da população dos EUA tem visão desfavorável sobre a potência rival asiática.
Alguns analistas já avaliam o cenário como o de uma “Guerra Fria 2.0”, pois atualmente sabe-se que um conflito armado aberto entre as duas maiores economias mundiais não é interessante para os países envolvidos e os respectivos parceiros comerciais.
O acirramento das relações entre Estados Unidos e China acelerou com a crise do novo coronavírus. Em uma das ofensivas mais recentes, os americanos ordenaram o fechamento do consulado chinês em Houston, no Texas, após acusações de que hackers teriam tentado roubar informações sobre vacina contra a Covid-19 produzida na Califórnia. A China retaliou de forma proporcional fechando o consulado dos Estados Unidos em Chengdu três dias depois.
Em outra acusação recente também envolvendo espionagem, Donald Trump ameaçou expulsar do país a empresa chinesa que administra a plataforma TikTok, rede social que se tornou febre (no sentido conotativo da palavra) durante a pandemia. Todas acusações sem provas até o momento. Pequim nega envolvimento.
Lucas Leite, professor de Relações Internacionais da Fapesp, diz que tanto Trump quanto Biden assumem ação combativa em relação aos chineses, mas com uma diferença importante.
O Biden atua num sentido pragmático de política externa, de criação de estratégias para conter a China e o aumento do seu poderio, mas sem entrar na lógica do racismo, da eliminação do outro. Já o Trump aborda isso de forma racista e sem pudor, quando coloca a culpa da pandemia na China e chama o coronavírus de ‘vírus chinês’, por exemplo.
Lucas Leite, professor de Relações Internacionais da FapespO fator China pesa em favor de Trump, na medida que o radicalismo em relação ao tema segue crescendo no país como apontam indicadores.
Fortemente alinhado com o atual governo dos EUA, o governo de Jair Bolsonaro aposta todas as fichas na reeleição de Trump. Fator que, do ponto de vista da retórica, já gerou algumas situações incômodas entre a família Bolsonaro e representantes do partido democrata.
O deputado democrata Eliot Engel, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Representantes, classificou como "vergonhosa e inaceitável" o que considerou interferência da família Bolsonaro nas eleições dos EUA, afirmando que eles precisam ficar fora delas. Dias antes, Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, compartilhou vídeo da campanha à reeleição do presidente Donald Trump. Nas imagens, lideranças democratas como o casal Bill e Hillary Clinton e Barack Obama são questionados pela campanha de Trump.
“We’ve seen this playbook before. It’s disgraceful and unacceptable.
— House Foreign Affairs Committee (@HouseForeign) July 27, 2020
The Bolsonaro family needs to stay OUT of the U.S. election.”
-Chairman @RepEliotEngel https://t.co/VZtcWLfUFN
Uma vitória de Biden poderia apontar, simbolicamente, o isolamento do Brasil, já que o País abriu mão de imagem internacional histórica de mediador para alinhar-se carnalmente à postura da gestão Trump. Se Biden vence, a Política Externa Brasileira teria que ser, no mínimo, revista.
Lucas Leite avalia que, independentemente de Tump ou Biden, as diplomacias atuarão para manter as relações. “Pode até melhorar em algumas questões, porque num governo Biden, o Brasil talvez seja forçado a dar um passo atrás em algumas questões que atrapalham o multilateralismo por medo de perder apoio. Senão, teremos a manutenção dessa relação assimétrica entre Bolsonaro e Trump, que pende sempre a favor do próprio Trump”, avalia.
Série aborda os múltiplos cenários políticos dos Estados Unidos nas eleições de 2020