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Há 90 anos, O POVO publicava a mais importante entrevista do Padre Cícero: leia na íntegra
Reportagem Seriada

Há 90 anos, O POVO publicava a mais importante entrevista do Padre Cícero: leia na íntegra

Aos 87 anos, Padre Cícero abriu as portas de casa para a reportagem do O POVO. Na entrevista, o retrato do homem vaidoso, piadista, político, anticomunista, polêmico e já tratado como santo em vida. Como pano de fundo, uma vívida descrição da Juazeiro do Norte de 90 anos atrás - efervescente e vibrante polo comercial que ganhava ares carregados de fanatismo perto da morada do padim
Episódio 5

Há 90 anos, O POVO publicava a mais importante entrevista do Padre Cícero: leia na íntegra

Aos 87 anos, Padre Cícero abriu as portas de casa para a reportagem do O POVO. Na entrevista, o retrato do homem vaidoso, piadista, político, anticomunista, polêmico e já tratado como santo em vida. Como pano de fundo, uma vívida descrição da Juazeiro do Norte de 90 anos atrás - efervescente e vibrante polo comercial que ganhava ares carregados de fanatismo perto da morada do padim
Episódio 5
Tipo Notícia Por

Numa tarde de fevereiro, em 1931, o já idoso padre Cícero Romão Batista recebeu os jornalistas do O POVO em sua casa. O relato redigido por Paulo Sarasate oferece um retrato do sacerdote aos 87 anos, três anos antes de morrer. Era um Padre Cícero desde então objeto de devoção. A mera aproximação de sua casa transformava a atmosfera da então jovem Juazeiro do Norte.

Entrevistas Históricas - Padre Cícero(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Entrevistas Históricas - Padre Cícero

Àquela altura, a trajetória do homem a quem os sertanejos dedicam devoção estava consolidada no imaginário do interior do Nordeste, ao mesmo tempo em que era vista com desconfiança nos grandes centros urbanos do Brasil e também no Vaticano.

Já haviam se passado mais de 40 anos desde que a hóstia entregue por ele se transformou em sangue na boca da beata Maria de Araújo, conforme os testemunhos. Desde o fim do século XIX, foi suspenso das ordens sacerdotais e proibido de celebrar missas. Chegou a recuperar a prerrogativa temporariamente, mas, quando da entrevista, havia sido suspenso de novo, dessa vez de forma definitiva. Interditado das atividades religiosas, manteve intensa atuação política.

Em 1911, 20 anos antes da entrevista, protagonizou a emancipação de Tabuleiro Grande, um povoado do Crato, transformado no município de Juazeiro do Norte. Padre Cícero foi o primeiro prefeito. A partir de 1912, acumulou a função com a vice-presidência do Ceará - cargo equivalente ao atual vice-governador.

Entrevista com Padre Cícero publicada no O POVO em 1931(Foto: O POVO.doc )
Foto: O POVO.doc Entrevista com Padre Cícero publicada no O POVO em 1931

O governador - presidente do Estado na denominação da época - era Franco Rabelo. Rabelo e Padre Cícero entraram em colisão no ano seguinte. Rabelo destituiu o sacerdote da administração de Juazeiro e enviou tropas ao Cariri. Os revoltosos fiéis ao padim, contudo, saíram vitoriosos.

Com apoio do presidente da República, Hermes da Fonseca, o exército do Padre Cícero marchou até Fortaleza e destituiu Rabelo. Foi a Sedição de Juazeiro.

Em 1926, o padre foi eleito deputado federal, mas não tomou posse. Um ano antes, ocorrera a Revolução de 1930, levando Getúlio Vargas à Presidência da República, derrubando velhas oligarquias e esvaziando o poder político do padim. Ao mesmo tempo, crescia a aura de santo em vida.

Esse foi o Padre Cícero que recebeu Paulo Sarasate e Alfeu Aboim, enviados pelo O POVO. Eles atravessam a imagem mística para encontrar o homem Cícero Romão Batista. Refletem o padre bem-humorado e vaidoso: fazia questão de tirar a barba e mudar a batina para não parecer velho na foto. Aos 87 anos, surpreendeu os jornalistas por se mostrar “relativamente forte”, pelo andar rápido e a fala apressada.

Dizia-se afastado da política, mas expôs suas ideias sobre a conjuntura de então. Comentou a Revolução de 1930, falou sobre Getúlio Vargas, com quem se correspondeu antes da chegada ao poder central. Abordou também o comunismo: “Lúcifer é o seu chefe e a disseminação de sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus.”

Padre Cícero(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Padre Cícero

Da narrativa emergem personagens como beata Mocinha, intermediária da relação do padre com os romeiros. Com vestes negras, ela fica a escutar a entrevista por trás da porta.

O texto, oferece panorama da casa, com retratos dos pais do Padre Cícero na sala. E traz viva descrição de Juazeiro do Norte naquela época: pujante, luminoso e alegre polo comercial, que se transforma nas cercanias de onde vivia o fundador. É com profundo incômodo que o texto conta da “atmosfera irrespirável e repugnante” daquele “verdadeiro foco de fanatismo.”

A reportagem oferece um dos últimos e mais detalhados escritos em vida sobre um Padre Cícero de carne e osso. Publicada em 18 de fevereiro de 1931, é a mais importante entrevista concedida por Cícero Romão Batista. Ele surge piadista, tagarela, político, mas sempre evocando a religião nos assuntos de Estado. Como havia sido por mais de quatro décadas, um polêmico santo do povo.

 

LEIA A ENTREVISTA COM PADRE CÍCERO TRANSCRITA NA ÍNTEGRA


Na casa do Padre Cícero 

Duas horas de palestra com o patriarcha do Joaseiro -- Sua opinião sobre o momento nacional -- Como elle encara o Communismo e outras questões da Actualidade.

De Paulo Sarasate, Especial para O POVO

Os jornalistas Paulo Sarasate e Alpheu Aboim. que estiveram no interior do Estado, a serviço desta folha, visitando ha poucos dias Joaseiro, apanharam a seguinte entrevista com o Padre Cicero, escripta pelo primeiro especialmente para O POVO.

Joaseiro, 12 (Via - Postal)--Seriam precisamente 13 horas de hontem quando nos dirigimos á residencia do Padre Cicero, com o intuito de entrevista-lo para O POVO.

Transposta a grande praça em que se ergue dominadora, a estatua do padre, dahi a alguns passos penetrámos na travessa onde o mesmo reside, numa casta casa em companhia da beata Mocinha.

Era outro o ambiente. Inteiramente outro. Ao approximar-se da residencia do Padre Cicero, Joaseiro como que se transforma subitamente. Toma outro aspecto. De cidade movimentada e alegre, emporio commercial dos mais florescentes do sul do Estado, como se apresenta nas demais arterias publicas - transfigura-se ali, nas cercanias da mansão patriarchal, num verdadeiro foco de fanatismo. Não é mais a cidade clara e sorridente do Cariry, agitada pelo lufa-lufa quotidiano dos que trabalham: é o vil larejo inculto e retardado, a nova e pacifica Canudos dos sertões nordestinos, com a figura tradicionnalmente discutida do padre e a ignorancia contristadora dos romeiros…

Defronte da casa e um pouco ao lado, quatro ou cinco tendas, armadas ao sól, recheiadas de santos, medalhas e rosarios para vender, desafiavam o ambiente escuso com o berrante desencontrado nas côres. Eram medalhas e santos de todas as qualidades, inclusive, o santo do Joaseiro…

Na calçada, ao longo das sete janellas e principalmente na porta, que estava apinhada, cerca de quarenta romeiros aguardavam resignados a ocasião para elles bemfazeja de avistarem-se com o Padre Cícero. Alguns esperavam de joelhos, resando. e um ou outro protestava contra a demora, especialmente uma mulherzinha nervosa, franzina, maltrapilha, que não se cançava de chamar pela beata , aos gritos, no anseio mystico de beijar as mãos milagrosas de meu padrinho.

A beata Mocinha – lembre se aqui num rapido parenthesis – é a principal intermediaria entre o padre e os romeiros. Sem a interferencia della, que tudo manda e tudo póde naquele tecto, coisa alguma se consegue…

A Espera do Patriarca

Mal conformados com a atmosphera irrespiravel e repugnante que foramos encontrar ali, deplorando profundamente aquelle estado criminoso de retardamento mental, homens, mulheres e creanças mergulhados no mais revoltante fanatismo, sentindo pela primeira vez a energia sem par daquelle ambiente - conseguimos entrar na residencia do Padre Cicero.

Fizemo-nos annunciar por um porteiro e ficamos na saleta de entrada á espera do nosso homem. A beata Mocinha, aque ali estivera a conversar com umas romeiras, assustou-se com a nossa presença e esgueirou-se manhosamente pelo corredor, desapparecendo de uma vez. Trancou se em seu quarto, ao que nos informaram, e não força a nossa argúcia, não teria sido vista mas tarde, com o cabello cotado á la home e as vestes negras, tumularmente negras, a escutar por tras de uma porta a palestra que mantivemos com o patriarcha do Joaseiro.

Enquanto este chegava, puzemo-nos a examinar a sala de visitas. Admiramos os retratos da mãe do padre e de seu pae, já, fallecidos, olhámos uma photographia do mesmo ao lado do ex-senador João Thomé, passámos a vista por outros quadros e dahi a segundo estavamos conversando com...

Uma Contemporanea da Beata Maria de Araújo

Era uma mulherzinha já idosa, cabellos brancos, fala arrastada. Disse nos que assistira os milagres da tão controvertida Maria de Araujo e nos jurou, a pés juntos, que tinha visto certa vez uma hostia jorrar sangue, quando um sacerdote acabava de tomá la nas mãos para depo-la nos labios da beata.

-Vi esse facto com estes olhos que a terra ha de comer - disse-nos por fim a nossa interlocutora, com uma segurança quase convincente…

Com o Padre Cicero

Mais alguns minutos decorridos e lá se veiu o padre á nossa presença. Pensávamos encontrá-lo abatido, dominado pelos 87 annos de idade que tem vivido, mas deparámo lo relativamente forte, andando ligeiro e falando apressado.

Abraçou no cordialmente, os labios rasgados num riso franco e jovial, olhar prescrutador - e conduziu nos imediatamente a seu gabinete, á direita do predio.

-Padre Cicero - começamos geitosamente - somos do O Povo e queremos uma entrevista sua. Algumas palavras sobre o movimento brasileiro.

-Não - respondeu de prompto, com uma resolução que podia parecer definitiva. Por óra não posso falar. Estou de resguardo…

Um espectador dos acontecimentos

Rimos conjuntamente da pilheira e deixámos que elle proseguisse:
-Eu agora sou apenas um espectador dos acontecimentos. Aprecio os factos e olho as coisas com uma grande vontade de que tudo se faça como eu desejo.

E iniciando sem presentir a entrevista que solicitaramos:
-A futura Constituição, por exemplo, não deve ser athéa. O Brasil é uma nação catholica e precisa viver com Deus. Sou partidario da Egreja unida ao Estado, porque sou catholico apostolico romano, e me orinteo pelo crédo, que é o symbolo da Religião e da Fé. Deus é quem governa o mundo e os homens. Só o Creador é universal e absoluto.

Resolvemos cortar a digressão philosophica do padre, que promettia prolongar se, e interpellámo-lo sobre o movimento revolucionario.

-E agora – respondeu-nos com um desembaraço de phrases que bastante nos admirou e que se fez sentir em toda a palestra -- é agora o momento opportuno para se fazer um Brasil novo, com um futuro brilhante e cimentado em principios divinos.

Como se vê, o Padre Cícero raramente se afasta da idéia de Deus. Toda a sua conversa desenvolta e não raro atraente, é pontilhada desse espírito religioso, dessa quase obsessão teológica.
E assim continuou ele a falar sobre.

O movimento revolucionário:

-- A revolução foi uma intenção que Deus entregou os brasileiros, para se libertarem. Os homens põem e Deus dispõe. Os homens deram impulso á Revolução e Deus ordena que se faça um Brasil novo e grande, debaixo de principios que sejam a manifestaçao da vontade do nosso povo. Eu desejo que os novos governantes sejam sobretudo administradores e não donos de uma grande fazenda como vinha acontecendo até agora. Que nação os faça, os eleja zeladores e defensores da Patria e do povo e não senhores de uma senzala, para venderem-na aos pedaços a quem mais der.

Tudo isso o Padre Cicero ia dizendo pausadamente, medindo as palavras, mas com gestos largos e repetidos, extendendo e abrindo os braços, principalmente o esquerdo, que elle movimenta com mais frequencia, ora puxando o lenço, ora ageitando os oculos. Os oculos de tartaruga esverdeada com que procura aliviar-se da catarata impertinente que lhe annuvia a vista, enbranquecendo-lhe o azul brilhante dos olhos…

Juarez Tavora

-Que pensa de Juarez Tavora?

-É um homem distineto e bravo - explicou vivamente, quase a nos cortar a pergunta.
E insistiu, sempre dominado pela mania religiosa.

-É um dos elementos que Deus destacou para fazer-se uma Patria nova e feliz.

-Confia por inteiro na ação de Juarez?

-Tanto assim não posso adeantar. Mas conheço sua familia e a sei catholica. Sou até padrinho do Adhemar, irmão de Juarez, e da Benigna, irmã delle. Tive cuidados e vexames enormes quando elle vinha como um dos chefes da Revolução, em vinte e seis. Já desejava e que elle se salvasse, se desligasse della, para não morrer. Tambem me procupei muito, naquelle tempo, com a sorte do dr. Tavora, que esteve perseguido.

E passou o padre a contar a historia de um positivo que mandara a Fortaleza, naquelles tempos sombrios da segunda Revolução, destinado exclusivamente a avisar ao actual interventor do Ceará que se retirasse do Brasil, porque do contrario seria preso.

-Mandei até dizer lhe - concluiu - que não se fiasse absolutamente na protecção de Moreirinha, que esta não valia nada.

Vocês sabem melhor que eu…

Qual seria a opinião do Padre Cicero Romão Baptista sobre os governos depostos? A sua opinião de agora?
Atacamos o assumpto:

-Que pensa de Washington Luiz e seu governo, padre?

-Não penso nada. Não quero emitir juizo sobre quem ja morreu.

E prosseguindo, contou-nos sorridente que já estava até de amizade encetada com o Cattete, sucedendo o memso com relação aos srs. Julio Prestes e Matos Peixoto. Nunca lhes desejei mál, nem o deseja agora, porque contuma memso pedir bençãos para todo o mundo - O que eu quero - disse-nos textualmente com aquella philosofia toda sua - é que os máus se convertam e vivam. Cada individuo seja bom e perfeito - e progrida.

Nada conseguiramos a respeito do sr. Washington. Seria conveniente tentar ainda a sua opinião sobre o sr. Peixoto? Arriscamos: - Que diz do governo Peixoto?

-Também não digo nada - replicou o nosso entrevistado. E explicou com um traço mal disfarçado de ironia: - Não digo nada porque vocês sabem melhor do que eu…

A seguir, como alguem avançasse na roda que o casal Matos peixoto era atheu, o Padre Cicero, satisfeito, vaidoso, procurou convencer nos de que modificaria o pensamento anti-religioso do ex-presidente e sua senhora quando ambos visitaram o Joaseiro.

Getulio e Epitacio

Faltava ouvir o pensamento do padre sobre o chefe do governo provisorio. Foi o que fizemos a seguir para obter a seguinte resposta:

-Desejava calar sobre o dr. Getulio Vargas porque estamos muito longe. Mas so tenho razões para julga-lo um homem de bem. Ja tive até relações com elle por telegrammas da Fazenda e mesmo quando foi presidente do Rio Grande. Desejo-lhes, pois, muitas felicidades e digo isso sinceramente, muito sinceramente.

Conheciamos a admiração do padre pelo sr. Epitacio Pessoa e por isso não foi com surpreza que o ouvimos logo depois desfazer-se em elogios ao ex-presidente da Republica, um dos maiores homens do país segundo o seu modo de pensar.

Os Ministérios do Padre Cicero

Muito loquaz, espantosamente loquaz, o patriarcha do Joaseiro tomara gosto pela palestra e não se calava mais um segundo. Era uma verdadeira machina falante, a emittir opiniões sobre os mais variados motivos. E destarte, por sua conta, atacou a questão dos ministérios:

-Em vez de se salvar, o país com impostos e empréstimos (o Padre Cicero é um ardoroso inimigo dos empréstimos e das concessões estranjeiras) em vez disso, os dirigentes da pátria devem criar um novo ministério destinado especialmente a desenvolver as nossas riquezas naturaes, as grandes riquezas que Deus nos deu. Faça-se pois um Ministério das Minas e Florestas. E assim que se age e não vendendo o pais aos estranjeiros. Elles comem bananas e nos atiram as cascas…

Outra impressionante faceta do espirito do Padre Cicero é o seu apegado amor pelos acontecimentos historicos e pelo que se passa nos paises de além-mar. Em seu gabinete, pouco abaixo de uma photographia sua, ainda seminarista, vê se, colorida, uma estampa intitulada “Pantheon universéle des personages más celebres”. No decorrer das palestras, de vez em quando elle cita um facto historico, relembra outro, evoca um heroismo, de modo a mostrar erudição no assumpto.

E nestas condições para defender a thése do Ministerio das Minas, foi parar conosco na longinqua Persia.
-Caleul em -- accentuou-nos -- que um homem semi barbaro, como o imperador da Persia, tratou do assumpto, em seu país e organizou varias comissões para explorar as minas daquella região. Imitemos, pois, o imperador dos persas.

Concordámos habilmente com a maneira de pensar do velho sacerdote e elle proseguiu - E, se fôr possivel, criemos também um Ministério de Culto, Ensino, Sciencia, Hygiene e Bons Costumes, para melhor realizar a reconstrução moral do país. Feito isso, eu ficaria satisfeito, certo de que tudo estava nos eixos.

A Punição dos Culpados

-Qual a sua opinião sobre o Tribunal revolucionário?
-Eu me calo a respeito, porque não conheço substancialmente os seus principios de existencia.
-Mas acha que os culpados devam ser punidos?
-Nessa materia - replicou o padre, sustentando os oculos - nessa materia eu nao sou professor certo. Theoricamente, em principio, sou pela punição. Mas na pratica, a meu vêr, as cousas não saem certas. E a condemnar innocentes é preferivel perdoar, que é sempre melhor e mais agradável.

O Imposto Territorial

Tratando-se, no momento de assumptos politicos exclusivamente, há de parecer extranho aos leitores o sub-titulo acima: o imposto territorial. A verdade, no entando. é que, sem querermos, fomos forçados a ouvir uma longa exposição do Padre Cicero a respeito dessa tributação, que elle considera iniqua, odiosa, injustificavel. Tem uma verdadeira ogerisa ao referido imposto e está obsecado, profundamente obsecado pela idéia de combatê-lo.

E é somente por isso, unicamente pela vontade do entrevistado, que se tóca aqui na materia tributaria em apreço.

O Communismo, o Apocalypse e o Fim do Mundo

Para encerrar a palestra, que já se prolongava, interrogamos o thaumaturgo de Joaseiro sobre o comunismo. E foi com extraordinária vontade de rir que lhe escutámos a opinião:

-O communismo - afirmou emphaticamente o Padre Cicero - foi fundado pelo demônio. Lucifer é o seu chefe e a disseminação de sua doutrina é a guerra do Diabo contra Deus. Conheço o communismo e sei que é diabólico. E a continuação da guerra dos anjos máos contra o Creador e seus filhos.

Tomou alento e prosseguiu mais pathetico:

-Conheço a Russia desde a minha meninice e sei que ella é um campo immenso de assassinatos, commettidos por governos que querem destruir moral e materialmente a nação. Lenine foi um sargento do exercito e nada mais. Era, alem disso, um judeu pelo espirito e pelo sangue. Só os seus discipulos consideram-no um grande homem. Os espiritos sensatos não pensam desse modo. O partido de Lenine é o partido do Anti-Christo, dito e annunciado por S. João, no Apocalypse. E chegará a governar o mundo, quando faltarem três annos para o incendio final, porque tudo isso está escripto nos livros santos…

A Vaidade do Padre Cícero

Estava terminada a entrevista. Convidámos, então o Padre Cicero para se deixar photographar ao nosso lado. Elle accendeu de com grado, alegremente, mas insistiu numa coisa: fazer a barbar e mudar a batina, para não apparecer velho na photographia…

O Retrato retirado

Dahi a pouco, ao sairmos da casa do bondoso padre, ouvimo-lo accentuar na despedida, como se alguém lá dentro o tivesse aconselhado, quando ele foi mudar de batina: - Olhem bem, eu não sou inimigo do peixoto!

Um dos presentes, porem, chegou-se-nos ao ouvido e apontando para a sala de visitas adeantou-nos maldosamente que não estava mais ali, como de costume, o retrato do presidente deposto…

“Eu também sou rico!”

Saimos. A porta era maior o número de romeiros. A onda avolumara-se pouco a pouco, para augmentar, talvez, a nossa desolação ante aquelle ambiente asphyxiante de miseria e fanatismo.
E um homem pallido, barba crescida, immundo e asqueroso, revoltado por não ter merecido ainda o favor de ser recebido pelo padrinho, atirou a nossa passagem estas palavras ironicas e mordazes, humanamente philosophicas:

-Deixem-me entrar que eu também sou rico! Eu também sou rico! 

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