Um membro graduado do PSL no Ceará e interlocutor direto da campanha de Bolsonaro no Estado em 2018 conta que “os quatro garotos”, como ele chama, “não tinham vínculo com o PSL ou o grupo do Heitor (Freire, presidente do partido no estado) e que “eram até antagônicos dentro da própria direita”, aludindo às posições majoritárias que o conservadorismo passava aos poucos a assumir em todo o país, sobretudo a partir do impeachment de Dilma Rousseff (PT).
“Eram freelancers”, continua, “cada um tinha seu grupo e sua rede social. Foram cooptados pelo Carlos, uma ligação direta sem passar pelo PSL”.
Carlos é o “02”, vereador pelo PSC no Rio de Janeiro e ponta de lança da estratégia digital do então candidato Jair Messias Bolsonaro, àquela altura deputado federal pelo PP. Espécie de caça-talentos, acompanhava o trabalho dos cearenses desde o começo, quando ainda atuavam como “lobos solitários” e não se haviam constituído em rede, colaborando intimamente entre si como fariam depois. Segundo ele, foi o filho do presidente quem deu “essa liga” aos agitadores virtuais.
Reservadamente, essa fonte assegura que o grupo, depois chamado de “gabinete do ódio”, já operava “quatro anos antes das eleições”, ou seja, em 2014 – antes, portanto, de Bolsonaro visitar Fortaleza e Guilherme Julian e Matheus Sales travarem contato direto com o parlamentar, recebido com festa e gritos de “mito” no aeroporto da cidade, aonde veio a convite do então deputado federal Cabo Sabino (Avante).
O método de recrutamento, prossegue o pesselista, foi por meio das próprias redes, sem interferência ou indicação partidária ou de Freire, naquele momento sem tanta proximidade com Bolsonaro, de quem só viria a se avizinhar mais perto das eleições, quando o potencial do ex-capitão já era uma realidade.
“Houve a atração do Carlos, como deve ter feito isso com gente de outros estados”, relata. “Tinham zero ligação com o partido, não tinham envolvimento físico, não estavam nos comícios. Trabalhavam numa outra ala.”
Essa ala ainda não tinha nome, mas, progressivamente, foi atendendo às demandas do vereador, grupando-se e robustecendo o canhão de memes e páginas de humor dedicados ao pai, um político quase folclórico para o qual o establishment partidário e o poder em Brasília torciam o nariz.
Nessa época, lembra Sabino, Bolsonaro “era tóxico”, ninguém tinha coragem de se aproximar dele, e as razões eram evidentes: suas expressões e ideias abertamente preconceituosas, que contrariavam consensos mínimos mesmo à direita, o espectro que ele frequentava. “Fui muito criticado quando trouxe o Bolsonaro para Fortaleza”, conta.
Foi nesse momento que começou a ganhar corpo a estratégia da “zoeira”. Por meio de produções que conjugavam o tom jocoso das piadas que viralizavam na Internet com o substrato ideológico de corte conservador, num casamento perfeito entre forma e conteúdo, a intenção era potencializar as “qualidades” do deputado e apresentá-lo como um “outsider”, alguém que não cederia às pressões políticas e levaria adiante o bastião dos valores comungados por seus aliados – família, propriedade privada, armamentismo.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro passou a ser visto sob viés cômico, o que suavizava a sua imagem. Participações em programas televisivos contribuíram para essa popularização do deputado.
Como se sabe, a tática funcionou, e Bolsonaro chegou à Presidência cavalgando o sucesso do plano traçado por Carlos – daí a onipotência do filho, capaz de derrubar ministros com uma postagem nos meses iniciais de governo, a partir de janeiro do ano passado – e isso não é apenas força de expressão.
O primeiro a tombar foi justamente aquele que alertou, antes de todos os outros, para os riscos que o “gabinete” instalado no terceiro andar do Palácio do Planalto representava para a estabilidade e mesmo a continuidade da gestão presidencial.
O nome dele? Gustavo Bebianno Rocha, advogado carioca e ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, demitido após entrar em rota de colisão com o gabinete e morto em 14 de março de 2020, aos 56 anos.
Amigo de Bebianno, de quem se afeiçoara ainda durante a campanha eleitoral de 2018, o pesselista costumava conversar demoradamente com o companheiro de legenda, que lhe transmitia impressões a respeito das dificuldades naquele começo de atividades.
“A principal razão do distanciamento de Bebianno foi quando identificou esse foco de pessoas trabalhando no Planalto e começou a mostrar, como se fosse uma Abin paralela”
Fonte ligada ao PSL no Ceará, revelando o Gabinete do Ódio como motivo da ruptura entre Bebianno e o clã BolsonaroNuma dessas ocasiões, ele confidencia, o ainda ministro chegou a lhe dizer que o funcionamento desse gabinete do ódio (Bebianno talvez tenha sido o primeiro a usar a expressão) “era caso de impeachment já com dois meses de governo”.
“Ele achava que era um centro de captação de informações, mas era de produção de fake news patrocinado pelo estado brasileiro”, avalia. “O real motivo da demissão dele foi isso. Não foi candidatura ‘laranja’ (do PSL, alvo de investigação do Ministério Público Eleitoral). Bebianno bateu de frente com isso, e aí atingiu diretamente o Carlos, porque advertiu a ala militar e o presidente.”
O que se seguiu também é história. Bebianno caiu, e, depois dele, uma série de ministros cujas opiniões se confrontaram com as de Carlos, como Carlos Alberto dos Santos Cruz, então ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência. “As pessoas que bateram de frente contra isso saíram”, conclui.
Hoje é o próprio gabinete que passa por processo de fritura depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) instaurar inquérito para investigar o grupo ao qual é atribuída a confecção de conteúdos falsos e difamatórios tendo como destinos prioritários o próprio STF e os inúmeros adversários de Bolsonaro, dentro e fora do Planalto.
Um desses produtos é o vídeo no qual o Supremo é comparado a hienas que tentam atacar o presidente, representado por um leão. Publicada simultaneamente por contas ligadas aos membros do gabinete em outubro de 2019 e compartilhada por Bolsonaro no Twitter, a peça, um exemplo do modus operandi desse núcleo “jihadista” instalado no Governo, é citada no processo em curso na Corte sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
Para o magistrado, não se trata de difusão de meias-verdades ou de manifestações de opiniões divergentes num ambiente democrático, mas de uma “organização criminosa” cuja função é minar os pilares do sistema democrático.
Em maio passado, em despacho que subsidiou o cumprimento de mandados de busca e apreensão no âmbito da investigação que tenta desbaratar o esquema, Moraes escreveu:
“As provas colhidas e os laudos periciais apresentados nestes autos apontam para a real possibilidade de existência de uma associação criminosa, denominada nos depoimentos dos parlamentares como ‘Gabinete do Ódio’", dedicada à disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas pessoas, às autoridades e às instituições, dentre elas o STF, com flagrante conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”
Alexandre de Moraes, ministro do STF, em despacho no âmbito do inquérito das Fake NewsMoraes enfatiza que “não se pode censurar, restringir a liberdade de manifestação e de liberdade de imprensa”, mas “não é possível que novas formas de mídia se organizem de forma criminosa com finalidades de propagação de discursos racistas, de discursos discriminatórios, de ódio e de discursos contra a democracia e instituições democráticas”.
Todas as pessoas citadas nesta matéria e apontadas como parte desse “gabinete do ódio” em depoimentos no Supremo Tribunal Federal (STF) foram procuradas pelo O POVO por telefone, email, mensagem de Whatsapp e também por intermediários, nas últimas três semanas do mês de junho. Não houve resposta até agora.
Neste episódio, você leu que integrantes do Planalto prceberam, logo no início do governo, que o gabinete poderia criar problemas para o presidente. Hoje é alvo de investigação. Veja o conteúdo dos episódios anteriores.
Episódio 1 - O POVO mostra os passos do grupo de jovens cearenses a partir do qual se originou o "gabinete do ódio".
Como quatro cearenses chegaram à linha de frente da máquina de guerra digital de Bolsonaro