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Muito antes do "gabinete": as origens
Reportagem Seriada

Muito antes do "gabinete": as origens

Passagem de Bolsonaro por Fortaleza em agosto de 2015 foi o estopim dos grupos que já vinham se articulando desde 2013. O segundo episódio da série sobre os cearenses do "gabinete do ódio" mostra como a produção se intensificou depois da recepção calorosa a Bolsonaro no Aeroporto Internacional Pinto Martins
Episódio 2

Muito antes do "gabinete": as origens

Passagem de Bolsonaro por Fortaleza em agosto de 2015 foi o estopim dos grupos que já vinham se articulando desde 2013. O segundo episódio da série sobre os cearenses do "gabinete do ódio" mostra como a produção se intensificou depois da recepção calorosa a Bolsonaro no Aeroporto Internacional Pinto Martins
Episódio 2
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Um ano antes de o Senado Federal designar os integrantes da comissão que analisaria as acusações de “pedaladas fiscais” contra a presidente Dilma Rousseff (PT), num processo que terminaria por apeá-la do Planalto no início de seu segundo mandato, em 2016, o cearense Guilherme Julian Victor Freire, então com 23 anos, criava uma linha de camisas em homenagem ao deputado federal Jair Bolsonaro. Ao empreendimento, o jovem arrojado chamou de “camisas opressoras”.

Sediada no Conjunto Nova Metrópole, em Caucaia, na Região Metropolitana da Capital, a empresa que as comercializava não poderia ter nome mais apropriado: “Mituz”, numa referência direta ao “mito” bolsonarista. Àquela altura, abril de 2015, o parlamentar do PP ainda não visitara Fortaleza.

Entre os produtos da companhia, de baixo capital social (R$ 500, somente) no ato da abertura, em 26 de abril de 2015, estavam peças que estampavam o ex-militar vestindo o traje do personagem dos quadrinhos Capitão América, mas nas cores do Brasil, e outras em que Bolsonaro, usando os óculos escuros símbolos da lacração direitista, é erguido nos ombros de apoiadores na chegada ao Ceará em 2016, em meio ao julgamento de Dilma.

Criada por Guilherme Julian, a Mituz comercializou em camisetas a imagem de Bolsonaro e figuras ligadas à direita, ao conservadorismo e à ditadura militar brasileira(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Criada por Guilherme Julian, a Mituz comercializou em camisetas a imagem de Bolsonaro e figuras ligadas à direita, ao conservadorismo e à ditadura militar brasileira

Mas nem só de Bolsonaro a Mituz vivia. Havia também camisetas com a imagem de Ronald Reagan, ex-presidente norte-americano, e mais uma com o rosto do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem o deputado brasileiro dedicaria o seu voto na sessão que aprovou o impeachment da ex-presidente petista, saudando o militar como “o terror de Dilma Rousseff”.

No material confeccionado pela firma de Guilherme Julian, o ídolo de Bolsonaro, ex-chefe do DOI-Codi do Exército e torturador condenado, é igualmente pintado nas cores da bandeira nacional. Abaixo dele, lê-se: “Ustra vive”. A camisa, que custava entre R$ 30 e R$ 50, fez sucesso nos atos realizados na Praça Portugal, em Fortaleza, ponto de concentração dos setores anti-petistas que se manifestavam a favor do afastamento.

Torturador condenado, Coronel Brilhante Ustra foi um dos retratados nos produtos da Mituz. A camisa fez sucesso em muitos dos atos da Praça Portugal pelo impeachment de Dilma Rousseff(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Torturador condenado, Coronel Brilhante Ustra foi um dos retratados nos produtos da Mituz. A camisa fez sucesso em muitos dos atos da Praça Portugal pelo impeachment de Dilma Rousseff

Hoje inativa, a empresa passou para o nome de Wellington César, que manteve o mesmo endereço de funcionamento em Caucaia. À reportagem, o ex-responsável admitiu que conhecia Guilherme, mas que não tinha mais contato com ele. Perguntado se poderia ajudar a contatá-lo, disse para procurar o colega no Facebook (o cearense não responderia às tentativas de entrevista por telefone e email).

Fechada em 8 de janeiro de 2019, poucos dias depois da posse de Bolsonaro no Planalto e da nomeação do cearense como assessor no gabinete do deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ), no qual ganha pouco mais de R$ 6 mil mensais, a loja de “camisas opressoras” era apenas um braço das atividades políticas do aliado do agora chefe do Executivo federal.

Ainda em 2015, Guilherme também fundaria a organização “Endireita Fortaleza”, ao lado de outras duas pessoas. O grupo logo se tornaria o laboratório de conservadores que vinham se encontrando desde 2014 e que marcariam presença no Aeroporto Pinto Martins no ano seguinte, com Alex Melo à frente, no primeiro contato de Bolsonaro com os simpatizantes que, dali a quatro anos, trabalhariam com ele no terceiro andar do Palácio do Planalto.

Uma mostra das atividades do Endireita foi vista em maio passado, quando seus integrantes foram às ruas da Capital, mesmo sob isolamento social por causa da pandemia do novo coronavírus, em protesto contra as medidas de combate à Covid-19 adotadas pelo governador do Estado Camilo Santana (PT). Guilherme Julian era um desses descontentes, que portavam uma faixa com a frase “Camilo ditador”.

Guilherme Julian marcou presença em recentes protestos contra o governador Camilo Santana e as medidas de distanciamento social impostas em decorrência da pandemia do novo coronavírus(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Guilherme Julian marcou presença em recentes protestos contra o governador Camilo Santana e as medidas de distanciamento social impostas em decorrência da pandemia do novo coronavírus

Nesse dia, 25 pessoas foram detidas pela Polícia Militar por descumprirem norma sanitária, entre elas assessoras parlamentares do deputado estadual Delegado Cavalcante (PSL-CE) e membros do Endireita já investigadas em apuração conduzida pelo promotor Ricardo Rocha, da Procuradoria dos Crimes contra a Administração Pública, do Ministério Público do Estado (MPCE) – o deputado classifica o inquérito como “perseguição política”.

O POVO procurou o presidente do Endireita, Adriano Duarte, para comentar o assunto, principalmente a citação de fundadores da entidade nessas denúncias apresentadas pelos deputados federais Heitor Freire (PSL-CE), Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP), mas não houve retorno.

“A zueira não pode parar”

Mas Guilherme Julian não era o único a se manter ativo naqueles meses de 2015 que antecederam à chegada de Bolsonaro ao Ceará. Dois anos antes disso, em novembro de 2013, Matheus Sales Gomes, assessor especial da Presidência, já havia criado a página no Facebook “Bolsonaro Zuero”, graças a qual ganhou a simpatia de um Bolsonaro cujas atenções sempre estiveram voltadas para o que acontecia na superfície e no subterrâneo das redes sociais – Carlos.

Reprodução de postagem da página Bolsonazro Zuero(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Reprodução de postagem da página Bolsonazro Zuero

Alternando entre o perfil @ehomath (Twitter) e a fanpage (Facebook) com quase 500 mil inscritos, Matheus “Zuero”, como era chamado por amigos, era um estudante de Caucaia identificado com as ideias de direita do deputado do baixo clero. Dedicava o tempo a produzir “memes” que pretendiam massificar a imagem do parlamentar e assim ajudá-lo na lutar contra o que considerava como “uma iminente conspiração comunista no Brasil”.

Numa dessas postagens, publicada em abril de 2014, a página faz chacota com a deputada federal do PT e ministra dos Direitos Humanos desde 2011, Maria do Rosário, a quem Bolsonaro havia chamado de “vagabunda” em 19 de novembro de 2003.

Exposto numa sequência de três quadros, segue-se o diálogo imaginário: “Você é um monstro que não tem pena de bandido”, diz Rosário. Ao que um sorridente Bolsonaro responde: “Eu tenho pena, sim. Pena de morte”.

Reprodução de postagem da página Bolsonaro Zuero(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Reprodução de postagem da página Bolsonaro Zuero

Era o típico produto da “zuera” concebida por Matheus, destinada a popularizar ideias do conservadorismo, como a defesa enfática da pena de morte, a partir de chistes e piadas que normalizassem as bandeiras bolsonaristas.

Em dezembro de 2016, os pesquisadores Luís Guilherme Marques Ribeiro, Cristina Lasaitis e Lígia Gurgel, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), publicaram artigo científico analisando 500 postagens da página mantida por Matheus Sales.

 

“Uma das características da página Bolsonaro Zuero é a capacidade de síntese de conceitos mais amplos em imagens, valendo-se de fotomontagens e textos"

Estudo publicado pelos pesquisadores Luís Guilherme Marques Ribeiro, Cristina Lasaitis e Lígia Gurgel que analisou mais de 500 postagens da página "Bolsonaro Zuero"

No estudo, os autores consideram que “um aspecto a ser avaliado, que de certa forma condensa as manifestações ideológicas aqui definidas e é o tema central da página Bolsonaro Zuero, é a questão da exaltação da imagem de Jair Bolsonaro como o líder ideal para o país, exemplo de político honesto, de virilidade, de cidadão de bem, esperança para a política e uma espécie de ‘mito’”.

Eis a palavra-chave mais uma vez, mas empregada muito antes de 2018: “mito”. O vocábulo aparece frequentemente nos trabalhos do “Bolsonaro Zuero” e nos escritos de @ehomath (o perfil foi apagado após a vitória do candidato nas eleições de 2018).

Dos quatro integrantes apontados como a “avant-garde” do “gabinete do ódio” e mencionados pelo ex-pesselista Alexandre Frota em depoimento à CPMI das Fake News, em outubro do ano passado, Matheus era certamente o mais destacado na Internet, a ponto de merecer referências constantes de Carlos Bolsonaro, com quem passou a trabalhar a partir de 2014, no gabinete do vereador do PSC no Rio de Janeiro.

Até lá, no entanto, o caminho do cearense de Caucaia ao Rio e depois a Brasília foi longo, pavimentado por uma artilharia ligada sistematicamente e apontada para os alvos preferenciais do bolsonarismo: o feminismo, a esquerda, a ex-presidente Dilma e o PT.

Em abril de 2018, por exemplo, o perfil @ehomath escreveu no Twitter: “O escroto do feminismo radical não é deixar a mulher toda acabada, é fazer ela pensar que está bem melhor assim”.

Nesse mesmo mês, quando o STF negou um habeas corpus que livraria o ex-presidente Lula da prisão em Curitiba no âmbito da Operação Lava Jato, a conta publicaria: “Cenas dos próximos capítulos: Lula vai passar de ‘me sinto um jovem de 20 anos com tesão pra disputar eleição’ para ‘preso sem as mínimas condições para abrigar adequadamente um idoso doente e debilitado’”.

No dia 24/4, quando o petista já havia sido encaminhado para a carceragem da Polícia Federal na capital paranaense e uma trupe de aliados encabeçada por Dilma foi encontrá-lo na prisão, o “Math” debochou: “Após quase 15 anos, formação original se reúne para nova turnê da VAGABANDA” – em anexo, incluiu uma montagem da foto que virou meme nas redes, com a ex-presidente ladeada pela deputada federal Gleisi Hoffmann e o ex-senador Lindbergh Farias em frente ao prédio da PF, de braços cruzados e expressões severas.

Montagem com foto de Dilma e outros petistas atribuídas a Math(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Montagem com foto de Dilma e outros petistas atribuídas a Math

Um mês antes das eleições, o mesmo perfil postaria: “Paulo Guedes tem um plano radical para tirar uma grande parte da PICA ESTATAL da bunda dos brasileiros. A esquerda desesperada está espalhando mentiras para não permitir que isso aconteça e que eles continuem sugando metade do que você trabalha anualmente para continuar o roubo”.

Há muxoxos e queixas do @ehomath espalhados pelas redes entre 2015 e 2018, ano em que sua produção se intensificou significativamente. O último deles data de 11 de novembro de 2018, pouco depois de confirmado o sucesso de Bolsonaro contra o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), no segundo turno do pleito – e um dos derradeiros da arroba a quem Filipe Martins agradeceria.

Math era referenciado com frequência nas redes sociais por Carlos Bolsonaro(Foto: Reprodução Twitter)
Foto: Reprodução Twitter Math era referenciado com frequência nas redes sociais por Carlos Bolsonaro

No Twitter, o vereador e filho do presidente compartilhou publicação do @ehomath na qual ele estranhava que “os defensores das minorias não estejam falando exaustivamente sobre a ligação do Bolsonaro ao Sílvio Santos no Teleton para pedir aos que votaram e não votaram nele que façam doações aos deficientes”. Em seguida, Math sentenciou: “Mais uma prova de que a esquerda só defende os próprios interesses”.

Dali em diante, Matheus apagaria os rastros deixados até a eleição. Não somente o @ehomath, mas a conta “Bolsonaro Zuero” no Youtube foi desativada e seu conteúdo, excluído. Para o cearense e os colegas de empreitada Mateus Matos Diniz e Hemrique Rocha, começava uma nova etapa com a posse do presidente e a consolidação da máquina de guerra digital que os havia levado àquele ponto.

 

Mais sobre a série

Neste episódio sobre o "gabinete do ódio no Ceará", você leu sobre a atuação do grupo de jovens cearenses que trabalharam para 'viralizar' o então deputado Jair Bolsonaro e depois se tornaram parte da falange digital do presidente. Veja o conteúdo do episódio anterior e dos posteriores.

Episódio 1 - O POVO mostra os passos do grupo de jovens cearenses a partir do qual se originou o "gabinete do ódio".

Episódio 3 - Passagem de Bolsonaro por Fortaleza em agosto de 2015 foi o estopim dos grupos que já vinham se articulando desde 2013.

Episódio 4 - Integrantes do Planalto perceberam, logo no início do governo, que o gabinete poderia criar problemas para o presidente. Hoje é alvo de investigação.

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